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O avanço da ignorância e o elefante na sala



Imagem : https://www.independa.com.br/livro/paulocamposdias/

Informe Semanal é um programa da Televisão Espanhola TVE1 onde pudemos assistir no último sábado, dia 05 de janeiro uma reportagem sobre a posse do novo Presidente do Brasil Jair Bolsonaro. Com o título "Giro Extremo", a reportagem inicia dentro de um ônibus acompanhando um grupo de apoiadores do presidente eleito em caravana de São Paulo a Brasília para o dia da posse. Segundo o repórter, "o clima é de exaltação nacionalista com matizes religiosos". Vestidos com camisetas verde-amarelas, muitos iam enrolados na bandeira do Brasil,  cantando hinos de campanha- "Deus salve a Pátria Brasileira"- e fazendo o característico sinal de arma na mão que se popularizou na campanha do então candidato Bolsonaro.
Em outro momento, um casal gay é entrevistado e falam sobre seus temores quanto à sua condição que é mal vista pelo governo eleito. Contam que se casaram antes da posse e que mesmo vivendo em um bairro amigável, dizem eles, evitam manifestações de carinho em público pelo temor do rechaço ou violência a que estariam expostos nesses tempos de bolsonarismo. Esse é o momento mais lúcido da reportagem.
Um professor de Ciência Política de Brasília diz que "as instituições estão funcionando bem, portanto Bolsonaro vai ter que entrar num figurino, num marco institucional e se comportar (como governante) de uma maneira mais tranquila  e moderada". Aqui percebo que o repórter poderia ter pesquisado mais a fundo o real estado das instituições brasileiras e ter questionado o entrevistado sobre a factibilidade de suas afirmações. O professor disse ainda, "que o presidente vai ter que se articular com o Congresso para aprovar suas pautas". Isso é dizer apenas o óbvio, porque essa é uma das principais prerrogativas de um estadista, isso é fazer política. 
Outro entrevistado, um professor de Direito Internacional cita o economista e político liberal Roberto Campos, dizendo que "o Brasil precisa de um choque de capitalismo", mas a reportagem não indagou o que significa isso exatamente, na prática. Temo que a palavra "choque"  aliada a "capitalismo" realmente não seja nada auspicioso.
Impressionante. Impossível saber como e por que foram pinçados os depoimentos destes dois professores e por que não fizeram perguntas mais pertinentes a quem, por obrigação, deveria ter as informações mais qualificadas e aprofundadas do momento histórico brasileiro.
As imagens eram de Brasília, mas era estranho reconhecer o Brasil real ali. Parecia um lugar longínquo, uma republiqueta recém-descolonizada com seus habitantes totalmente desconectados da realidade. 
Os depoimentos dos apoiadores bolsonaristas, como de praxe, são repletos de simplificações e reacionarismos, expondo a mais completa indigência intelectual, tanto que algumas falas são dignas de piedade. Muitos carregam além das cores do Brasil, bandeiras  de Israel e Estados Unidos, bem como fotos  de seus líderes Trump e Netanyahu ao lado de fotos de Bolsonaro. Não creio que algum deles entenda o que significa o país norte-americano e o Estado de Israel no contexto brasileiro. Eu teria perguntado quem deu a idéia de mesclar as duas bandeiras estrangeiras às comemorações, pois havia na Esplanada dos Ministérios muitas bandeirolas americanas  e israelenses sendo vendidas pelos ambulantes no dia da posse.
Retorno ao relato do interior do ônibus e uma senhora diz ao repórter que era esquerdista na juventude, agora teve uma conversão radical e chora ao comentar sobre o atentado à faca sofrido pelo presidente meses antes. Diz ela:
- "Faço parte de um grupo de caravanas"... Nunca tivemos uma direita legítima no Brasil, nem com PSDB, nem com PMDB. Hoje a gente tem clareza pela internet, que nos permitiu fiscalizar todos os políticos e que a mídia é manipuladora, não dá todas as informações, mas agora isso acabou." conclui. 
Realmente é de doer tamanha inversão, desconhecimento e reducionismo dos fatos.
Eu perguntaria a ela se esse "nunca tivemos direita" é desde quando? Desde as Capitanias Hereditárias, do Império, da Ditadura Militar, do Golpe de 1964? Ora, deixemos para lá, quem se interessa por essas velharias de História do Brasil. É justamente essa incultura e obscurantismo, essa desconexão da realidade tão próprios da personalidade medíocre de Bolsonaro e de seus seguidores, que explicam a sua eleição e a aversão que ele tem à exposição à mídia, entrevistas, debates ao vivo e ao enfrentamento do contraditório. Seus marqueteiros perceberam que era inviável essa candidatura nos moldes tradicionais. Escondê-lo e protegê-lo dentro das redes sociais foi uma estratégia que deu realmente muito certo. 
Ainda sobre a senhora bolsonarista, questionada sobre sua opinião quanto às uniões homossexuais, depois de hesitar um pouco afirma que é contrária ao tema. Eu perguntaria em quê sua vida pessoal é afetada diretamente pelo fato de existirem casais homossexuais e eles estarem casados. 
Enfim, para seus seguidores, dizia a reportagem: "Bolsonaro veio para colocar as coisas em seus devidos lugares e voltar a um Brasil idílico e tradicional" seja lá o que isso dizer.
Pode-se intuir, segundo a fala dessa senhora, que para eles um "governo de direita" quer dizer um governo direito, decente, correto, na direção certa e que "esquerda" seja todo o contrário. Relembrar aqui Jacobinos e Girondinos certamente faria de mim uma idiota que lê demais.
Indiscutível  a vergonha monumental e a exposição de tamanha ignorância exposta numa reportagem fraca, simplificada e superficial, talvez bastante contaminada pelos entrevistados que tinham pouco a dizer e pelo curto tempo de dezesseis minutos.
Enfim, ela não revela os motivos e as circunstâncias mais importantes que levaram à Presidência tal "ideário". Não entrevista os maiores líderes oposicionistas, tampouco nenhuma personalidade mais sensata (se existe) do novo governo, não analisa os interesses geopolíticos e as relações de poder entre os países do continente americano. Entretanto, deixa clara a tomada de posse de um personagem autoritário, discricionário e de extrema direita, que se notabilizou pelo extremismo de suas falas, pela campanha eleitoral feita pela internet e chamando atenção para o fato de que a eleição e aprovação de Bolsonaro só não ultrapassaram a de Lula em seus dois mandatos como Presidente do Brasil.
A reportagem seria melhor arrematada informando também que a elite econômica, a classe média e os políticos conservadores brasileiros que, sem candidato viável depois que lideraram o impeachment da Presidente Dilma, viram por bem apoiar um medíocre Bolsonaro com uma única grande finalidade, a de extinguir a esquerda e o Partido dos Trabalhadores. E com isso tomar de volta seus privilégios perdidos. Ainda a articulação do poder econômico com o sistema judiciário propiciou que a candidatura de quem seria invencível nas urnas fosse impedida e a (in)Justiça brasileira transformou um político preso e condenado sem provas, no primeiro preso político brasileiro do século XXI.
Agora o Brasil tem um elefante dentro da sala. 

http://www.rtve.es/alacarta/videos/informe-semanal/informe-semanal-giro-extremo/4926358/

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