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Impermanências


"E era assim que o tempo se arrastava, o sol nascia e se sumia, a lua passava por todas as fases, as estações iam e vinham, deixando sua marca nas árvores, na terra, nas coisas e nas pessoas."(O Continente - Érico Veríssimo)



Quando eu nasci ela tinha dezenove anos e minha mãe convidou-a para ser minha madrinha de Crisma, segundo sacramento católico que tempos depois só seria oferecido à pré-adolescentes como uma confirmação ou ratificação do Batismo. Sacramentos e religiosidades à parte, lembro de quando passei a conviver com aquela moça um pouco mais jovem que minha mãe. Alta, bonita, bem vestida, perfumada, unhas e lábios sempre bem pintados. Ela morava numa casa grande junto com os pais, meus tios-avós e vários irmãos e irmãs todos já crescidos, jovens cada um com sua vida e seu trabalho naquela época áurea e ao mesmo tempo complicada e perigosa da década de sessenta.

Eu gostava de ir naquela casa. As pessoas eram amáveis e me encantava um dos quartos das moças onde havia uma mescla de perfumes, além do cheiro forte de cigarros que a maioria da família fumava e que se espalhava pela casa toda. O mobiliário do quarto era de madeira escura e do guarda-roupa mal fechado se podia ver que era abarrotado de roupas bonitas, cintos e lenços.  Em cima da cômoda havia uma infinidade de pulseiras, maquiagens, colares e brincos, tudo multicolorido. Mas o que mais me chamava a atenção era uma caixinha de música daquelas que quando aberta, uma boneca bailarina rodava. Puxando pela memória vejo uma caixinha de madeira escura, forrada por dentro de um tecido vermelho e decorada com motivos japoneses. É comum que as crianças tenham um atrativo pelos banheiros de casas alheias e o daquela casa lembro muito do perfume, da limpeza, dos azulejos brancos com uma faixa verde escura, o piso antigo, a pia e a banheira grandes. Fechando os olhos, sou capaz de lembrar até hoje do cheiro daquele cômodo ensolarado. A porta da cozinha se abria para uma longa escadaria que descia até um quintal cheio de árvores, assim como para chegar à porta da sala, vindo da rua, era preciso descer vários lances de escada. Todas as dimensões que comento são de uma perspectiva infantil e que obviamente não podem servir como parâmetro da realidade. É bem possível que tudo esteja superdimensionado em minha memória.  

Sou capaz de lembrar também de uma festa de São João naquela casa alegre. A sala era muito grande(?) com um piso brilhante de tábuas de cor clara e havia pouco mobiliário. Estava decorada com aquelas bandeirinhas de papel de seda e balões do mesmo papel que pendiam de cordões pregados nas paredes. Havia muita gente que dançava no meio da sala e gente sentada ao redor apreciando os que dançavam. E havia doces de abóbora, de amendoim, rapadura daquelas enroladas na palha de milho e vinho quente.  Os convidados eram gente da vizinhança, parentes e amigos que foram viver ali naquele bairro da capital e se aglutinaram naquela rua vindos do interior. Em um certo momento da festa todos saíram à rua para ver uma enorme fogueira que se acendia naquela remota noite de junho.

Minha madrinha e suas irmãs tinham muitos livros e revistas e todas eram ávidas leitoras de romances, best-sellers, sagas e contos. Lembro de escutá-las contar dos filmes que viam no cinema, dos artistas que gostavam e das músicas que ouviam. É muito claro em minha memória associar essa casa às músicas do movimento musical da época, a Jovem Guarda, das músicas de Simon & Garfunkel (The Boxer, The Sounds of Silence), de Bob Dylan (Blowing the wind), The Mamas and the Papas (California Dreamin' ), os Beatles (Help) e algumas trilhas de filmes da época como Mrs. Robinson composta especialmente para o famoso The Graduate (A primeira noite de um homem) estrelado por Dustin Hoffmann e Anne Bancroft. Foi também nessa casa que lembro da vizinhança se reunir para assistir um dos jogos de futebol da semifinal da Copa do Mundo de 1970. Brasil e Inglaterra 1x0.

Nos meus aniversários minha madrinha me levava presentes e o que mais tenho vivo na memória foi o que ganhei no aniversário de sete anos. Veio embalado numa caixa muito grande e era um quarto de bonecas em madeira pintada de rosa, o guarda-roupa de duas portas, a cama, a cômoda e uma cadeira.  Eu não tinha uma boneca que se adaptasse àquele tamanho de quarto, porque ainda não existiam as Susies, Moranguinhos e Fofoletes do tempo de minha irmã mais nova ou as Barbies e Monsters da minha neta. Minha única boneca era do tamanho de um bebê recém-nascido e meu "urso de pelúcia" era um coelho de tecido preto, de olho vermelho - que eu adorava -  também era grande demais para a caminha de brinquedo. De qualquer modo, fiquei encantada com o presente e brinquei muito com ele.

