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Sobre malandros e indolentes


Minha trisavó materna chamava-se Joanna e nasceu em 1867 em Corrientes na Argentina, filha de um negro com uma índia ou vice-versa. Creio que minha família não tem informações mais precisas sobre seus ancestrais, tampouco sei como ela passou a viver na região centro do Rio Grande do Sul numa fazenda de gado de uma família numerosa, cuja mãe faleceu cedo deixando muitas crianças para cuidar.

Joanna, provavelmente era escrava da casa quase a ponto de obter a liberdade pela Lei da Abolição da Escravatura de 1888 quando teria 21 anos, já que a Lei do Ventre Livre não a libertou, pois já havia nascido há 3 anos quando a lei foi promulgada. 

O que se sabe é que ela virou a companheira do senhor viúvo, branco de 33 anos quando tinha apenas 14 anos de idade e com ele teve 12 filhos—algum familiar me corrija se eu estiver errada— incluindo minha bisavó. Juntando a prole da primeira esposa com a que viria a ter Joanna ao longo dos anos, já que era quase uma menina quando se juntou com meu trisavô, ela deve ter cuidado de mais ou menos umas 24 crianças e adolescentes.

Tenho lido e ouvido muitos absurdos nos últimos tempos depois que o Brasil tem vivenciado essa crise ética e política, mas essa semana o absurdo dos absurdos veio de um dos candidatos a vice-presidente da República, recém escolhido para a chapa do candidato Jair Bolsonaro, Hamilton Mourão, um general reformado do exército brasileiro, veja só...

O tal general citou em um discurso que o Brasil tem o povo que tem(?) porque é formado por negros e índios, que estudos comprovam que são malandros e indolentes respectivamente por natureza. Até onde li o tal general não citou a fonte nem o autor do estudo em questão e me veio à mente as teses de um certo senhor alemão que, na sua insanidade queria aprimorar a sua raça branca.

Logo passei a refletir sobre minha trisavó e de todo trabalho árduo que certamente teve durante toda sua vida naquelas condições e naquela época. Me pergunto que espaço teria essa pobre mulher para ser indolente ou malandra mesmo que quisesse? Mesmo se ao final do dia estivesse esgotada fisicamente, teria ela direito de ser indolente? Simplesmente poderia ela decidir que um dia não queria fazer nada e tirasse um dia livre para fazer o que bem entendesse como qualquer ser humano? Sobreviveria naquela época uma mulher indolente e malandra?

Veja que indolente e malandro podem ter o mesmo significado, preguiçoso, vadio, vagabundo. Há ainda outro sentido de malandro, o de espertalhão e safado. Seguramente minha indolente e malandra avó não deixou suas crianças, seus filhos ou os filhos de seu marido sem cuidado permitindo prevalecer suas características atávicas que, segundo o general, estavam impregnadas nos seus genes por ser filha de um negro com uma índia. Seus filhos e enteados, ao menos a maioria, cresceram muito bem, obrigada, e ela faleceu velhinha junto aos seus familiares em 1947.

Lembrando a história sobre a escravidão humana no Brasil e no mundo afirmo que os adjetivos malandro e indolente cabem bem mais ao homem branco que escravizava—aqui o verbo pode estar no presente— e vive às custas do trabalho escravo. E também dos que dizimaram—aqui também o verbo pode estar no presente— os índios para  tomar-lhes as terras onde viviam em paz há sabe-se lá quantos milênios. 

Os negros plantavam, colhiam, faziam a comida, costuravam, limpavam, lavavam, cuidavam e amamentavam as crianças e vestiam seus donos. Sim, os ricos senhores de escravos e aristocratas sequer se vestiam sozinhos naquela época. Quando, então os negros podiam ser malandros? Quando tentassem fugir daquelas condições, certamente eram resgatados e punidos severamente com castigos e torturas das mais variadas e cruéis. 

Afinal, quem são os indolentes e malandros? São os mesmos que ainda depois de abolida a escravidão continuaram a segregar, pisotear e discriminar negros e índios como uma raça inferior, que até hoje são massacrados, empobrecidos, refugiados, excluídos, encarcerados, assassinados e invisíveis em geral.

A Ciência já comprovou que, ao contrário do que se pensava no século 19, a miscigenação só aprimora e fortalece a raça humana. Porém um parte de brasileiros tacanhos e incultos mantém o pé em teses ultrapassadas, comprovando cada vez mais a sua intolerância, sua ignorância quando fazem oposição ao conhecimento e quando desrespeitam a diversidade e a pessoa humana.

Essa gente quer governar o Brasil, um país onde 52% da população é negra e mestiça,  onde o racismo é crime hediondo ou equiparável. Esse senhor além de cometer um crime, afrontou e injuriou toda uma raça que faz parte de uma mesma espécie chamada Homo...sapiens ?
Bem, no Brasil creio que os Neandertais eram mais evoluídos que a turma que apoia o tal general.

Não espero justiça, ao menos não agora, porque o sistema judiciário brasileiro, de direito a Constituição Federal não lhe permite, mas de fato pensa da mesma maneira.
Aqui só resgato a memória de minha trisa, uma mulher negra-índia que já foi várias vezes homenageada festivamente com muito orgulho e grandes encontros organizados pelos seus descendentes. Fica em paz, Joanna.




Comentários

  1. Eliane, ao ler a história de Joanna, tua trisavo, o que me impressionou muito foi a mulher forte e guerreira, ao mesmo tempo, resignada, em que ela se transformou, criando todos aqueles filhos com as dificuldades da época. Joanna, representa o estereótipo da mulher daquele tempo, serviçal, escravizada, muitas vezes maltratada pelo seu Senhor, mas corajosa, acima de tudo.
    A miscigenação de negro - indio torna Joanna essa pessoa incomparável, de tamanha bravura que originou outros tantos descendentes espalhados por aí a fora.
    Achei louvável tua iniciativa de resgatar Joanna e sua história, demonstrando a sua importância na construção das raízes de tua família.Valorizemos o negro, o índio, o branco (europeu) por terem contribuído de forma relevante, originando uma nova raça - brasileira! Em nosso país, hoje podemos nos orgulhar dessa pluridiversidade cultural que nos enriquece, e acima de tudo nos diferencia do resto do mundo.
    Amei conhecer Joanna, seu passado e sua trajetória! Mais ainda, conhecer e poder conviver com alguns de seus descendentes... Uma história de luta - de preconceitos - mas com certeza,
    valeu a pena!

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    1. Obrigada, Janice. Esses tempos obscuros de Brasil estão me provocando muita reflexão.Espero com isso também ajudar a provocar, no bom sentido, muita gente e levantar o debate sadio e plural. Essa postagem coloquei em modo público no Facebook e gerou centenas de compartilhamentos, comentários e curtidas, mas também muitos ataques de pessoas dominadas pelo ódio e a ignorância que nos assaltam a cada dia e nos deixam mais e mais perplexos.

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