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O Morro do Caracol

Foto: Rua Cabral, Barão de Ubá ao fundo e o Mato da Vitória à esquerda
Arquivo Pessoal

O povoamento de uma pequeníssima área do bairro Bela Vista em Porto Alegre, mais especificamente nas ruas Barão de Ubá que vai desde a rua Passo da Pátria até a Carlos Trein Filho e a rua Cabral, que começa na Ramiro Barcelos e termina na Barão de Ubá, está historicamente relacionado com a vinda de algumas famílias oriundas do município de Formigueiro, região central do Estado do Rio Grande do Sul. 


O início dessa migração, provavelmente, ocorreu no final da década de 40, início dos anos 50, quando o bairro ainda não havia sido desmembrado de Petrópolis e aquele pequeno território era chamado popularmente Morro do Caracol. Talvez tenha sido alcunhado por esses mesmos migrantes ao depararem-se com aquele tipo de terreno. Quem vai saber!


O conceito em Wikipedia de que o bairro Bela Vista é uma zona nobre da cidade, expressão usada para lugares onde vivem pessoas de alto poder aquisitivo, pode ser aplicado apenas para um passado recente e para o presente.  O lugar foi sempre inquestionavelmente uma zona residencial, mas delimitando no tempo estas duas ruas em particular e outras no entorno, como a Jaraguá e a Passo da Pátria eram formadas em sua maioria por construções baixas de madeira ou tijolos, sobrados de dois pavimentos,  propriedades de trabalhadores e alguns pequenos comércios.  No entanto, na parte mais alta do Morro as construções, aí sim eram mais ostentosas,  havia muitos palacetes, como as pessoas costumavam chamar, construções maiores, com grandes áreas de terrenos murados e ajardinados, seguindo padrões da arquitetura de décadas anteriores.


A única menção a Caracol encontrada em buscas pela internet, foi em Praça do Caracol ou Praça Carlos Simão Arnt ou Praça da Encol, localizada na atual Avenida Nilópolis e inaugurada pelos idos da década de 80. A título de curiosidade pessoal, Encol foi uma grande empresa de construção civil brasileira que “adotou” a área da tal praça (sic) e mais tarde entrou em decadência nos anos 90 por um processo de falência.


O Morro do Caracol foi assim chamado pelos residentes evidentemente pela sua geografia e relevo, localizado numa parte alta da cidade com suas ruas desenhadas sob o formato de várias curvas muito fechadas que lembravam um caminho em espiral ou em zigue-zague. Dava impressão, e se confirma verificando mapas atuais, que a cada curva as ruas mudavam de nome, mas de maneira geral o nome do lugar era reduzido a simplesmente Morro ou Caracol pela vizinhança e pelos visitantes daquele microcosmo.


Segundo levantamento, ao menos vinte casais com raízes formigueirenses— chegados em diferentes tempos e por diferentes razões— fixaram residência distribuídos entre as ruas Barão de Ubá —que foi um português radicado no Rio de Janeiro, político, comerciante de couros e charque gaúchos e escravagista do século XIX— e a Rua Cabral, nosso “descobridor”, que dispensa apresentação. Salvo exceções, o Brasil nunca foi muito feliz, tampouco democrático ao nomear lugares públicos; os logradouros homenageiam em sua maioria homens de reputação duvidosa ou claramente já desmascarados. Há um rol de militares, ditadores, golpistas, torturadores, etc. Mas esse é outro assunto.


Conforme depoimento de pessoas que viveram ali na época, essa migração para a capital do Estado ocorreu pela busca de melhores condições de vida, emprego e em muitos casos para proporcionar educação formal aos filhos menores e/ou adolescentes já que a maioria dos adultos só havia feito até a quinta série do ensino primário, que era o que estava disponível na zona rural. Muitos venderam suas propriedades em Formigueiro e investiram na compra de casa própria no Bela Vista que naquela época florescia. 


Alguns destes adultos talvez tiveram a oportunidade de seguir com os estudos, principalmente os homens que tinham mais liberdade de escolha. As mulheres daquela geração, todos sabemos, ficavam restritas à criação dos filhos e ao cuidado da casa. No entanto, muitas delas não só complementavam a renda, mas certamente agregavam importante aporte para a economia familiar desde que realizassem trabalhos exclusivamente femininos como cozinhar, fazer doces, lavar, passar, costurar e/ou reparar roupas sob medida.


Há um relato de que antes da mudança de Formigueiro para Porto Alegre, uma das mães de família estava mais pesarosa por ter que abandonar suas belas panelas de barro com que cozinhava no fogão à lenha do que ter que deixar a casa no seu lugar de nascimento. Imagino que ela foi mais persuadida do que ter ficado convencida de que na Capital poderia ter panelas de alumínio e fogão à gás, belas modernidades da época, as quais ela não estava familiarizada. 


