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Moro há quase seis anos na Espanha, mas graças à internet, aos aplicativos de comunicação instantânea e redes sociais podemos viver virtualmente em qualquer lugar do mundo desde que dominarmos a língua e os costumes. Por isso eu vivo também no Brasil e acompanho diariamente tudo que acontece me comunicando com a família, amigos e lendo os noticiários.
Obviamente sempre fiz as mais diversas comparações, confrontações ou equiparações tanto positivas quanto negativas entre os dois países. Ao mesmo tempo sempre dedico a cada um o mesmo carinho e apreço quando exalto suas belezas naturais, seu patrimônio histórico, sua história, seus costumes e seu povo. Estando aqui sinto falta física do Brasil, assim como quando estou no Brasil sinto falta daqui. E assim será até o fim.
Agora em meio à pandemia do coronavírus é impossível não fazer maiores observações e ponderações quanto ao manejo particular de cada um dos meus dois países no enfrentamento dessa crise sanitária e humanitária que vive o planeta.
Quando houve uma escalada de casos da doença em meados de março e assustada pelo que já estava em curso na Itália, a Espanha adotou corajosa e firmemente o isolamento social. O governo fechou escolas, universidades, pontos turísticos, serviços, estabelecimentos comerciais, praças, parques, praias, etc. e passou a controlar o deslocamento das pessoas e dos meios de transporte.
Ao mesmo tempo adotou medidas para atenuar o impacto econômico, fomentando o teletrabalho, desestimulando as dispensas trabalhistas, prestando auxílio aos trabalhadores e aos pequenos e médios empresários utilizando modelos econômicos anteriores e também criando novos modelos e alternativas para o enfrentamento da crise. Além da manutenção dos serviços essenciais, a criação de novos leitos hospitalares e de terapia intensiva, a captação de serviços privados de saúde, a regulação dos preços e a compra de insumos médicos e de proteção individual passou a ser a preocupação central do governo.
Hospitais de campanha precisaram ser instalados, assim como necrotérios e para isso foram utilizados pavilhões de eventos e até uma famosa pista de gelo. Um programa de renda básica da cidadania já está em estudo para ampliar a rede de proteção social do país que, mesmo sem crise já conta com muitos tipos de ajudas sociais. Um comitê científico e outros vários segmentos do governo além da Saúde, Defesa, Segurança e Economia comparecem diariamente para coletivas de imprensa direto do Palácio de La Moncloa, sede do governo espanhol e dali passam relatórios atualizados da evolução dos casos, mortes, pessoas recuperadas e sobre todas as providências e problemas que enfrentam no dia a dia da pandemia. E não foram poucos os problemas. A oposição muitas vezes acusou o governo de agir com improvisação, mas mesmo com críticas não deixaram de aprovar as ações que deveriam ser submetidas ao parlamento.
Os ministros da Defesa e Segurança informam todas as movimentações dos efetivos civis e militares para o fiel cumprimento do Decreto de Estado de Alarma que vigora há mais de um mês. Essas coletivas estão abertas aos questionamentos dos jornalistas de maneira virtual e ao vivo. A certa altura da epidemia começaram a proliferar atitudes de solidariedade por parte da sociedade e do empresariado. Alguns hotéis que ficaram ociosos pelo decreto do isolamento ofereceram suas dependências para abrigar pacientes menos graves ou para servir de hospedagem para que trabalhadores em saúde protegessem sua família.
Uma rede de alimentação de rua, os chamados foodtrucks passaram a fornecer comida de graça para os trabalhadores de alguns hospitais da capital e muitas organizações não governamentais também passaram a arrecadar alimentos para fornecer às famílias mais vulneráveis. Em consequência dessa interlocução entre sociedade e governo, a população contribui, em sua maioria, de forma responsável e disciplinada fazendo a sua parte, assim como respeita e confia nas instituições e percebe o caráter solidário de sua conduta que vai além da preservação de sua própria saúde. Me sinto segura confinada aqui, sabendo que essas instituições estão empenhadas e envolvidas em tempo integral na defesa da saúde das pessoas sem interferências de assuntos menores ou alheios à pandemia. A crise do coronavírus é a ordem do dia de todos os dias.
Quanto ao Brasil, vejo numa posição totalmente desprivilegiada e preocupante pelo absurdo e ineditismo do cenário atual do governo. Segundo informações, o Brasil figura entre os quatro países do mundo em que seus governantes negam as estatísticas, desdenham dos fatos e minimizam a pandemia. Três deles são os regimes totalitários da Nicarágua, Belarús e Turcomenistão.
O Brasil já foi palco de muitos infortúnios, mas hoje está particularmente envolvido num de seus piores momentos políticos e ainda exposto a um microrganismo pouco conhecido, sem vacina e sem tratamento eficaz que evite todas as mortes. Enquanto isso, povo e governo se metem num caldo de comportamentos diversos movidos por impulsos opinativos, geralmente burros, infames e simplistas num momento onde só caberia ouvir a sensatez e a lógica do conhecimento científico.
O distanciamento social foi decretado na maioria dos Estados brasileiros, mas com adesão média de uns 50% da população, porque não há um mínimo de esforço coordenado e articulado entre os Estados, municípios e União. Não tenho conhecimento que haja um gabinete gestor da crise do coronavírus no governo central. Um presidente sem juízo nem competência ocupa-se com assuntos desconectados da realidade. Ele só trata de seus problemas pessoais e de suas pretensões eleitorais, enquanto demite ministros, que em seu delírio psicótico, poderiam interferir em suas ambições de permanência no poder. Poder e popularidade que estão sendo corroídos a cada dia.
A mídia brasileira cita corriqueiramente um tal gabinete do ódio e não tem veemência para cobrar que se instale urgentemente um gabinete humanizado para gerir a crise do coronavírus a nível central. É estarrecedor que se trate o ódio como algo trivial na condução de um governo e que esse gabinete se mantenha muito provavelmente com financiamento público.
O que se observa, enfim são os governadores dos Estados elaborando planos diversos, também sem muita adesão pela total desarmonia dos discursos e pela falta de um programa a nível central que pudesse convergir com os programas estaduais.
O que se vê são só divergências, delírios e troca de insultos entre gestores e a presidência. Mais estarrecedor ainda que, em meio à pandemia, onde já foram contaminados no momento mais de 50 mil brasileiros, faleceram mais de 3 mil e há quase 60 dias do surgimento do primeiro caso, o presidente da República demite o ministro da saúde, um médico e toma para si a tarefa de recomendar e fazer propaganda de remédios, além de participar e incentivar aglomerações, manifestações de caráter notadamente ilegais e chamar a Covid-19 de gripezinha.
Aqui na Espanha já se iniciou a redução da curva de crescimento dos casos e o governo já prepara as medidas de desconfinamento que serão graduais. Nesse domingo, 26 de abril, já foi permitido que crianças até os 14 anos de idade pudessem sair a brincar até 1 km das cercanias de casa acompanhadas de um adulto por uma hora diária. Até a próxima semana, provavelmente serão liberados os adultos maiores de 60 anos para que possam fazer caminhadas. E assim vão encaminhando o país para voltar a uma normalidade que sabemos nunca mais será normal.
Enquanto isso, o Brasil convivendo com essas duas graves crises, aparece nos noticiários daqui como uma tragicomédia que ao mesmo tempo me preocupa e me envergonha. O governo brasileiro escancara sua incompetência, dando livre passagem para que se instale uma catástrofe. Quem presta atenção ao mundo sabe, mas parece que alguns brasileiros percebem como mundo um lugar que só chega até os limites de suas cidades e de suas visões estreitas.
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