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A maior revelação é o silêncio


O silêncio invariavelmente é saudável, instrutivo, reflexivo, prudente, calmante, paliativo nas dores e nas tentativas de compreensão da realidade. Mas existe um silêncio que ensurdece, que machuca os ouvidos alheios e que revela um estardalhaço de verdades muito mais do que um discurso articulado e coerente.
2019 começa com esse silêncio,  um retumbante e ensurdecedor mutismo coletivo.
É o silêncio daqueles que dizem não ter nada com ISSO, pois o mundo a sua volta é somente um habitat que não exige comprometimento e interação.
É o silêncio dos vaidosos que só percebem a si mesmos como criaturas e suas próprias conquistas como única fonte de contentamento e forma de vida.
É o silêncio dos cruéis, perversos e cobiçosos que colocam nos ombros do outro a culpa de suas próprias fragilidades ou se valem das fragilidades do outro para sacar-lhes o pouco que lhes resta acumulando assim fortunas privadas oriundas de patrimônio público.
É o silêncio dos rudes, dos ignorantes, dos equivocados, dos incautos, dos analfabetos  políticos que, desprovidos de razão e pensamento crítico, desconhecem como funciona o mundo fora de suas limitadas zonas de (des)conforto.
É o silêncio dos raivosos que antes gritavam aos quatro ventos o seu poderoso ódio em sons guturais e inumanos, indignados com comportamentos deturpados que eles mesmos continuam reproduzindo.
É o silêncio também daqueles que não se permitem vociferar, mas cuja indiferença os alimenta diariamente, porque afinal não são maus, feios e sujos como aquela maioria de estranhos seres que não são da sua classe.
É o silêncio dos homofóbicos que preferem ver calados, mortos ou espezinhados aqueles cuja figura teima em lembrar-lhes algo muito incômodo dentro de si mesmos.
É o silêncio dos covardes, que não sendo cegos, sentem-se molestados  pelo desconforto de uma gritaria que vem de dentro deles mesmos.
É também o silêncio dos invejosos e medíocres que desejam para si o mesmo protagonismo dos que gritam com propriedade e com algo a dizer.
Há também o silêncio dos caridosos que precisam da pobreza e das catástrofes para doar o que não precisam, desde que se mantenham imutáveis as situações e invisíveis a face dos que recebem.
Por último há o silêncio dos distraídos, indiferentes ou neutros que nunca entenderam o barulho e agora sequer escutam o próprio silêncio.

E em meio a esse silêncio, o que resta é o murmúrio dos arrogantes, dos grotescos, dos sarcásticos e dos desvairados que fazem da extrema ignorância e da idiotice seus bens mais valiosos.

Haverá o tempo do arrependimento, da razão, da prudência, da ponderação, da reflexão e do bom senso ao menos em baixo volume?



Comentários

  1. Invejável Eliane, essa forma peculiar, tão tua de expressar pensamentos, ideias, sentimentos que refletem uma realidade, por vezes, sórdida, medíocre, egoísta, ignorante...cujo silêncio se faz perceber nas mais distintas situações. Quem dera, fosse o silêncio, a voz da verdade, da lealdade, da sabedoria...e de tantos que, como nós, lutamos por um país mais justo e igualitário.
    Com muita perspicácia, fazes uma abordagem de texto que revela perfeitamente o momento presente. O silêncio e suas variáveis na conjuntura social e política atual, de forma a aguçar até os mais silenciosos. Muito precisas tuas colocações - analisam, advertem, questionam... para uma retomada!

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    Respostas
    1. Quem dera os silenciosos não estivessem tão perto de nós, entre amigos, familiares que ao invés de juntarem-se a nós, mesmo que sem ruído, persistem no silêncio. É como se vivessem noutro planeta e que suas demandas nada tem a ver com as nossas, que o coletivo não importa e que é preferível manter olhos e ouvidos fechados. Retomada? Não creio, a sociedade está muito contaminada.

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