O Brasil acaba de eleger um novo Presidente, depois de uma campanha eleitoral cheia de atipicidades e irregularidades. Aconteceram denúncias de Caixa 2, uso de contratação de empresas para disparar mensagens instantâneas com conteúdos falsos, lives em redes sociais, ausência de debates televisivos para confrontação de ideias, pouca discussão sobre os planos de governo e muito questionamento sobre moralidade, gênero, classe e raça. Além de tudo, houve um inusitado e estranho ataque à faca ao candidato favorito que até o momento não está totalmente elucidado, aberto à muitas especulações para futuros desdobramentos, esclarecimentos e outros fatos afins que poderão vir à tona.
Em meio aos principais problemas que a população apontava legitimamente, a preocupação com a corrupção, com a roubalheira institucional e com a violência nos centros urbanos, abriu-se um espaço para ir modelando uma candidatura reacionária e fascistóide que a princípio me parecia um tanto surreal para o século XXI e para o Brasil, uma terra conhecida pela cordialidade, pela boa convivência com a diversidade e pela alegria de sua gente.
Assim como nos Estados Unidos, um país essencialmente democrático e livre, Donald Trump também parecia irreal. Eu confesso que resistia à ideia e não achava possível uma candidatura desse porte sobreviver e alcançar o posto mais alto da República. Até hoje me repugnam as falas do Favorito e não suporto ver sua figura nas redes e na televisão, assim como de seus seguidores, uma turma afeita à violência, à truculência, à ostentação de armas e à atitudes e falas ignorantes e bizarras contra as minorias, escancarando preconceitos, racismos, pregando opções militaristas para os problemas do país, ao mesmo tempo que seu slogan de campanha dizia: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos, típico do nazi-fascismo.
A classe média brasileira encontrou enorme reflexo nessa fala feroz do ex-capitão do exército que fazia oposição aos governos do Partido dos Trabalhadores. As políticas de inclusão e de distribuição de renda já vinham causando, a princípio veladamente, bastante desconforto. Mas esse desconforto foi, aos poucos, sendo verbalizado à medida que as denúncias de processos criminais iam se acumulando na tão famosa operação Lava Jato que ia priorizando apurar denúncias de quem estava no governo.
Começaram assim as manifestações anticorrupção verde-amarelas regadas a champanhe, selfies e abraços com a polícia e, principalmente muita disseminação de ódio às esquerdas e ao PT que todos conhecemos. Assim foram-se repercutindo imensas críticas negativas a todas as políticas de inclusão e de distribuição de renda implementadas pelo governo petista.
Aliada às denuncias de corrupção, mais esse pontos de desconforto que revoltavam a classe média, não casualmente, todas envolviam o repúdio à ascensão social dos mais pobres.
Primeiro foi a política de cotas, porque afinal não era mais suportável ver seus próprios filhos na mesma Universidade pública ou privada dos filhos de seus empregados ou diaristas. Para ilustrar o fato cito o exemplo do premiado filme Que horas ela volta de Anna Muylaert, o retrato do comportamento classe média brasileira. Depois, com o crescimento do poder de compra da classe mais pobre, para a classe média era insuportável ver seus empregados e diaristas chegarem de carro no trabalho, por exemplo.
O mesmo aconteceu com incremento do turismo, também pelo aumento do poder de compra, mais pessoas passaram a viajar e lotar os aeroportos, lugar antes reservado aos ricos. Tornou-se insuportável para a classe média ver aquela gente na sua frente na fila do check-in e do seu lado no assento do avião.
O mesmo fenômeno ocorria nos restaurantes e nos shopping centers. Outra barbaridade cometida pelo governo do PT foi estender direitos trabalhistas para as empregadas domésticas como FGTS, férias, décimo-terceiro, carteira de trabalho, etc. Muito melhor era manter aquela jovem ou senhora— as mais das vezes negra— morando naquele quartinho minúsculo de suas casas, disponível 24 horas do dia até para alcançar-lhes um copo d' água ou ajudar a trocar de roupa —coisas que qualquer mortal pode fazer sozinho— e não pagar um centavo a mais.
Conservava-se assim o regime de semiescravidão secular e a elegante tradição de exibir a criadagem uniformizada nos lares abastados brasileiros. Lembrem que a própria engenharia dos prédios no Brasil contempla— ao menos os mais antigos— elevador de serviço e elevador social -afinal, classes distintas não podem dividir espaços- e dependência de empregada que é sempre um cubículo mal ventilado e mal iluminado.
Alguém há de lembrar também que haviam ascensoristas em prédios de grande circulação de pessoas e ainda persistem os sempre atuais porteiros nos condomínios fechados que seguem abrindo portas ou apertando o número do andar para as madames, para os doutores sem doutorado, para as patricinhas e mauricinhos também bastante aderidos à candidatura do Favorito.