Certamente, nenhuma mulher teve voz nessas decisões tão importantes que cabiam só aos homens. O único que lhes restava era aceitar e acompanhar seus maridos e filhos fosse como fosse. Ideais feministas passavam longe dali e ainda hoje no século XXI andamos às voltas ora avançando, ora retrocedendo. Mas isso também é outro assunto.


Agora explico minha relação com o Morro do Caracol. Começa com a mudança de minha família, quando eu tinha não mais que três anos de idade, no início da década de 60. Vínhamos de Canoas, depois que meu pai vendeu a casa onde morávamos com a finalidade de mudar para mais perto do trabalho dele. Era taxista e minha mãe, dona-de- casa, já com duas filhas pequenas, a terceira nasceria 10 dias antes do golpe militar de 1964 e o único menino viria em 1967. Anos mais tarde, em 1974, nasceu uma menina “temporona", mas ela faz parte da história de outros lugares.


 Meu pai tinha um “auto de praça” como costumavam chamar os táxis naquela época. O ponto ficava na popularmente chamada Praça do Triângulo, nome nunca oficializado por questões burocráticas do plano diretor de Porto Alegre. Desde 1966, a tal praça (uma pracinha, na verdade) se chama Marquesa de Sévigné que fica no entroncamento das ruas Lima e Silva, Coronel Genuíno, André da Rocha e Fernando Machado. O automóvel era um modelo Ford Mercury verde-claro da década de 50 e a mim parecia enorme, quando ele nos levava de passeio de vez em quando para o Parque Saint Hilaire(?) ou para um almoço de domingo em algum restaurante no caminho para a Serra Gaúcha. Visualizando a praça recentemente não pude entender como estacionavam os táxis ali naquele espaço tão diminuto.



Foto: Arquivo pessoal

Fomos morar em um dos apartamentos do número 1500, um sobrado branco da Rua Cabral. O prédio é dos poucos ou é o único que resta ainda daquela época, com a diferença que está todo gradeado e pintado de um tom verde oliva. A vizinhança, como mencionei no início, era de muitas famílias amigas e parentes oriundas da cidade natal de meus pais, Formigueiro. Sobrenomes como Cassol, Simões Pires, Wegner, Scherer, Machado, Kessler, Becker, Zambon, Tonelotto, Meleu e Santos— além de Brum e Silva, minha família direta— são muito conhecidos meus, lembro das pessoas, tanto dos adultos como das “crianças” que, como eu, são da geração baby boomers. 


Uns anos mais tarde nos mudamos para outra casa também no Bela Vista, número 363 da rua Amélia Teles (eis aqui uma exceção, um nome de mulher) onde meu pai teve uma mercearia. As impressões sobre esse endereço já descrevi longamente noutro texto, cheio de cheiros, gostos, tatos e acontecimentos. Ali moramos até 1970, quando meus pais decidiram retornar para o interior do Estado. Por isso, eu nunca tinha ouvido falar na Praça da Encol, e a “rua” Nilópolis me lembra só um campinho de futebol. 


A decisão de voltar para o interior afetou toda a família. Só depois de adulta pude sentir o quanto perdi— ou perdemos— por termos saído da cidade que foi minha grande referência de infância, onde morei exatamente até os 12 anos de idade. Sei quais foram as razões de meu pai, respeito e nunca falei sobre isso com ele. E essa mudança de cidade foi só o começo das dezenas de lugares que passei a viver a partir da adolescência e idade adulta. Inclusive também passei alguns anos morando fora do Brasil recentemente. 


Talvez seja uma sina, mudar e mudar, mas quase nenhum lugar me trás mais memórias afetivas do que o Caracol. Ir para a escola com o ônibus da linha Bela Vista, descer a Protásio de bonde, ir ao cinema com uma prima mais velha, receber o carinho dos adultos, passear na Redenção, ouvir o barulho dos carrinhos de lomba dos meninos descendo a calçada, jogar amarelinha— que chamávamos “sapata”— com as meninas da vizinhança e a memória de uma enorme fogueira de São João no meio da rua são detalhes muito bem guardados.


Espero que alguns leitores se identifiquem, principalmente os da turma da Barão, Cabral e adjacências e possam trazer mais informações, histórias ou corrigir dados que possam estar equivocados—afinal, as impressões e memórias aqui relatadas são infantis— e assim recontarmos sobre esse canto de mundo, sobre essas pessoas, sobre esse tempo, sobre esse lugar pelo qual guardo tanta lembrança e benquerença.


Foto: Arquivo pessoal

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