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A Nau Brasileira dos Insensatos


Hyeronimus Bosch, 1500 Museu do Louvre
Enquanto o mundo todo assume a necessidade e adota o confinamento e o distanciamento social como um instrumento eficiente e de esforço coletivo para barrar a propagação do coronavírus, salvar vidas e evitar a agonia dos sistemas de saúde, no Brasil sucedem fatos curiosos que desorganizam, inquietam e escandalizam a mente dos mais sensatos e prudentes.
Alguns incautos foram às ruas nessa Semana Santa dos católicos, vejam só, para criticar e vociferar contra os governantes que impuseram a medida.  Milhões de pessoas estão sofrendo a difícil situação de confinamento e a imensa maioria tem consciência da grandeza de sua finalidade e a noção explícita de que a circunstância vivida tem por objetivo salvar vidas e proteger os milhares que estão numa linha de frente arriscando as suas próprias.
Eu só tenho perguntas a fazer, nenhuma resposta conclusiva e alguns pequenos palpites para explicar esse escandaloso e vergonhoso fato, cujo resto da população mundial se põe tão boquiaberta quanto eu.
Pergunta 1: O que leva um grupo de fanáticos  negar a Ciência em pleno século XXI?
Palpite 1: Falta de estudar Biologia e Matemática.
Pergunta 2: O que leva um grupo de extremistas defender e seguir um líder insano e perigoso?
Palpite 2: Falta de estudar Biologia, Matemática e História.
Pergunta 3: De onde vem a ideia de que o Brasil é diferente do resto do mundo? Essas pessoas sabem que existe um "resto do mundo"?
Palpite 3: Falta de estudar Geografia e História.
Pergunta 4: O que leva um grupo de supostos cristãos pedir "vida normal" e "liberdade de ir e vir" quando já foram afetados pela doença mais de um milhão e meio de pessoas e mais de cem mil já morreram no mundo?  
Palpite 4: Falta empatia, compreensão emocional e identificação com outras pessoas.
Pergunta 5: O que leva um grupo de raivosos negarem as notícias que chegam do mundo e repudiar o jornalismo, digamos profissional e oficial? 
Palpite 5: Me atrevo a dizer que o mesmo jornalismo que desinformou e incitou ódios num passado recente pela falta de informação de qualidade e imparcialidade, acrescentou o negacionismo aos alienados. A internet e a possibilidade do uso de mensagens instantâneas minaram o campo da informação com mentiras, enganações, teorias conspiratórias, ofensas e a exaltação de falsas sumidades. A falta de discernimento entre verdadeiro e falso confundiu algumas cabeças não afeitas ao exercício do raciocínio lógico e os transformou em opinativos contumazes.

No entanto, meus palpites, ao menos quanto à falta de estudo não procedem, porque até supostos estudiosos, acadêmicos e pessoas com curso universitário têm tido esse mesmo comportamento e pensamento atravessado. Supõe-se que tenham estudado noções básicas dessas matérias ao longo do período escolar. Supõe-se, mas o ato de estudar é o preparo para o saber, não o saber em si. Ao contrário, também conheço pessoas que com poucos anos de estudo, além de mentes abertas têm uma sabedoria adquirida com a vida por um anseio natural pelo conhecimento.
Lembro então da expressão "nau dos insensatos", uma antiga alegoria muito usada na cultura ocidental e nas artes, ela descreve o mundo e seus habitantes como uma nau, cujos passageiros perturbados nem sabem, nem se importam para onde estão indo.¹ Na verdade, a humanidade nunca soube mesmo para onde está indo, mas no correr desses fatos decorrentes da pandemia imagino que muitos estão começando a perceber e se importar, sim com o  rumo que a humanidade tomará depois de passada a tempestade.
Voltando ao caso brasileiro, vejo esses passageiros serem portadores de alienação aliada à ignorância como a causa dessa perturbação. Mas o que é ignorância? Num sentido filosófico existem dois tipos. A ignorância sábia é aquela de quem sabe que não sabe. E existe a ignorância profunda, aquela que não sabe que não sabe.
Nem vou falar da ignorância sábia, pode parecer altivez e arrogância, embora minhas convicções  me dizem que como Sócrates, " eu sei que nada sei". Vou me ater à ignorância profunda que é aquele estado de desconhecimento profundo da realidade dos fatos e do saber científico que em alguns manifesta-se muitas vezes numa forma até desprezível de agir e de ser. Já percebi que quanto mais profunda a ignorância, mais agressivos se mostram esses ignorantes, justamente pela incapacidade de entender.
A alienação pode ser uma forma de loucura e insanidade mental, termo usado na medicina antiga,  mas pode ser também um distanciamento da realidade motivado pela ignorância consciente ou inconsciente dos fatos. Além disso, pode se constituir também num grande projeto de não-educação orquestrado por um sistema instrumentado invisível às democracias. Mas cá estou eu caindo numa teoria conspiratória da qual talvez eu tenha escapado. O porquê, não sei, mas a mim não me foi sequestrada a capacidade de pensar.
Enfim, com muitas perguntas sem resposta eu vejo a nau dos insensatos brasileira repleta de alienados e/ou ignorantes que além de envergonhar o seu povo, serão os responsáveis pela perda de muitas vidas humanas que com pequeno esforço de entendimento, empatia e dedicação poderiam ser salvas.
Uma grande pena o Brasil estar sendo protagonista de mais esse infame episódio que ficará na história como mais um subproduto da eleição de um fanático. Mas esse é outro assunto.


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