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Para Lara nos seus 15 anos


                                                                                     Pontevedra, junho 2018.

                                                                                            Querida Lara

Daqui há alguns dias já é teu aniversário de novo e por incrível que pareça já tens 15 anos. Parece que foi ontem que eu vi aquele bebê de olhinhos bem abertos no colo da pediatra minutos depois de nascida. Há dias tenho tentado te escrever algo como um presente, pois os presentes materiais sempre se perdem no tempo. Dessa vez eu queria te deixar um presente imaterial, algo que tu pudesses aproveitar para tua vida que, desde sempre, desejo que seja longa, plena e feliz.

Quero te falar sobre as mulheres e seu papel nesse mundo que vem mudando continuamente. Elas têm conquistando espaços de trabalho e de oportunidades bem diferentes das que nossas bisavós e trisavós poderiam imaginar.

Ao longo da história antiga, moderna e contemporânea viveram milhares de mulheres que ousaram quebrar regras e obtiveram protagonismo em muitas áreas do conhecimento, isso é certo, mas há menos de 100 anos atrás, falando de nosso país, o máximo que a maioria das mulheres poderia desejar para sua vida era um marido, uma casa e muitos filhos para criar. Nada mais. Nem estudo, nem viagens, nem livros, nem conhecimento, nem tecnologia, nem ciência. A vida das mulheres era restrita à casa e, no máximo, às profissões ditas femininas sendo costureiras, cozinheiras, lavadeiras ou cuidadoras.

Não quero dizer que essas atividades sejam desimportantes, pois todas as profissões têm o seu valor. Quero dizer que são atividades que não demandam anos de estudo e pouco ou quase nada se valoriza, embora sejam trabalhos imprescindíveis. Houve um tempo também que o fato de uma mulher não estar casada era algo muito mal visto e bastante ridicularizado pela sociedade. Era um sinal de que nenhum homem a havia escolhido e o rótulo de solteirona ou ainda o mais pejorativo termo encalhada era para a vida toda, como se isso a tornasse uma pessoa indigna, sem valor ou uma aberração da natureza. 

E mais, isso muitas vezes a tornava empregada de alguém da própria família, pois se não teve a sua própria, então que cuidasse da família dos outros. Aqui posso usar até o termo “escrava” ao invés de empregada, porque a atividade não tinha nenhum tipo de remuneração, já que o trabalho doméstico até há pouquíssimo tempo nem era reconhecido e segue ainda enfrentando batalhas com os governos. Enfim, a sina das mulheres foi dura até pouco tempo e ainda é em algumas situações dentro de nosso país e em outras partes do mundo.

Queria te comentar aqui também sobre ritos de passagem que são costumes ou celebrações que marcam mudanças de status de uma pessoa dentro de seu círculo social, família ou comunidade. No caso das meninas e de meninos, completar 15 anos, segue sendo como um rito de passagem da vida infantil para a vida adulta, significando que é o momento de deixar a infância para trás. O que não necessariamente acontece automaticamente, pois o ser humano não é um relógio exato. Cada pessoa tem o seu tempo. Não obstante e felizmente hoje a adolescência— que vai mais ou menos dos 11 aos 17 anos— é reconhecida e serve como uma transição entre a infância e a idade adulta, pois em séculos passados não havia o reconhecimento desse processo de mudança e as pessoas se viam obrigadas a passar bruscamente de crianças a adultos. Existem vários livros e artigos que falam sobre a história da infância e da adolescência no decorrer do tempo, lugares e nas diferentes culturas. 

Havia um costume e ainda há em alguns lugares do Brasil, entre as classes de maior poder aquisitivo, que as meninas entre 14, 15 anos eram apresentadas à sociedade num grande baile de gala chamado Baile de Debutantes —debutar significa estrear ou iniciar algo. As meninas usavam vestidos longos, brancos e com enfeites brilhantes, os demais iam em trajes elegantes e caros numa festa ostensiva, tu já deves ter ouvido falar disso. A família gastava, e muitas ainda gastam, pequenas fortunas para ver sua filha desfilar para seus amigos e parentes num espetáculo que a mim me soa hoje como um culto demasiado às aparências, à beleza fútil, coisas que estamos acostumados a conviver e encarar como normalidade, mas que só evidenciam uma sociedade repleta de desejos materiais vazios. 

