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Um tributo à Ignaz Semmelweis

           
" É muito provável que você , eu e muitos mais tenhamos uma dívida impagável com um médico húngaro de século 19, Ignaz Philipp Semmelweis (1818-1865) que na tenra idade de 29 anos fez um descobrimento que salvou milhões de vidas, enquanto devastou sua vida pessoal. Nascido em 1818 em Budapeste, estudou Medicina na Universidade de Viena, doutorando-se  em 1844 na especialidade de Obstetrícia e em cuidados médicos no pré-natal,  parto e puerpério. Dois anos depois entrou como médico assistente na primeira clínica obstétrica no Hospital Geral de Viena. O que encontrou ali lhe horrorizou. 

Naquele tempo a maioria das mulheres davam à luz em casa com uma alta taxa de mortalidade. A metade dos falecimentos se deviam à chamada febre puerperal, que hoje sabemos que é produzida por uma infecção generalizada chamada septicemia. O mais terrível era que as mulheres que davam à luz nos hospitais e as crianças que nasciam ali tinham uma incidência de febre puerperal maior que as que davam à luz em suas casas. A doença era atribuída ao isolamento nos hospitais, má ventilação e também ao começo da lactância.

O britânico Oliver Holmes já havia notado que a doença era transmissível e um provável veículo eram os médicos e parteiras, mas não havia comprovações experimentais. Semmelweis observou em sua clínica que a mortalidade era de 13,1 % das mulheres e recém-nascidos, uma cifra aterradora.  Nos hospitais europeus em geral a cifra chegava de 25 a 30 %, enquanto que na segunda clínica obstétrica de um mesmo hospital a mortalidade era de 2,3 %. Analisou ambas as clínicas e observou que a principal diferença entre elas era que uma delas  se dedicava a preparar estudantes de Medicina e a outra preparava parteiras. Os estudantes de Medicina, como até hoje, realizavam dissecções de cadáveres como parte fundamental de sua formação, coisa que não faziam as parteiras.

Em 1847, Jacob Koletska professor de Medicina Forense e amigo de Semmelweis cortou-se um dedo acidentalmente com um bisturi durante uma autópsia. O estudo do corpo de Kolestska revelou sintomas idênticos aos das mulheres que morriam de febre puerperal. Semmelweis concluiu que deveria haver algo, uma substância, um agente desconhecido presente nos cadáveres que era levado pelos estudantes da sala de dissecções para a sala da maternidade onde causava a febre puerperal. Era a hipótese do envenenamento cadavérico.

Em maio de 1847, Semmelweis propôs que os médicos e estudantes lavassem as mãos com uma solução de hipoclorito e cloreto de cálcio entre as dissecções e a atenção às parturientes. Os estudantes e funcionários da clínica protestaram, mas ele insistiu e em um só mês a mortalidade diminuiu de 12,24% a 2,38%. Em 1848 a mortalidade em ambas as clínicas era igual a 1,3 %  e nos anos seguintes se mantiveram sem grandes diferenças. 

Era a demonstração contundente de que sua hipótese era sólida e seu colega Ferdinand Von Hebra escreveu dois artigos que explicavam as causas da febre puerperal e a profilaxia proposta para diminuir sua incidência. Para Semmelweis representou a terrível conclusão que com suas mãos sujas havia levado à morte muitas pessoas que somente desejava servir. Essa ideia o perseguiria até a morte e animaria sua luta pela profilaxia.

Os médicos que viam os dados contundentes de Semmelweis procederam a rechaçá-lo. A medicina pré-científica de então sustentava a crença de que a enfermidade era um desequilíbrio entre os quatro supostos humores do corpo humano : sangue, flema, bilis negra e bilis amarela. Essa crença de milênios não tinha nenhuma evidência científica em seu favor, mas se aceitava sem titubeios e diante disso  os colegas de Semmelweis se aferraram a esse rechaço e não aceitavam que uma enfermidade pudesse  transmitir-se pelas mãos humanas e não pelos maus ares, por miasmas e outras origens misteriosas.

De fato, a Medicina pré-científica da época e como muitas formas de pseudomedicina da atualidade afirmava que não havia causas comuns iguais e que cada enfermidade era única, produto de um desequilíbrio integral do organismo. Os médicos tratavam, então a febre puerperal não só como uma doença única e sim como um conjunto de várias doenças. 

O êxito do húngaro e sua participação pelos direitos civis nos distúrbios de 1848 levou Semmelweis ao enfrentamento com o diretor da clínica que sabotou seu possíveis avanços. Resolveu aí voltar à Hungria e passou por diversos postos de trabalho. Em 1851 combateu com êxito uma epidemia de febre puerperal fazendo cair a mortalidade até 0,5 %.
Em 1861, finalmente publicou seu livro sobre a Etiologia e Profilaxia da Febre Puerperal, mas novamente seus dados e provas obtiveram resistência. O enfrentamento com os colegas e totalmente convencido que era fácil salvar muitas vidas, Semmelweis começou a dar mostras de transtornos mentais e em 1865 foi internado em um asilo para doentes mentais tão pré-científico quanto era a clínica onde começou a trabalhar. 

Se sua enfermidade era grave ou se foi internado por pressões de quem rechaçava seus estudos é assunto de debate. Morreu no asilo somente doze semanas após sua internação, depois de adquirir uma septicemia por um corte num dedo, dizem alguns historiadores. Outros contam que morreu da mesma septicemia, depois de haver sido violentamente espancado pelos guardas do manicômio, procedimento comum e tradicional para tranquilizar os loucos naquela época."

Tradução livre de :

Só em 1883, Louis Pasteur iniciaria os fundamentos da microbiologia, a comprovação da existência dos microorganismos e a comunidade científica passou a considerar Semmelweis como o pai dos métodos de desinfecção e salvador das gestantes. Alguns livros dão conta que ao desenvolver o transtorno psicológico, Semmelweis andava pelas ruas gritando : -"Lavem as mãos, lavem as mãos!" 

Essa é uma das milhares de histórias de vida em que o obscurantismo vence a razão pela loucura. É um exemplo de quanto e como o obscurantismo é incapaz de louvar as mentes mais brilhantes por inveja e vaidade. O obscuro e medíocre aposta sempre no ultraje e enxovalhamento dos que buscam e têm talento para iluminar. Ainda hoje, século XXI, parte da humanidade ainda segue nessa mesma sintonia.





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