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Tempos de ódio


A personagem Carminha interpretada por Adriana Esteves na novela Avenida Brasil da Rede Globo

Já contei certa vez numa postagem em rede social um breve episódio que passei com uma colega brasileira que conheci no Curso de Espanhol para imigrantes na Cruz Vermelha Espanhola. Era uma manhã de março de 2016, ela chegou um pouco ofegante e alguns minutos atrasada na sala de aula. Entre eufórica e um tanto perturbada ela começou a me contar que a Polícia Federal brasileira tinha acabado de prender o ex-Presidente Lula. Foi aquele dia bizarro da condução coercitiva, mas que muitos desavisados desfrutaram como uma efetiva prisão. A polícia em consonância com a mídia fez questão de apresentar um grande espetáculo midiático para deleite do sistema punitivo de exceção que já dava ares de tomar conta do país. Só que isso tudo passei a entender algum tempo depois.

Minha colega estava visivelmente ansiosa, com a respiração curta, não prestava atenção na aula, tentava falar comigo, mas atrapalhava a classe. Achei melhor pedirmos para sair um momento, porque percebi que ela quase passava mal. No corredor me contou os detalhes da tal prisão, que tinha acompanhado tudo pela TV Globo Internacional. Interessante que as pessoas saem para morar fora do Brasil, mas não conseguem sair da TV Globo. 

Minha colega citava muito o nome de um tal juiz chamado Sérgio Moro, dizendo que era o "seu herói". Fazia só dois anos que eu tinha saído do Brasil e nunca tinha ouvido falar nesse tal juiz que ela citava. Pedi mais explicações e ela tentava contar, mas com a fala entrecortada, hiperventilando, com sinais de muita ansiedade. Dizia que horas antes tinha até brigado com a própria irmã, que estava no Brasil, por conta do assunto. 

Tentei acalmá-la, enquanto pedia mais explicações e ao mesmo tempo já me espantando com seu olhar e seu jeito de desfrutar do fato que contava, não de uma maneira relaxada, mas com um misto de prazer e ódio incomuns, uma mistura de patológico e teatral que eu só tinha visto em novelas de televisão. Só faltava espumar como um animal raivoso. Percebi um misto de raiva e deleite. Tempos depois, quando eu lembrava da reação de minha colega me divertia comparando o fato com cenas de ódios homéricos entre os personagens Nina e Carminha da novela Avenida Brasil, como não poderia deixar de ser, da Rede Globo. Naquela época a novela estava passando na Antena 3 , canal da Espanha. 

Claro que o momento não foi divertido. Naquela hora eu tentei acalmá-la, enquanto explicava que eu era simpatizante do bandido preso a que ela se referia e que se alguém ali deveria ficar perturbada com a notícia seria eu. Foi nesse dia que eu presenciei pela primeira vez o ódio não só a um grupo partidário, ali também já se configurava uma aversão à política e aos políticos em geral, coisa que só algum tempo depois eu passei a conhecer melhor e até hoje tento entender.

Relato o fato tendo plena consciência que ninguém está obrigado a gostar ou defender políticos, tampouco partidos políticos de siglas A, B ou C. A democracia é para ser exercida, a diversidade de ideias é um princípio, no entanto as normas que regulam um Estado Democrático estão todas escritas e devem ser respeitadas. E naquele momento daquela suposta prisão ninguém precisaria ser um profissional das leis e do direito para perceber que alguns artigos da Constituição Federal e do Código Penal estavam sendo violados.

Outra experiência que tive depois com a mesma colega talvez explique o porquê alguns brasileiros não odeiam somente determinados políticos, mas a classe política como um todo e a própria democracia e a diversidade como prerrogativa legal e civilizatória.

Em outra ocasião estávamos na Festa das Nacionalidades que a Cruz Vermelha promove todos os anos para confraternizar professores, voluntários, funcionários e alunos da Entidade. Os estudantes eram obviamente de várias nacionalidades, mas a presença de pessoas do Marrocos, Paquistão, Egito, Senegal, Bangladesh etc. países originalmente de religião muçulmana ou de países do Continente Africano era bastante numerosa. 

Muitas colegas marroquinas compareceram vestindo seus elegantes trajes típicos, túnicas multicoloridas, lindos véus encobrindo as cabeças— os hijab que usavam todos os dias— seus instrumentos musicais, havia muita comida típica e uma alegria contagiante. Minha colega levou a filha pequena na festa. A menina devia ter uns cinco anos de idade e mal entrou no local do evento e começou a choramingar dizendo que tinha "medo de muçulmanos". Me estranhou muito que uma criança tão pequena soubesse quem eram aquelas pessoas e indaguei de minha colega o porquê da criança reagir assim. 

Ela me respondeu de uma maneira meio sonsa e dissimulada, dizendo que não fazia ideia, desconversou e ainda repreendeu a menina. Obviamente uma criança de cinco anos não faz esse tipo de comentário. Ficou claro para mim que ela já tinha ouvido falar de muçulmanos em casa e era de casa que vinha seu sentimento. Crianças não dissimulam. Naquele momento não precisei ouvir mais nada. Eu acabava de conhecer minha companheira brasileira de curso e percebi que não era alguém que valesse uma amizade. 

Na época até nem me preocupei com o discurso antipolítica que ela exaltava, mas percebi nesse pouco contato outras características e reações de sua parte— além da intolerância e do preconceito— ela tinha aquele ar de quem pensa que tem mais valor que os demais. O que me estranhou é por qual razão ela estava ali frequentando um local público e gratuito de apoio à imigrantes e que fomenta a integração entre pessoas multiculturais como a Cruz Vermelha. De um certo modo ela estaria negando sua própria condição de imigrante e com seus preconceitos e "medos" de culturas diversas.

Nesse momento lembro que alguns seres humanos são da maior mesquinhez no momento de dar, mas em igual proporção são ávidos no momento de receber. Por questões de sobrevivência, saber o idioma do país onde se vive é condição básica, então nesse caso o peso das aulas de espanhol gratuitas fez com que engolisse em seco o preconceito o mais que pôde.

Felizmente, essa colega foi uma exceção, mas também um aprendizado. Conheci muitos outros brasileiros e pessoas de outras nacionalidades, antes e depois dela na mesma Organização e mantenho até hoje boas amizades. Claro que me afastei dela, nos vimos outras vezes nas aulas, nunca mais falamos sobre o assunto, evitei encontros e telefonemas. O curso acabou naquele semestre, ela não retornou nos outros períodos e nunca mais nos vimos. De lá para cá, desejo que ela tenha aplacado seu ódio e seus preconceitos e não tenha se juntado às fileiras que cresceram desde 2016 e levado o país à catástrofe social e política que está hoje mergulhado.

Eu desejo que tenha sido assim, mas no fundo sei que não foi. Ela já era forte candidata às fileiras do ódio.


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