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A derradeira lição do Mestre

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Alfonso Daniel Manoel Rodriguez Castelao ( 1886-1950 ) foi um escritor, dramaturgo, político e artista galego/espanhol. Estudou Medicina, mas costumava dizer: Fiz-me médico por amor a meu pai, não exerço a profissão por amor à humanidade. Sua emblemática obra, uma pintura chamada A derradeira Lección do Mestre uma das gravuras presentes no livro Galícia Mártir foi há pouco transladada da Argentina para a Galícia onde está exposta na Cidade da Cultura em Santiago de Compostela. Também é lembrado como O Guernica Gallego. 

O tema do professor assassinado é um dos mais recorrentes para significar a guerra civil espanhola ocorrida no início do século XX entre os anos 1936 e 1939 que favoreceu o início  da ditadura franquista e sua prolongada permanência no poder durante quarenta anos até 1976. O quadro mostra um cenário de terra arrasada e crianças choram ao lado do cadáver ensanguentado de seu professor.

A história da humanidade e do Brasil está repleta de atrocidades cometidas não só contra professores, também contra pensadores, artistas, cientistas, ativistas, políticos, etc. eliminados com o intuito de calar, silenciar, demonizar e expurgar do convívio pessoas que tinham o poder de ensinar, mostrar caminhos, iluminar e libertar mentes e corpos.

Nos dias de hoje, infelizmente não só professores mas o próprio conhecimento vem sendo assassinado e rebaixado para tons de zombaria e de insignificância quando vemos mestres de renome, intelectuais, cientistas, jornalistas, escritores e suas obras sendo enxovalhados em suas reputações na tentativa de diminuir e até suprimir seu valor e relevância. Os atores dessa façanha contemporânea são indivíduos de flamante ignorância irradiados para um meio mundo de outros iletrados onde se sentem todos muito confortáveis no seu culto ao obscurantismo e ao reacionarismo encerrados num constrangedor e ao mesmo tempo perturbador orgulho à burrice.

O caráter subversivo, insurgente, rebelde e questionador do espírito de bons mestres e pensadores incomoda os iletrados, porque eles não entendem e tampouco querem entender a dinâmica do pensar. Preferem reagir sem apresentar bons argumentos. Menosprezam o vanguardismo nas idéias, na literatura, nas artes, nas ciências sociais e políticas como fatores de influência e consequências do tempo presente e do desenvolvimento e evolução humanos. 

Jean Wyllys, professor universitário, jornalista e político recentemente auto-exilado na Alemanha cita aos 35 minutos de uma entrevista concedida em 2019 ao jornalista Pedro Bial  uma passagem de sua infância. Conta que aos seis anos—isso seria meados de 1980—foi à padaria a pedido de sua mãe e ali pediu seis pães, assim com o plural bem colocado. Um homem perguntou-lhe se ele era viado ou estudado com toda a assistência ao redor rindo da pergunta. Isso coloca as duas palavras em nível de igual preconceito, porque uma pergunta como essa feita a uma criança de seis anos mostra a abismal ignorância, insensibilidade e desrespeito por parte do indivíduo que despreza tanto os homossexuais quanto as pessoas que estudam e falam corretamente. 

Não obstante, para o caso em questão, uma criança de seis anos traz o bem falar de exemplos da casa, porque sequer ainda está alfabetizada e o bem falar só é aceito entre brancos e ricos, potenciais doutores desde a infância. Entre os pobres, para alguns é característica de efeminados. Esse é um típico exemplo do ódio ao saber com o agravante homofóbico, sintoma de uma sociedade pobre de princípios, discernimentos e doente de valores. Chamo atenção para o fato ser de ocorrência atemporal, pois tanto poderia ter ocorrido no Brasil Colônia, no século XX ou nos atuais anos 2000.

A leitura no quadro de Castelao desvela o extremo pesar com o assassinato da pessoa que transmitia o conhecimento muito bem retratada pelo artista. Seria essa a derradeira lição do mestre? Luzes e trevas, vida e morte em eterna batalha? Enquanto de tempos em tempos a luz avança, as trevas nunca desistem e como ciclos vão se alternando. Assim, desenvolvimento humano e evolução postergam-se ou simplesmente estacionam para deleite dos democratas de fachada e dos fundamentalistas. 

Um dia alguém acende uma luz, outro dia, vem outro e apaga. 


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