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A rede, o ódio e as falácias


A rede social cumpre bem seu espaço para desabafos e desafogos e além de divertir aceita e recebe likes de toda sandice que sai da cabeça de quem quer que seja, inclusive da minha.  Leio muitas postagens opinativas de amigos, familiares, conhecidos e de pessoas desconhecidas. Não raro essas opiniões fogem totalmente do meu modo de ver as coisas, mas a pluralidade da rede social é a base para que ela se sustente, desde que essa liberdade de expressão  e de sentimentos não interfira na política de conteúdos da rede, que quase ninguém lê, é certo, mas vamos subentender aqui que a rede faça esse controle.

Me chama a atenção os discursos de ódio que andam bastante comuns e creio que aos usuários lhes falta um tanto de discernimento para separar o que é liberdade de expressão, notícia falsa e opinião nas questões científicas, nos fundamentos do estado de direito, nas políticas públicas e ou na legislação vigente para citar os assuntos mais recorrentes. É comum pessoas fazerem comentários e postagens totalmente inconsistentes, infundados e de falsidade aterradoras sobre assuntos que têm pouco, nenhum conhecimento ou conhecimento distorcido.

Para exemplificar, um dia desses me deparei com a postagem de uma senhora minha desconhecida, felizmente. Ela pedia licença aos seus amigos para mandar o ex-presidente Lula para aquele lugar. Lula, vai tomar no ... era o título da postagem. No seu entendimento Lula lhe ofendia muitíssimo, quando se dirigia ao conjunto dos trabalhadores igualmente, ou seja como se todos os trabalhadores ganhassem baixos salários

Que absurdo, não? Que amargura! E seguia dizendo que não era o caso de seu marido que tinha um ótimo salário, porque ele tinha estudado muito na vida e trabalhava várias horas por dia. Notem que se refere ao marido, não a ela. Dizia que seus filhos ao estarem cientes de que se quisessem ser alguém na vida, estariam horas e horas no quarto estudando também. A tal senhora, em nenhum momento fazia referência ou explicitava quais seriam suas próprias atividades. E seguia fazendo sua ode à meritocracia enaltecendo suas (?) posses, mas sem comentar se algo provinha de seu próprio trabalho.

Dizia também que já havia sido roubada por vagabundos assaltantes que prejudicam trabalhadores honestos como seu marido, a figura central de seu relato de boa esposa e dona de casa, cujo, ao mesmo tempo, mérito e pena é ostentar um valioso colar que só pode usar em fotografia de Facebook. Oh, Coitada!

A declaração dessa senhora é uma estrondosa afirmação de ódio aos pobres e à imensa parcela da população trabalhadora brasileira, porque justamente está baseada numa inverdade. Lula, como figura política e governante por dois mandatos, sempre esteve preocupado com o conjunto da sociedade e seus governos deram conta inegavelmente de melhorar a vida de uma grande parcela da população e inclusive dos banqueiros, diga-se de passagem. 

O desabafo dessa senhora é um escancarado discurso de ódio de classe. Como dizia esses dias a presidente interina da Bolívia — Eu sou ariana, europeia, não tenho nada que ver com esses índios— a senhora amargurada do Facebook quer dizer justamente o mesmo, não somos esses trabalhadores a que Lula se refere, somos de outra estirpe.

Claro que eu não desvalorizo a honestidade, o estudo e o trabalho. Tampouco subestimo a vida em família. Eu me espanto é com essa família tradicional brasileira que se auto-intitula gente de bem —como se todos os outros fossem do mal— e que vive na bolha de seus condomínios e  em nenhum momento observa ou questiona as diferenças sociais, que criminaliza a pobreza e desmerece os mais pobres. 

Eu interponho-me ao ódio que essas pessoas cultivam a quem quer e a quem promove justiça social e a diminuição das desigualdades. Não bastando a loucura das redes sociais, as instituições também levam incautos à discussões sem fundamento. Um grupo de deputados federais anda às pressas tentando mudar um artigo da Constituição que só pode ser mudado por outra Assembleia Constituinte com a única finalidade de manter preso um adversário político. Fruto óbvio da desinformação. 

Outro dia, uma manifestação de apoiadores do governo queria o fechamento do Supremo Tribunal Federal, porque algumas decisões dessa instituição contrariavam seus desejos. Outros mais audazes em ostentar sua ignorância cantavam o Hino Nacional agarrado à bíblias, porque são incapazes de entender a separação entre estado e religião. Enquanto isso, outros ainda enaltecem um juiz notadamente corrupto em frente a uma réplica de mau gosto da estátua da Liberdade americana, símbolo de uma loja de departamentos cujo dono tem sérios problemas éticos e cognitivos. Os adeptos do fora, tudo isso daí e esses fatos escancaram a ignorância e a malversação da informação.

A rede social poderia servir para uma finalidade mais didática e ensinar, por exemplo, o que está escrito na Constituição Federal Brasileira de 1988; quais são e o que é uma cláusula pétrea. Também seria interessante as pessoas conhecerem as Leis 8080 e 8142 , leis orgânicas do Sistema Único de Saúde, o Código Civil e Penal Brasileiros em seus princípios mais fundamentais. Poderia até  informar didaticamente como se organizam e quais as prerrogativas de cada Poder de Estado, Executivo, Legislativo e Judiciário. Um tanto de Ciência e História Geral cairiam muito bem também.

Contudo, para alguns isso significaria ao invés de informação e cultura chamariam de doutrinamento, palavra que, dependendo do conteúdo gera crítica ou não. Conteúdo religioso, por exemplo, não é considerado doutrinamento pelo senso comum, então ninguém se atreve a questionar. As igrejas doutrinam todos os dias há séculos e está tudo bem. Conteúdo político, dependendo do partido é aceito ou não. Mas na ideia de muitos seria melhor nem haver partidos. Uma monarquia absoluta, desfazendo o golpe que deram nos Bragança e representada por um rei maluco rodeado de príncipes alvoroçados e incultos caberia bem ao Brasil no parecer de alguns mais descuidados com a história do mundo. 

Enfim, é uma vastidão de barbaridades opinativas que saem da cabeça desse povo sem conhecimento e sem leitura numa época em que informação de qualidade está ao alcance das mãos literalmente. Em tempo, digo que toda pessoa tem direito a formar suas opiniões sobre todos os temas, o que é inadmissível é embasar essas opiniões em informações falsas e inverídicas cultivando assim ódios desnecessários e nocivos aos pactos de boa convivência.

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