Imagem do filme Human : Torre humana típica da Catalunha (Tarragona) |
Os acontecimentos mundiais parecem sempre andando em círculos, em sobe e desce ou num vai e vem para diante e para trás. Quando se iniciou o século XXI tínhamos esperanças, porque afinal os anos dois mil traziam no inconsciente coletivo boas promessas para o milênio. Na realidade houve muitos avanços civilizatórios ao mesmo tempo que conflitos e atentados terroristas ainda se desenrolaram ao redor do mundo como o famoso ataque às Torres Gêmeas do World Trade Center em Nova York em 2001 e o eclodir da guerra civil na Síria em 2011.
Mas a despeito da evolução do conhecimento, na obtenção de riqueza e de novas tecnologias o homem não avançou naqueles que foram os valores norteadores da Revolução Francesa propostos em 1789, final do século XVIII, Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Mais adiante, quase duzentos anos depois em 1948 as Nações Unidas escreveram, ratificaram e proclamaram a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana e até hoje seguimos sem termos garantidos nem o primeiro artigo :
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.
No cenário de 2020, falar de direitos humanos parece mais uma fantasia para os incrédulos, uma lorota para os piadistas, palavras vazias para os hipócritas, alento para os religiosos e utopia para os sonhadores. Ainda temos que suportar a intragável expressão criada por alguns anarquistas e desordeiros da Justiça e do Direito - direitos humanos para humanos direitos.
Quem teria o supremo aval para julgar e separar quais humanos seriam os direitos e quais os tortos? E segundo quais concepções, paradigmas, conceitos e ideologias? Das religiões, da política, da imprensa, de algum guru ou do autocrata da hora?
Para que o primeiro artigo da Declaração tivesse robustez precisaríamos saber primeiro o que realmente nos torna humanos. Homem, conceituaram os antropólogos, é um animal racional, dotado de razão, para que possamos nos diferenciar dos animais. Mas só a racionalidade relacionada à juízo e discernimento a meu ver não torna ninguém humano. A essência de ser humano precisa estar ligada a outros atributos como empatia, solidariedade, piedade, sensibilidade, cooperação e amor fraterno.
Todas são características humanas, mas que em tempos de ódio, desinformação e polarizações ideológicas soam piegas, como excesso de sentimentalismo ou ainda como expressão relacionada com a era da queixa ou da lamúria, como detestavelmente temos visto muitas referências no ambiente tóxico das redes sociais.
Em que parte desse homem humano foram abandonadas essas emoções e sentimentos ou por quais sentimentos e emoções foram substituídos? O que move o homem humano hoje?
De qualquer maneira, sem saber essas respostas é preciso falar sobre solidariedade quando sabemos que vários jovens e crianças são mortos pela polícia dentro de casa ou a caminho da escola alvejados de balas.
É preciso falar sobre piedade quando o mundo inteiro assiste um policial matar a George Floyd por asfixia, quando já estava rendido. É preciso falar sobre empatia quando uma jovem parlamentar como Mariele Franco é morta com tiros à queima roupa, numa tocaia planejada por milícias financiadas pelo Estado. É preciso falar de sensibilidade e cooperação, quando uma mulher negligencia a Miguel, filho de cinco anos de sua empregada e provoca fatos que desencadeiam a morte da criança, fato acontecido no Recife.
É preciso falar de responsabilidade, ética e envolvimento quando presidentes de nações minimizam a gravidade de uma pandemia e vulgarizam os milhares que caem mortos todos os dias, por omissões, teorias absurdas, lógicas de mercado e mal feitos governamentais. Não é incrível que todos os fatos citados envolvam em sua maioria pessoas pobres e negras?
O preconceito racial e de classe está definitivamente revelado. É institucional e cotidiano, enquanto a mídia, até pouco tempo vendia uma imagem falsa do Brasil como um povo acolhedor, simpático e caloroso da mesma forma que vendem a imagem dos Estados Unidos como a mais perfeita sociedade e democracia do planeta.
Depois de quatrocentos anos de escravidão, de norte a sul a América ainda padece dos efeitos e consequências deste que é um dos maiores flagelos da história humana. Nossos pescoços vêm sendo amassados rotineiramente pelas botas do racismo, do preconceito, das iniquidades, da intolerância e de governos intimidatórios, ameaçadores e recortadores de direitos.
O ar está cada dia mais poluído de acontecimentos nefastos e antidemocráticos, o horizonte próximo não enseja mais que probabilidades catastróficas para um Brasil mergulhado ao mesmo tempo em duas crises graves.
O único alento é que também faz parte da essência humana a busca por sobrevivência e justiça. Com o esgarçamento das atrocidades, essa essência tende a impulsionar a procura por ar puro, livre de vírus e de abusos. Se haverá luz no final desse túnel ou se esse túnel tem final não sabemos.
Eventos como os que vitimaram George Floyd precisam fixar na memória do século XXI e que esse exemplo seja um grito eterno junto a outros como Martin Luther King, Nelson Mandela, Gandhi, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Zumbi dos Palmares, Dalai Lama, Malala, Angela Davis e tantos outros que lutaram e lutam para que o homem se torne humano e encontre a paz.
Precisamos de uma trégua, porque está difícil respirar.
Human : yje movie, cut version...O que nos torna humanos?
Minha amiga Eliane, te vejo como alguém capaz de jogar extraordinariamente bem com as palavras. Um encaixe de idéias extremamente contextualizado, que dá forma, ritmo, beleza, coerência, aprofundamento ao Texto criado. Consegues criar e resignificar, associar as palavras, estruturar as frases e parágrafos de um jeito, que o torna um texto jornalístico aprimorado, muito bem escrito.
ResponderExcluirParabéns pelo teu estilo! Mais ainda, pelo teu conhecimento e liberdade em retratar temas de tamanha relevância que dizem respeito a uma sociedade contemporânea conturbada e doente.
Muito obrigada, Janice. Vindos de uma professora de Português, teus comentários me enchem de orgulho e vindos da amiga só me resta agradecer por dispensares tempo para me ler. No ineditismo e selvageria desses tempos, escrever torna-se para mim um ato terapêutico, uma maneira de manter um mínimo de sanidade mental em meio a tanta alienação e desvarios. Obrigada.
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