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Trabalho infantil e cegueira social





Eu não queria estar escrevendo sobre trabalho infantil, porque imaginava que fosse página virada, ao menos no sentido institucional, legal e em repúdio social depois que o Brasil aprovou o Estatuto da Criança e do Adolescente em 13 de julho de 1990. Nosso país foi um dos primeiros a seguir os princípios das Nações Unidas em relação aos direitos da criança.

Porém, as redes sociais se encarregam diuturnamente de nos bater na cara com opiniões sem fundamento, generalizações rasteiras e distorções das mais variadas sobre assuntos complexos, sensíveis e doloridos da vida e da história.

O combate ao trabalho infantil, embora sendo tema de vasta legislação, infelizmente segue sem ser erradicado no Brasil e no mundo. Existe muita literatura disponível e dados nacionais e internacionais para quem quer aprofundar o assunto sobre a exploração do trabalho infantil ao longo da história. 

O que quero chamar a atenção é o quanto a desigualdade econômica, característica gritante do país, se manifesta aliada à cegueira social nestas falas que classificam como trabalho quando crianças de classe média e alta fazem pequenas tarefas caseiras, como guardar os brinquedos, arrumar a cama, lavar pratos ou varrer o quintal. Ou ainda que uma criança ajude os pais no comércio da família ou que faça pequenos artesanatos ou doces para vender à vizinhança.

Tudo isso sem ter a obrigação de entregar o valor obtido de seu trabalho para que retorne em alimentação, teto ou estudo, porque a família lhes garante a subsistência. Tarefas desse tipo não podem ser denominadas trabalho, pois apenas devem fazer parte do mundo lúdico infantil e não há nenhum problema em serem estimuladas.

Todavia, falar em trabalho infantil sem sair do âmbito das classes que comem, vestem, moram, trabalham, estudam, viajam e se divertem é fechar os olhos para a miséria e pobreza extremas, uma dura e extensa realidade que parece não ter a mínima importância ao conjunto da sociedade que se expressa nas redes, tampouco dentro do atual governo. 

Quem de nós gostaria que seu filho de 6 a 16 anos engraxasse sapatos numa praça de uma grande cidade à mercê de adultos de todo tipo, ou empurrasse um carrinho de picolé durante quilômetros no sol de uma cidade quente, ou tivesse que puxar uma carrocinha pesada de catador?

Quem de nós se sentiria confortável tendo que mandar as crianças para andar no meio de um lixão a procurar algo humanamente usável ou consumível, ou ver calos em suas mãos por estar cortando cana-de-açúcar, ou fazendo feridas nas mãos e nos pés em uma carvoaria, ou ainda vê-las passar doze horas por dia extraindo minérios para a indústria?

Quem de nós já se imaginou criança tendo que passar doze horas costurando roupas de marca para a indústria da moda ou manipulando agrotóxicos numa lavoura ou  arriscando a vida vendendo doces num sinal de trânsito ou carregando excesso de peso na construção civil?

Tragédia maior seria imaginar nossa filha de 15 anos obrigada a  prostituir-se para comprar alimentos numa rodovia do norte-nordeste do país, ou se sua filha de 10 anos tivesse a responsabilidade de cuidar de seus irmãos menores, dois ou três pequenos para alimentar e estar de olho enquanto vocês estão fora trabalhando.

Em todas essas situações, o mais grave ainda seria que nossos filhos estariam definitivamente fora da escola. Em todos esses poucos exemplos, indiscutivelmente, o trabalho rouba a infância e em consequência rouba vidas adultas saudáveis.

Tudo se tornou seletivo nesse país, até a dignidade ou a indignidade.

É inacreditável que ainda precisamos voltar aos velhos temas e chamar a atenção de jovens, adultos, parlamentares e governantes sobre esse flagelo humano e tantos outros como a homofobia, o racismo, a xenofobia, a tortura e a violência de gênero. 

A disrupção e a linguagem tóxica tomaram conta dos discursos do poder e estão contaminando o país. Muitas vezes isso vem acontecendo para tentar desviar a atenção de temas tão ou mais relevantes. Mas não podemos permitir que manifestações vulgares, descompromissadas e descontextualizadas contribuam para a normalização da desigualdade, pela invisibilidade dos excluídos e por destruir a percepção do direito universal de qualquer ser humano ao bem-estar social.

Trabalho infantil é crime.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Trabalho_infantil_no_Brasil

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