Depois de todas as tragédias de 2016 e tendo em conta as que já se avizinham para 2017 e talvez 2018, ando formatando uma resolução de ano novo um pouco tardia. É a resolução de esquecer o Brasil.
Não como minha terra ou de minha família, que seria incapaz, mas queria esquecer o Brasil como Nação. Esquecer um Brasil que depois de viver alguns poucos anos de democracia, oportunidades, crescimento social e entrar para o mapa múndi, insiste em ser colonizado, alienado, manipulado, oprimido e desigual.
Os muito ricos e os que se consideram donos do país ficam, por ora, fora de minha descrição por terem características próprias.
Quero me referir aqui a parte, eu diria boa parte da classe média brasileira que me parece bem feliz à sua medida, descolada, relaxada, diria que iludida em uma doce alienação, anestesia e ignorância.
Vivem num mundo particular com seus gatos, suas festas, suas biritas, suas compras no shopping, suas cirurgias reparadoras. Consomem o que podem, é claro, e aqui não estou criticando os que gostam de animais, nem de festa, tampouco de vaidades. O que me refiro é a ilha da fantasia que criam ao seu redor quando de suas disputas de quem tem o carro, a filha, a casa, a mulher, o marido ou o namorado mais lindo. Quando colecionam troféus de lata e de músculos no seu culto às aparências, à competitividade, à beleza vazia, à ostentação idiota. Parafraseando uma postagem de rede social, alguns brasileiros vivem num mundo “onde sobram brilhos e faltam neurônios”. Passam suas vidas de futilidades idolatrando e copiando ricos e celebridades sem conteúdo, espelhando-se em falsos heróis de novelas globais repletas de romances machistas e classistas, em jogadores de futebol iletrados e criminosos, em personagens de fúteis reality shows, em fraudadores da receita, em ladrões dos cofres públicos ou em corruptos em geral políticos ou não.
Vivem entre as quatro paredes de suas casas, apartamentos e condomínios fechados, dentro do carro ou no trabalho e não percebem a rua, a calçada, a praça, a ciclovia, o trânsito que prioriza o carro, a falta de espaço para quem se desloca caminhando. Não gostam de serem chamados "trabalhadores", pois esses são os seus empregados, suas diaristas, seus pedreiros, seus motoristas de táxi, suas babás, seus atendentes de lojas, suas manicures, etc... Eles são empresários, médicos, dentistas, advogados, engenheiros, contadores, enfim, alguém que está acima de comuns trabalhadores.
A calçada, a praça, a ciclovia, o espaço público não lhes faz falta, porque não estão neles. Não percebem o quanto esses espaços precisam de atenção, manutenção e de ocupação. Eles reinam no trânsito, porque o abre-alas é para seus potentes motores. Desconhecem transporte público e se exercitam na esteira fixa da academia. Em tempo, transporte público no Brasil é destinado aos pobres, portanto pode ser precário, ruim, sujo e sucateado que ninguém reclama. Toda essa falta de ocupar espaços públicos tem como escusa a violência que os mantêm acuados dentro das casas, mas que ajudam a manter, enquanto não cobram iniciativas concretas para diminuir e/ou aliviar os problemas. Eles ainda seguem elegendo e apoiando pessoas que defendem o armamento dos cidadãos, a pena de morte, a volta do regime militar, a ditadura, a terceirização dos presídios, a violência e a exclusão como negócio, a precarização do ensino e o fim dos direitos trabalhistas.Esses brasileiros informam—se por um ou dois grandes meios de comunicação televisivos que os mantém sedados, possessos, bem lembrados ou esquecidos conforme a necessidade do sistema.
Escolhem seus representantes políticos seja deputados, prefeitos ou vereadores seguindo uma orientação implícita e / ou explícita de sua mídia favorita: o mais bonito, o mais rico, o mais bem vestido, o mais demagogo, o mais hipócrita, o mais polêmico, o mais machista, o mais religioso, o comentarista do jornal do almoço, o palhaço do programa do domingo, o mais piadista e assim continuam a cultuar ladrões, empresários afeitos a negociatas, gente totalmente alheia aos anseios da coletividade e com a mentalidade ainda nos séculos passados.
Coletivo, comunidade, bem-comum, bem público são palavras e expressões que não fazem parte de seu vocabulário. A essa sociedade não lhes importa algo que seja para todos, portanto, não entendem o significado real de democracia e coletivo.
Também não enxergam e não se importam com as desigualdades, já disse Norberto Bobbio, filósofo político italiano, isso lhes é " tão natural como a diferença entre o dia e a noite".
A polícia, os seguranças privados, os "cidadãos de bem" matam mulheres, homossexuais, crianças e adolescentes todos os dias nas ruas, mas isso lhes soa somente como fatalidades. E quando opinam sobre as “fatalidades”, criminalizam as próprias vítimas, os pais, as mães, as próprias crianças, num emaranhado de hipocrisia e total distanciamento do problema social que só se agrava com sua cegueira.
Contentam-se em pagar caro e estar relativamente imunes à violência, porque contratam todo o aparato de segurança privada que os protege, porque a segurança pública só existe para proteger o dinheiro e os bens materiais. Com isso os negócios de vigilância privada tendem a prosperar muito e fico imaginando o quão produtivo e criativo para um trabalhador é vigiar patrimônios.
Em todos os Natais essa sociedade é motivada pela hipocrisia da televisão a contribuir com uns presentinhos e alimentos para alguma entidade assistencial e assim seu espírito religioso e caridoso fica em dia. No resto do ano, não há a menor lembrança que pessoas precisam comer todos os dias e a morte da pobreza segue impune e normal alimentando o círculo vicioso da desigualdade e da violência.
A rua, o mundo e as pessoas fora de seus círculos não interferem em suas vidas, porque eles não enxergam a rua, o mundo e as pessoas. Essa cegueira até se explica pelo fato que não temos história de educação para a cidadania. Tudo isso nos foi negado desde a colonização do Brasil, na Monarquia, na República Velha, na ditadura militar e se perpetuou na Nova República até os dias de hoje com a mais recente demonização da política e os discursos de anti-política que a mídia ajuda a incutir. A mesma mídia aposta no caos e na desestabilização da sociedade para que projetos políticos alinhados com a mudança desse paradigma não prosperem.
E essa sociedade segue cega, surda, muda, alheia e aplaudindo os golpes que a democracia, tão jovem, tem recebido nos últimos tempos. Como não enxergam, não vêem, não vendo, não sofrem, não sofrendo, não percebem, não percebendo não contestam, não contestando, seu mundo segue sendo conduzido por quem se deixam conduzir.
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