Sempre admirei essa mulher pela elegância no andar, no vestir e as roupas da moda que usava, mas mais do que isso, ela transmitia um ar inteligente, sensato e cordial. Embora não tenha tido carreira universitária, creio que fez algum curso técnico, tinha um bom emprego público onde trabalhou até a aposentadoria. 
Quando fiz a primeira comunhão - vejam que quanto aos sacramentos da Madre Igreja fui cumpridora - creio que foi ela quem me deu um rosário de cristal. Não tenho certeza, porque minha avó também estava lá e o presente pode ter vindo dela também. A única certeza que tenho é que logo perdi o tal rosário tempos depois. Era bonito. Vieram outros presentes certamente, um anel de pedra vermelha ou tecidos para confeccionar vestidos. Naquela época não era comum comprar roupas prontas e felizmente minha mãe costurava para nós.

Um tempo depois, pelos meus doze anos, minha família mudou de cidade.  Como as comunicações e os transportes eram difíceis, não se tinha o hábito de viajar, o telefone não era de uso popular, então os encontros passaram a rarear. Quando aprovei no concurso para acesso à Universidade lembro que recebi um telegrama onde ela me felicitava. A partir daí os encontros já eram bastante esporádicos.

Tempos atrás o trato com  crianças não contemplava muitas manifestações de carinho, beijos, abraços, tampouco muito diálogo. Das crianças era cobrada obediência e respeito aos mais velhos - mesmo que muitas vezes não houvesse a recíproca do respeito - mas lembro daquela moça sempre me tratar com delicadeza e simpatia, por vezes, como sua igual, não como filha, que seria a atribuição da madrinha, uma segunda mãe, mas como uma amiga.

Não sei por que ela nunca se casou numa época que mulheres solteiras eram ridicularizadas e rotuladas como incompletas e outros adjetivos mais cruéis. Seguramente candidatos não faltaram e ela não ter escolhido ninguém se comprova uma sabedoria e coragem ímpares para uma pessoa de sua geração, cujas mulheres tinham uma vida bastante controlada pela família e pela sociedade. O fato dela ter preferido uma vida "single" e a companhia de si mesma, já que tinha autonomia econômica, certamente a distingue das demais mulheres de sua época. 

Quando eu fiz 50 anos ela me levou uns brincos muito bonitos num encontro na casa dos meus pais. Anos antes coincidentemente, estávamos morando na mesma cidade e aí, sim retomamos um pouco mais de convívio. Foram alguns anos de encontros divertidos, ambas adultas. Aí eu é que lhe levava presentes de aniversário ou ela me mandava flores no meu, trocávamos livros, telefonemas, íamos a festinhas familiares ou encontros dominicais. Foi um tempo que deixou saudade.

Mas o tempo e a impermanência das coisas, das pessoas, das situações e dos acontecimentos impedem que se possa conhecer mais profundamente ou manter contato frequente e duradouro com todas as pessoas que dedicamos carinho e respeito e àquelas que nos dedicam o mesmo. O que resta é a lembrança daquela pessoa estar presente e próxima naqueles dias especiais. Fica só um desconsolo por esses dias não terem sido mais intensos e mais numerosos.

Que os deuses te acolham e te protejam, minha madrinha.





Comentários

  1. Teu texto, Eliane,traduz boas lembranças cheias de detalhes daquela que foi escolhida para tua madrinha e, pelo visto desempenhou seu papel de forma marcante na tua infância, como também, na tua adolescência...
    São as manifestações de carinho, a atenção, o tempo dedicado, os presentes...essas linguagens de amor que ficam em nosso coração! Tão especial, ter uma madrinha amiga...ter a sorte de conviver, mais tarde como adultas, mesmo que seja por um tempo, apenas.
    São as tais impermanências, de que falas. Mas que importam, pertencem a um mundo particular teu e que carregam muitos significados...
    Uma madrinha que deixa marcas vivas de amor, admiração, contentamento na pequena menina enigmática!

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  2. Sorte teres uma madrinha tao especial, que deixou tão boas lembranças em teu coração... Aqui retratas todo o encantamento de uma menina sonhadora que encontrou em sua madrinha, o afeto, a dedicação, a doçura, a cumplicidade...daqueles tempos. Talvez, daí venha o teu gosto pelos livros, o interesse pela literatura, a admiração pela coisas belas e simples.
    Guardas com preciosidade a madrinha que te ajudou a desvendar mundos...São as linguagens do amor presentes em tua infância e adolescência: a dedicação, o acolhimento,o importar-se, a amizade, os presentes, os momentos mágicos vivenciados com a madrinha e sua família. Essas expressões de amor contribuíram, e muito para a tua formação, como ser humano- sensível, comprometida, verdadeira, idealista, amorosa...

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