Pular para o conteúdo principal

Uma crônica em Santa Maria

Vista parcial da cidade de Santa Maria- Arquivo Pessoal

A Freguesia de Santa Maria da Boca do Monte, primeiro nome da cidade fundada em 1858, foi criada a partir de acampamentos de uma comissão demarcadora de limites entre terras de domínio espanhol e português, daí vem o nome de uma de suas ruas principais, a Rua do Acampamento. Santa Maria, hoje com  262 mil habitantes é a quinta cidade mais populosa do Rio Grande do Sul.  Com grande influência na região central do Estado, para a cidade  convergem cerca de um milhão de pessoas em busca de vagas em universidades, colégios tanto públicos quanto privados, comércio, serviços e atendimento médico-hospitalar desde pequena a alta  complexidade, sendo referência do  Sistema Único de Saúde para os municípios menores do seu entorno.

A cidade ficou conhecida mundialmente, ocupando os noticiários durante semanas, quando aconteceu aquela terrível tragédia do incêndio na Boate Kiss em janeiro de 2013 onde morreram 242 jovens e outras centenas ficaram feridas. Fato esse que, até o dia de hoje, a justiça brasileira não responsabilizou nenhum ente público ou pessoa física pelo ocorrido, tampouco indenizou familiares e vítimas.
Santa Maria segue o ritmo das cidades medianas do Brasil, com seu comércio local, pequenos e médios empreendimentos mais ou menos bem-sucedidos, três ou quatro centros comerciais e hipermercados bem organizados e com uma boa diversidade de produtos. A gastronomia é diversa, para todos os gostos e bolsos. Há bons restaurantes que servem buffet à quilo ou à la carte, churrascarias, pizzarias, bares, cafés e ainda uma boa variedade de estabelecimentos que proporcionam entregas domiciliares. Em alguns segundos, acessando aplicativos pelo celular pode-se pedir desde comida asiática até lanches rápidos, como é muito do gosto popular por aqui. Espetáculos teatrais e de música, salas de cinema, bares com música ao vivo, clubes, piscinas privadas e algumas atividades pontuais ao ar-livre levam entretenimento à população que pode pagar por isso.
O transporte público é feito por um grupo de empresas de ônibus mediante um Sistema Integrado Municipal que não está muito bem organizado e não dispõe de uma boa e moderna frota de veículos. Solicitei algumas informações por correio eletrônico através de seu sítio na internet e nunca me responderam. Alguns aplicativos podem ser acessados em busca de transporte privado, que em geral é mais bem atendido e não custa caro. O trânsito na cidade é pesado nos horários de pico. Os automóveis têm prioridade na mobilidade urbana, porque pouca ou nenhuma ação a favor dos pedestres são percebidas. Há duas ruas centrais fechadas à veículos, mas ambas degradadas pela falta de manutenção. Nas demais ruas centrais e avenidas de acesso ao centro os pedestres se protegem como podem, porque os motoristas, salvo exceções, não param nas faixas de segurança e as calçadas são em sua grande maioria cobertas de buracos, malfeitas, mal planejadas e inseguras. Todos esses maus atributos se remetem também às ruas e avenidas cheias de perigosas crateras por falta de manutenção, por negligência, uso de material de baixa qualidade ou simples descaso. Enfim, são inúmeras razões que convergem para a falta de planejamento e/ou má gestão. 
Mas nada desse descaso local parece incomodar os transeuntes. As visões acabam turvadas se as pessoas nunca vêm transformações e melhorias. O estrago e a deterioração se banalizam aos olhos de quem passa na pressa da vida. Das portas para fora, nos espaços públicos onde o governo deveria assumir sua responsabilidade e honrar os impostos que a população paga, o ambiente está sujo, poluído, degradado, feio, desprezado e negligenciado pela administração.

Locomotiva, o monumento localizado na Avenida Presidente Vargas homenageia os trabalhadores da antiga ferrovia da Rede Ferroviária Federal. No auge de sua atividade atravessava o Rio Grande do Sul transportando cargas e passageiros. O Trem Húngaro fazia a rota Porto Alegre-Uruguaiana sendo Santa Maria uma das paradas mais importantes, porém as viagens de passageiros foram encerradas em meados da década de 80. Hoje a Gare, a estação, um bonito conjunto arquitetônico do século 19 segue na tentativa de preservação. 

