Pular para o conteúdo principal

Mais além do complexo de vira-latas





Manuela D'Ávila, a jovem jornalista, ex-vereadora, ex-deputada, candidata a vice-presidência da República nas últimas eleições e militante política brasileira vem apresentando seu livro Revolução Laura mundo afora e sempre acompanho seus movimentos nas redes sociais. Dias atrás, ela e o Pastor Henrique Vieira reuniram pessoas para o lançamento do livro deste último O amor como revolução em um ambiente inusitado e inabitual, ao ar livre nas escadarias do viaduto da Avenida Borges de Medeiros em Porto Alegre o que parece ter chocado alguns, mas a mim muito mais, quando me deparei com o seguinte comentário em rede social:

—Cena Patética ... sentada na BORGES é o quadro da dor. É tipo navegar no arroio dilúvio da Ipiranga e achar que está em Veneza.

Esse é o retrato fiel do complexo de vira-latas brasileiro, um complexo de inferioridade já estudado por alguns autores, mas cuja expressão foi criada por Nelson Rodrigues para designar não só o trauma sofrido pelo povo brasileiro ao perder a copa do mundo de futebol para o Uruguai em 1950, mas que também designa algo mais :

"Por complexo de vira-lata entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima."

É justamente por causa deste vira-latismo que os lugares emblemáticos vão se degradando pelas cidades brasileiras. É justamente pelo descaso e pelo ódio de alguns  pela sua terra, pelas suas coisas e pela exaltação desmesurada pelo que é de fora, o quadro é bem mais do que doloroso. O complexo faz pessoas desqualificarem sua própria cidade, seus monumentos, sua cultura, seu patrimônio e até sua gente.  Que teria dito a moça do comentário se o evento fosse no Parque da Redenção? Que Manuela, certamente estaria fantasiando estar no Hide Park de Londres, no Parque del Retiro de Madrid ou no Central Park de Nova York
O Arroio Dilúvio poderia ser muito bem equiparado aos canais de Veneza ou de Amsterdan se os porto-alegrenses tivessem mais respeito ao meio-ambiente, ao patrimônio natural e valorizassem seu entorno.

Seguramente, Manuela já circulou por todos esses lugares e tenho certeza que age com a mesma naturalidade quando vai a Nova York, Madrid, Paris, Porto Alegre, São Paulo, Pontevedra, Quixeramobim ou Formigueiro. Ela não se acha superior, tampouco inferior a nada nem a ninguém e seguramente esteve muito à vontade e com alegria compartilhando com aquelas pessoas numa escadaria da sua cidade e ora vejam, falando de amor e revolução.

Cabe ressaltar também que Manuela D'Ávila vem sendo alvo sistemático dos odiadores de plantão desde que se tornou conhecida pelo país afora durante a campanha eleitoral de 2018. O extremismo de direita não poupa e sua artilharia de ofensas é sempre muito pesada contra a ex-deputada. No caso do comentário em questão, bem mais que o ódio, a inveja também está claramente manifesta.

Patética é a inveja. Patética é a ignorância. Patética é a incapacidade de entender que a dor não é ocupar um espaço público que se tornou feio, degradado e de má reputação pelo descaso. A dor está no desprezo e na indiferença da população, na negligência e na inércia política, quando todos subvalorizam os espaços públicos. Dor ainda maior é saber que o poder público nada ou pouco faz para manter esses espaços organizados, humanizados, cheios de gente orgulhosa e disposta a cuidar do que é naturalmente seu.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Morro do Caracol

Foto: Rua Cabral, Barão de Ubá ao fundo e o Mato da Vitória à esquerda Arquivo Pessoal O povoamento de uma pequeníssima área do bairro Bela Vista em Porto Alegre, mais especificamente nas ruas Barão de Ubá que vai desde a rua Passo da Pátria até a Carlos Trein Filho e a rua Cabral, que começa na Ramiro Barcelos e termina na Barão de Ubá, está historicamente relacionado com a vinda de algumas famílias oriundas do município de Formigueiro, região central do Estado do Rio Grande do Sul.  O início dessa migração, provavelmente, ocorreu no final da década de 40, início dos anos 50, quando o bairro ainda não havia sido desmembrado de Petrópolis e aquele pequeno território era chamado popularmente Morro do Caracol. Talvez tenha sido alcunhado por esses mesmos migrantes ao depararem-se com aquele tipo de terreno. Quem vai saber! O conceito em Wikipedia de que o bairro Bela Vista é uma zona nobre da cidade, expressão usada para lugares onde vivem pessoas de alto poder aquisitivo, pode ser ...

O Caderno, escritos do amanhecer

Queria escrever no teu caderno. Naquele que resgatei, antes de ser largado no lixo. Fiz isso talvez, digo talvez, por uma súbita intuição de desfecho. Queria ler e juntar teus pensamentos com os meus, misturando as letras e os manuscritos. Queria poder juntar nossas inspirações, talvez criar um romance, um conto, uma narrativa breve que seja, mesmo que tenhamos estilos diferentes e tua criatividade vá muito além da linguagem e do meu amadorismo. Queria misturar nossos traços, rascunhos,  já quase ilegíveis, formados numa infância onde se fazia caligrafia— isso já faz tanto tempo!—até produzir um texto ao menos coerente e coeso como mandam as leis da escrita. Ou não, pois ainda busco a licença poética dos artistas, que têm liberdade com as palavras, ao contrário das palavras ditas que podem ser a nossa desgraça. Eu precisava do caderno, não para descobrir teus segredos, mas para ter o privilégio de escrever de meu punho, junto ao teu, naquelas folhas amarradas em espiral com uma cap...

2025

  Foto: Pinterest Essa noite eu tive um sonho. 2025 tinha desistido de sua estreia e era 2008 de novo. Não entendi o porquê de voltar 17 anos atrás. Terá sido 2008 um ano cabalístico, com um significado oculto? Ou só um número aleatório? Foi bom ver algumas pessoas conhecidas bem mais jovens, saudáveis, outras vivas e alegres. Eu não me vi, pois protagonizava aquele delírio noturno, mas sentia que os 17 anos tinham passado em meu espírito, alojados à força, a despeito da rebeldia do 2025. A humanidade se curva ao tempo, mas no meu sonho pela primeira vez o tempo se curvou à humanidade. Posso até imaginar, o clichê Bebê 2025 espiando o Senhor 2024 antes da meia-noite e vacilando se nascia ou não. Bem, anos não nascem como bebês, são imateriais, mas este talvez tivesse certa racionalidade humana(?), certo sentido de prudência, sensatez e clarividência. É isso, clarividência. A despeito dos melhores augúrios para 2025, ele próprio não estava convencido. Os anos anteriores, principalme...