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Os dançarinos da morte

A dança da morte, gênero artístico de alegoria do final da Idade Média
Fonte ; Google imagens

Especialistas em saúde mental recomendam sempre enfrentar as crises com bom humor, otimismo e serenidade. Na medida do possível, é certo, mas antes disso deveríamos saber reconhecer a gravidade dessas crises quando envolvem a humanidade ou grande parte da população de um país ou do mundo como as guerras, as epidemias, as catástrofes climáticas, ambientais e depressões econômicas. 

Também estão nesse rol as crises geradas por governos autoritários e antidemocráticos, ameaças de morte por estados de exceção, prisões arbitrárias, práticas de torturas  institucionais ou não. Segundo minhas convicções é evidente que não se deve tratar esses problemas com humorismos e comicidades muito menos com indiferença, pois não são assuntos hilariantes, merecem atenção, prudência e principalmente empatia por tratar-se da vida de seres humanos.

Mas o que para mim é uma evidência, para outros parece não o ser.  Hoje a busca desenfreada por visibilidade através de rede social e o interesse econômico em agradar e preservar clientelas desvela todo tipo de manifestação grotesca assegurada pela liberdade de opinião até para assuntos de natureza científica como a forma da Terra e a morbidade de um vírus.

E assim tem sido o comportamento de muitos homens e mulheres compulsivamente atraídos por negacionismos ilógicos, rejeitando a ciência, esquivando-se do conhecimento acumulado, afrontando os estudiosos, os cautelosos e os racionais e o que é pior, desdenhando da morte e da dor alheia.

Vejo muita indiferença e até zombaria diante da grave crise humanitária que o mundo  atravessa com a pandemia da Covid-19. Também percebo que há um conjunto de assuntos históricos delicados pelos quais o Brasil e os brasileiros não tem conhecimento e tampouco um sentimento coincidente. Uso como exemplo o povo alemão que carrega em sua memória e com força de lei a ojeriza pelo nazismo. Já os brasileiros, além de desconhecerem sua história, o pouco que sabem, deram-se a negar e emitir opiniões vexatórias sobre seus temas mais pungentes como a escravidão, a ditadura e a tortura. Muitos, até bem próximos de nós, têm se empenhado em negar ou minimizar os efeitos dessas feridas que ainda trazem na sociedade a marca do preconceito, da desigualdade e da dor.

Com respeito ao tema da morte,  as tradições cristã, judaica, muçulmana e espírita tratam o falecimento e a dor dos que ficam de maneira reverente e contida e eu jamais conseguiria dançar num funeral mesmo que eu estivesse em Gana na África onde a performance da dança do caixão parece natural. Em Gana, eles reverenciam dançando, na India eles vestem roupas brancas nos funerais, algumas tribos indígenas brasileiras comiam a carne do inimigo que era capturado e cada cultura tem sua maneira de  expressar-se. 

Mas o que tem acontecido por aqui não é expressão de cultura ou de um preceito religioso. Portas do inferno foram abertas para uma turba de lunáticos sem cérebro e sem coração que ao suavizar a violência não percebem que são os atores de uma violência maior. Por que  desvirtuam o sentido da morte? Por que minimizam a tortura? Por que negam a escravidão? 
É inédito ver tanto desdém com a morte e com o sofrimento, justamente nesse momento quando estão morrendo mil pessoas por dia de uma só enfermidade.

Vi gente bem próxima que se divertiu assistindo pessoas chicoteando outras, agora na segunda década do século XXI. Eu vi gente que banalizou,  quando um jovem foi preso e espancado dentro de um supermercado. Eu vi gente transformando vítimas em criminosos, quando uma criança foi surrada até a morte, porque pedia comida às portas de um famoso restaurante. Eu vi gente menosprezar o choro de uma jovem mãe que perdeu a filha de 15 anos para o coronavírus. Eu vi um agente público desdenhar da morte de colegas e adotar o descaso e a desmemória como política pública. Eu vi gente clamando pelo fim do Supremo Tribunal Federal, das normas constitucionais e do Direito e assim vamos seguindo, metidos nessa barbárie medieval desde que...

Desde quando mesmo?

Não, o brasileiro nunca foi a unanimidade do povo acolhedor e amistoso. Nos fizeram acreditar nessa falácia. A pandemia do coronavírus já  matou quase 20 mil pessoas pelos números de hoje. São quase 100 Boates Kiss,  quase 100 acidentes de Brumadinho, quase 10 Titanics , quase a capacidade de 60 aviões e a população de uma cidade inteira de porte médio como Santa Maria estão contagiados em todo o Brasil pelos números oficiais. 

Por que não há uma comoção em massa? Não há, porque o governo brasileiro—representado hoje pelo mais torpe representante da raça humana— é o principal disseminador de gracejos sem graça contra a pandemia e o mais inepto para tratar do problema. Já está famoso negativamente no mundo inteiro. 

A dor dos outros está banalizada, intangível, objeto de deboche leviano, inconsequente, consequente e lamentável de pessoas públicas e cidadãos comuns que certamente serão lembradas, quando muito, como a escória de um terrível tempo que há de passar. 

Aos nossos conhecidos que avolumam esse discurso, não resta mais do que lamentar, desejar que reflitam e que sobrevivam. Como disse Zélia Duncan à secretaria de cultura Regina Duarte : "Se tem vida e tem morte, nós queremos é viver!"






Comentários

  1. Começando pelo título, bastante sugestivo, voltado para o momento atual, o qual estamos passando aqui, em nosso país. Consegues abordar, relacionar, apontar, opinar com maestria sobre os atos autoritários e infundados de um Presidente ignorante e despreparado, ao mesmo tempo, os desmandos, o pouco caso, a falta de seriedade e comprometimento com a Pandemia que se alastra pelo país. Tristeza...é o que sentimos, nós, ao nos depararmos com esse desgoverno, que se quer, se sensibiliza com o quadro alarmante que se mostra a cada dia, de mais mortes e contágio pelo Covid- 19.
    Valiosa contribuição...tuas palavras têm imenso poder de expressar o sentimento de vazio, de desamparo, muitas vezes de desespero,que passamos a viver durante esses longos meses. Recolhidos e indignados, assistimos a cruel insensatez diante da dor alheia.


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