chafariz e o coreto da Praça Saldanha Marinho, o Teatro Treze de Maio a Vila Belgaconjunto habitacional do começo do século, completam o rol dos emblemas da cidade e realmente fazem jus a isso. Entretanto, mais recentemente foi instalada uma escultura baseada no deus Ícaro e nominada O Idealista localizada na rótula da Avenida Osvaldo Cruz vista de quem chega pela BR-287. Segundo seus idealizadores o monumento homenageia os visionários que fizeram e fazem a cidade prosperar. Há ainda uma tosca estátua de um gaúcho e seu cão numa das rótulas da Avenida Medianeira vista de quem chega pela BR-392. Ambas as esculturas me parecem de um gosto bastante duvidoso. Nenhuma delas chega aos pés do simbolismo e distinção da estátua do Laçador de Porto Alegre, por exemplo, tampouco de nenhum outro emblema mais antigo da cidade. Na minha opinião são exemplos de uma estética que, me atrevo a dizer, que se houveram visionários algum dia, eles já não existem mais ou foram embora junto com a prosperidade.

Vila Belga

Chafariz Praça Saldanha Marinho

Theatro Treze de Maio











Coreto da Praça Saldanha Marinho












As praças são arborizadas, mas todas, sem exceção tem as calçadas e bancos quebrados, mobiliário sem pintura e sem manutenção há anos. O Parque Itararé é uma grande área verde e seria um ótimo espaço de convivência ao ar livre, ideal para caminhadas, brincadeiras de crianças, prática de esportes e ciclismo, mas como todo o espaço público está degradado, esquecido pelas autoridades, com má reputação e subaproveitado. Não conheço as periferias, mas creio que se o descaso sendo visível no centro da cidade, intuo que não seja diferente ou será pior nos bairros mais afastados.

Um ponto positivo e importante citar no quesito mobilidade são as obras da chamada Travessia Urbana, grande obra de infraestrutura que vai favorecer fortemente os acessos às entradas da cidade apesar de ter um aspecto criticável, pois não contempla ciclovias. Vale dizer que é um projeto antigo da administração federal passada que segue em andamento e ao que parece será entregue em curto prazo.
A Universidade Federal de Santa Maria foi fundada na década de sessenta e desde lá abriga uma grande área de campus universitário, algumas dezenas de cursos de graduação, mestrado, doutorado, cursos livres e de extensão. A Instituição abriga uma multidão de professores, estudantes e funcionários públicos que ajudam a impulsionar a economia local e em tese, fomentam o conhecimento e a capacidade de desenvolvimento regional em todos os níveis. Digo, em tese porque o que acontece na realidade é que a maioria dos profissionais que se graduam e pós-graduam na Universidade completam o curso e vão-se da cidade. O poder público municipal me parece não estabelecer parcerias para aproveitar todo esse conhecimento acumulado e as pesquisas que são desenvolvidas nesse ambiente acadêmico acabam esquecidas nos arquivos da Universidade. Salvo o Hospital Universitário e as diversas faculdades da área da saúde, ao que parece são poucas as faculdades que partilham com a comunidade seu trabalho e conhecimento.

Quem passa alguns dias ou semanas vivendo e andando no centro da cidade, pode familiarizar-se com alguns personagens assíduos da rua, como o vendedor de agulhas de fogão da Avenida Acampamento, sentado parece que eternamente na borda da vitrine de uma das lojas. Pergunto-me sempre que o vejo, como alguém pode sobreviver vendendo esse tipo de coisa de segunda a sábado, faça chuva, faça sol, frio ou calor. Mas outro dia percebi que ele vem diversificando seus produtos para panos de prato, cds e dvds. O comércio informal também abre concorrências, mas pelo jeito não são desleais, porque vejo conviver bem o outro senhor que vende panos de prato e pelo meio ainda podemos encontrar um vendedor de pães e biscoitos e ainda o senhor da rapadura. Todos eles parecem ter mais de 50 ou 60 anos, certamente na tentativa de melhorar suas minguadas aposentadorias. A hipocrisia neoliberal chamaria essas pessoas de empreendedoras, mas que a realidade impõe seguirem trabalhando até a morte ao invés de estar comodamente em suas casas descansando de uma vida inteira de trabalho.