Eu mesma fui a alguns desses bailes quando era jovem, mas minha família não tinha condições para que eu ou alguma de minhas irmãs fôssemos debutantes. Ainda bem, pois desde aquela época não conseguia me ver sendo uma daquelas meninas ali expostas ao crivo e aos olhares daquela sociedade que— agora percebo— só valorizava o dinheiro, as aparências, os bens materiais, o gosto por ostentações, falsidades e hipocrisias. 

Essa sociedade ainda não mudou de todo, deves perceber isso. As indignidades, as mesmas hipocrisias e iniquidades seguem existindo e muitos ainda preferem só ver sentido na vida através de frivolidades, na competição desenfreada e numa vida de aparências. Imagina que no tempo antigo, os tais bailes serviam também para que as famílias pudessem escolher pretendentes para suas filhas, porque era comum essa influência da família na escolha dos maridos e esposas, principalmente no meio das famílias ricas para que as fortunas se somassem e se multiplicassem, já que o casamento era, e felizmente não é mais uma instituição indissolúvel.

Mal comparando e exagerando seria como um mercado de seres humanos expondo sua mercadoria, meninas bonitas e bem vestidas para que no futuro, fossem arrematadas, escolhidas como num leilão e seguissem para o seu destino comum, ou seja, o casamento e a maternidade.

Para minha bisavó esse destino começou muito cedo. Contam que ela se casou ou foi obrigada a casar-se com 14 anos com meu bisavô que beirava os 30 e teve com ele uns dez filhos. Imagina se hoje alguém vai querer ter tantos filhos, tanta gente para alimentar e tanto trabalho a fazer! Mas as mulheres não tinham escolha.

Felizmente, a ciência, os movimentos sociais e um grande movimento chamado Contracultura na década de 60 tiveram papel fundamental na liberação da mulher. Nessa época, foram descobertos e popularizados os métodos anticoncepcionais e a sexualidade feminina foi, aos poucos desestigmatizada, ou seja, passou a não ser mais condenada ou reprimida. A igualdade entre os gêneros feminino e masculino começou a ser muito questionada e o feminismo se afirmou como um movimento que até hoje em dia passa por avanços, ora por retrocessos. 

A luta por igualdade de gênero ainda persiste, pois é difícil quebrar esse círculo de extremo poder e supremacia que durante séculos o homem teve sobre a mulher. Fique atenta, ainda que veladamente, ainda há muita discriminação entre homens e mulheres e isso ainda precisa ser combatido. 

Outro ponto além das questões homem/mulher são os conceitos mais progressistas de gênero sob os quais há muito preconceito e intolerância. Sociedade, famílias e governos de uma maneira geral ainda não se deram conta que não têm o direito de controlar  mentes, corpos e afetos. Enfim, o que quero te dizer é que embora, às vezes nos pareça difícil, o mundo avançou se compararmos com o tempo de tuas avós, tua mãe e todas as mulheres de tua família. Muitas ou quase todas estudaram, têm seu trabalho, são mulheres independentes, foram criadas com mais autonomia e liberdade de escolha.

E nesse sentido te desejo que tenhas teu espírito completamente livre para fazer as tuas
escolhas pessoais e profissionais. Vais escolher e desfazer escolhas muitas vezes na vida e para isso não precisas te aprisionar. As lindas princesas dos contos de fadas eram prisioneiras de um destino comum. Não queira ser princesa. Que sejas uma jovem forte e segura, que não se deixa rotular, que saiba se defender de assédios morais e machistas, que veja a diferença entre os hipócritas e os justos, entre os bajuladores e a amizade sincera e que defendas sempre a igualdade, a justiça, a democracia e as boas causas. Te desejo que escolhas uma profissão, ou mais de uma e que teu trabalho não seja penoso, que te envolva, te faça crescer e te realize.