Seria natural que em meio a esses descontentamentos sociais e econômicos poderia crescer uma candidatura tão espúria como essa advinda de uma das muitas legendas de aluguel existentes no Congresso Nacional?
O Favorito é a antítese do ideal de qualquer ser humano— quem dirá de um político— pois um estadista precisa ter algumas qualidades para lidar, articular e negociar com a sociedade. Este é declaradamente homofóbico, misógino, machista, racista, estúpido, violento, irascível, favorável à tortura e amigo das ditaduras. Basta abrir seu histórico de declarações na Câmara dos Deputados, na TV e na Internet e comprovar que está tudo lá.
Recentemente estava sendo julgado um único processo por apologia ao estupro no qual foi condenado. Todas as milhares de declarações suas que são recheadas de inconstitucionalidades não chegam aos tribunais, pois está protegido pela imunidade parlamentar de incríveis 27 anos de vida pública.
Com um plano de governo reacionário de extrema-direita, segundo especialistas mal fundamentado e com pontos bastante obscuros, declarava em campanha a sua ignorância em vários assuntos que os delegava aos especialistas de sua confiança o que escancarava sua total inépcia, falta de argumentação, de conhecimento político e do funcionamento da máquina pública.
Baseados na indignação com o sistema corrupto, leio em redes sociais uma infinidade de pérolas de seus apoiadores. Um exemplo: O Brasil precisa ser desinfetado com Qboa(alvejante) e que só um Presidente com huevos (testículos) para dar conta do recado.
Pergunto, o quê precisa ser desinfetado? Ou quem ? O que significa dar conta do recado? Afinal, o que os eleitores do Favorito querem para o Brasil? Que projeto de país têm em mente? Acabar com a corrupção. Certo, é uma boa resposta para começar, mas me pergunto se a partir de agora a corrupção, que será combatida, retoricamente com o presidente com huevos como foi prometido, vai MESMO acabar ou ela apenas NÃO SERÁ MAIS NOTICIADA?
Outra pergunta, quais são as características de um presidente com huevos? O que vejo é um homem arrogante, intolerante, de caráter violento e vociferante. Durante a campanha política, nos palanques, era de praxe fazer sinal com as mãos como se estivesse empunhado uma arma sendo engatilhada, inclusive estimulando crianças de colo a fazerem o gesto. Vejo no novo presidente um homem de riso sarcástico e que não sorri ou que, quando o faz é um sorriso nervoso e um tanto forçado. Pior ainda é quando ele e seus pares evocam a religião num Estado constitucionalmente laico. O neoliberalismo econômico, a austeridade com políticas de inclusão e o militarismo darão o tom de seu governo.
Enfim, sinto que os eleitores desse protótipo de estadista serão frustrados em um breve espaço de tempo, porque tudo que ele representa não faz parte do mundo civilizado e do ideal que o mundo civilizado, ainda não alcançado, continua perseguindo. Não há governo que governe só para uma parte da sociedade que tenha êxito, a não ser que o próprio governo elimine a outra parte—como ele mesmo citou. Bem, isso é bastante comum nas ditaduras que ele mesmo apoia.
Um dado também ficou claro, o Favorito era o favorito dos mais ricos, dos grandes empresários, dos profissionais liberais, dos meios de comunicação e dos bancos. O analfabetismo político, a manipulação midiática histórica, a ignorância e os preconceitos da classe média deram a tônica num processo eleitoral dos mais bizarros da história do Brasil.
E nesse sentido haverá uma tentativa de calar, criminalizar e perseguir movimentos populares de moradia, de terras, de indígenas, de comunidades LGBT, estudantis, sindicatos de trabalhadores e organizações de proteção às minorias. Inevitavelmente, haverá revoltas populares. Quem é invisível ou largado à margem da sociedade sempre tenta encontrar uma maneira de se fazer visível e ter voz, e isso tanto para bem quanto para mal. E diante de todo esse quadro não cabe a um presidente e suas assessorias punir ou fazer exortações justiceiras e represálias. Para isso existe a Justiça. Ao Presidente cabe cumprir a Constituição e governar para o bem do país e de todos. Ao menos nas democracias é assim. Mas, será o Brasil uma democracia a partir de janeiro de 2019?
A nós, incompreendidos e demonizados pelo senso comum das simplificações e das generalizações, defensores das liberdades individuais, do Estado Democrático de Direito, da Igualdade e do Socialismo Humanitário nos cabe sempre a difícil tarefa de nadar contra a corrente, resistir e seguir.
Comentários
Postar um comentário
Sinta-se à vontade para comentar