Há algumas décadas havia muitas pessoas marginalizadas pelas ruas e recordo muito bem de uma senhora negra, notadamente acima do peso, aparentando na época 40 e poucos anos. Ela praticamente morava na esquina da Rua Venâncio Aires com a Avenida Rio Branco na marquise de uma farmácia bem conhecida.  Nesse aspecto ainda hoje o cenário do centro segue desolador, pois a praça central e os prédios antigos do seu entorno como os clubes Caixeral e Comercial— emblemas de uma época, não menos desigual e injusta— degradam-se com o tempo e continuam abrigando moradores de rua em seus portais. De tempos em tempos esses moradores são expulsos, mas retornam, se não os mesmos, outros e mais outros. E não dá para deixar de citar também o povo indígena que segue aqui há décadas vivendo de seu artesanato depois de várias tentativas de inserção, mas pelo visto ainda sem visibilidade e compreensão.


Como em todos os lugares desse Brasil, o tempo vai passando, a paisagem vai se transformando, mudam os habitantes, mudam os governos, um prédio cai aqui, outro se edifica ali, mudam as cores, mudam as formas, mudam as luzes. O que parece imutável é o conjunto das percepções, dos olhares e das atitudes que seguem em um mesmo ritmo e direção. Entre retrocessos e avanços as cidades seguem lentas ou aceleradas dependendo dos interesses, das dificuldades, das omissões, dos esforços, das hipocrisias e das demagogias. Não podia ser diferente em Santa Maria.


Parque Itaimbé- Arquivo Pessoal


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Morro do Caracol

Foto: Rua Cabral, Barão de Ubá ao fundo e o Mato da Vitória à esquerda Arquivo Pessoal O povoamento de uma pequeníssima área do bairro Bela Vista em Porto Alegre, mais especificamente nas ruas Barão de Ubá que vai desde a rua Passo da Pátria até a Carlos Trein Filho e a rua Cabral, que começa na Ramiro Barcelos e termina na Barão de Ubá, está historicamente relacionado com a vinda de algumas famílias oriundas do município de Formigueiro, região central do Estado do Rio Grande do Sul.  O início dessa migração, provavelmente, ocorreu no final da década de 40, início dos anos 50, quando o bairro ainda não havia sido desmembrado de Petrópolis e aquele pequeno território era chamado popularmente Morro do Caracol. Talvez tenha sido alcunhado por esses mesmos migrantes ao depararem-se com aquele tipo de terreno. Quem vai saber! O conceito em Wikipedia de que o bairro Bela Vista é uma zona nobre da cidade, expressão usada para lugares onde vivem pessoas de alto poder aquisitivo, pode ser apli

Puxando memórias I

https://br.pinterest.com/pin/671177150688752068/ O apartamento Uma das mais nítidas lembranças da infância, eu não teria mais que cinco anos  é o quarto onde dormia. Lembro da cama junto à janela, a cama de meus pais e no outro extremo o berço de minha irmã mais nova, enquanto éramos só nós quatro. Durante a noite percebia a iluminação da rua entrando pelas frestas da veneziana fechada, enquanto escutava o ruído de algum carro zunindo no asfalto, passando longe no meio da madrugada. Até hoje quando ouço um barulho assim me ajuda a dormir. A sensação é reconfortante, assim como ouvir grilos ou sapos na noite quando se vive no interior.  Morávamos num apartamento de um pequeno sobrado de dois pavimentos com uma vizinhança muito amigável entre conhecidos e parentes.  O apartamento tinha dois quartos, uma sala pequena, banheiro, cozinha e um corredor. O piso era de parquet  de cor clara— termo francês usado no Brasil para designar peças de madeira acopladas. A cozinha tinha um ladrilho aci

Distopia verde-amarela

Foto: Sérgio Lima/AFP Crônica classificada, destacada e publicada pelo Prêmio Off Flip 2023 Dois de novembro de 2022, dia de sol pleno. Moro perto de um quartel. Saio para a caminhada matinal e noto inúmeros veículos estacionados na minha rua que não costuma ser muito movimentada. Vejo muitas pessoas vestidas de verde e amarelo ou enroladas em bandeiras do Brasil indo em direção ao prédio do Exército. Homens, mulheres e até crianças cheias de acessórios nas cores do país, um cenário meio carnavalesco, porém sem a alegria do samba. Pelo contrário, as expressões eram fechadas, cenhos franzidos.  Quando chego à esquina e me deparo com o inusitado, me pergunto em voz alta:    —Mas o que é isso? — um senhor sentado na entrada de seu prédio me ouve e faz um alerta: "A senhora não passe por ali, é perigoso!” Então entendi que o perigo era pós-eleitoral. Os vencidos tinham fechado a rua em frente ao quartel e pediam intervenção militar . Ou seria federal? Não havia muita coerência no uso