A vida tem muitos significados importantes a serem percebidos e tudo está dentro da
História, da Geografia, da Biologia, da Sociologia, no Meio Ambiente, nas Ciências da Saúde, na Tecnologia, na Química, na Psicologia, na Literatura, nas Artes, na Música e até na Matemática que não gostas muito. Portanto, o estudo, que promove o conhecimento precisa ser valorizado. Enfim, o nosso futuro como humanidade depende que interpretemos esses significados para podermos entender a nossa própria vida, perdermos os medos e escolhermos nosso caminho com liberdade.

Não te preocupa se o rumo que darás para tua vida seja, por vezes, diferente dos demais ou do que as pessoas esperam que tu siga. Quem te ama, continuará te amando e sempre vai torcer para a tua felicidade, mesmo que errando muito pelo caminho. 

Sim, vais cometer erros como todos nós cometemos. Vais te equivocar, vais te deixar levar por impulsos ou mesmo pensando mil vezes, podes cometer erros que na maioria das vezes podem ser contornáveis. Os erros não contornáveis podem se diluir no tempo, mas também podem deixar sequelas, principalmente os erros ou abusos que possamos cometer com nosso corpo. Há que ficar atento a eles e aqui me refiro ao consumo de álcool, drogas, tabaco e hiperalimentação.

Não tome tempo e energia no que não te faz crescer como pessoa, como a inveja, o ciúme, a desesperança e a ansiedade. Cerca-te de pessoas sensíveis, inteligentes, respeitosas e empáticas.

Aqui eu aproveito para pedir que contribuas para que o nosso planeta seja auto-sustentável com pequenos gestos diários de economia de energia, água e uma correta destinação do lixo. Não compre coisas por impulso, pense antes se tu realmente precisa dessas coisas e não acumule demais. Doe o que tu não precisa. Quando puderes faça uma poupança e não esbanje recursos naturais e econômicos.

Cuida de teu corpo consumindo alimentos variados, frutas, verduras, alimentos crus e não
exagere nos produtos industrializados ou muito manipulados. Pratica alguma atividade física que te dê prazer. Não seja escrava de modismos ou de modos de agir, vista-se da maneira e com as cores em que estarás mais cômoda e dentro de tua própria criatividade. 

Queres simplicidade? Pois seja simples e básica e não aceita imposições para usar muita maquiagem, salto alto, etc. Tua beleza é única e não precisa de artifícios. Aja segundo tua personalidade e teu coração. Seja leve, não carregue pesos desnecessários dentro da alma.  

Pratica sempre a solidariedade e reconheça outros povos, culturas e nações como teus irmãos.
Descubra o poder e a riqueza dos livros e aprenda outros idiomas.

Tenta expressar tuas emoções através da arte, através de conversas com teus pais e amigos, conta tuas experiências, não fique com dúvidas, não alimenta medos sem sentido e não te culpa de nada.

Entenda teus pais e te faça entender por eles através de muita conversa, boa convivência, perguntas e questionamentos. Não tenhas vergonha de expor tuas emoções e tuas dúvidas a eles. Sempre peça ajuda primeiro a eles.

Saiba que tua vinda foi muito esperada e desejada, por isso tenha gratidão pelas circunstâncias que te fazem feliz.

Me perdoa por tantos conselhos e advertências, pois sei que és uma pessoa inteligente, mas esse é um defeito de pais e avós.
E quero encerrar te pedindo que me perdoe também por ter optado viver geograficamente tão longe de ti e de teu pai, esperando que o futuro te dê todas as explicações que hoje ainda não foram suficientes. 

Aqui, do outro lado do oceano, te esperarei sempre se um dia venhas me visitar ou se quiseres viver um tempo por aqui. Há um imenso mundo a conhecer e coisas para aprender.
Mas se não vieres, não tem importância, eu irei matar as saudades como faço todos os anos.

Aproveita a companhia de teus pais, avós, bisos, dindos, amigos e toda a família na tua festa e come um pedaço de bolo por mim!
Te amo, feliz aniversário com um forte abraço!
Tua vó
Eliane        


                                                 

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