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Viver para consumir ou consumir para viver?


Calle Principe, Vigo

Nunca fui uma pessoa propriamente consumista ou acumuladora a não ser de livros, embora nem todos eles ainda estejam comigo, muitos acabaram sumindo por doação, empréstimo ou esquecidos em algum canto. Por outro lado, passei muito tempo me deixando alvejar pela publicidade da televisão e do consumo por impulso. Trabalhando desde os vinte e poucos anos e tendo um salário razoável em comparação com a média brasileira, confesso, era a alegria dos vendedores de perfumes, cosméticos, das novidades eletroeletrônicas, de utilidades domésticas, roupas, sapatos, acessórios, etc...Mas, nem de longe me comportava da maneira que observava entre amigas, colegas de trabalho ou conhecidos. Em geral, eu apenas via com normalidade a atitude de pessoas perdulárias e endividadas, aficionadas por marcas de produtos, ostentando coisas muitas vezes incompatíveis com seu ganho mensal ou aventurando-se em negócios de risco. Em alguns grupos sociais esse comportamento é quase uma regra, geralmente entre as pessoas que super valorizam a aparência, os disfarces e as vaidades. No entanto, a busca por ascensão e inserção social é natural nas sociedades capitalistas que através do trabalho buscam essa recompensa, o que para outros pode tornar-se eterna ruína se não houver controle, comedimento e equilíbrio.
No Brasil, o final da década de noventa e os primeiros anos dois mil foram pródigos em viabilizar grandes aquisições como de carros e casas, ítens de sonho da classe média. Nessa época eu entrava numa estabilidade na carreira profissional e também contraí dívidas comprando imóvel, mobiliando a casa e pagando universidade particular para os filhos, poupando quase nada e mal gastando em bugigangas e artigos supérfluos.
Era comum usar o recurso das compras parceladas, o qual reconheço, ainda é forçoso para muitos num país que não valoriza o salário mínimo e segue na extrema e vergonhosa desigualdade de renda entre as categorias sociais e profissionais. Não sou especialista em economia, mas acredito que o capitalismo devora a renda das pessoas de duas formas de acordo com o poder aquisitivo. E aqui não  falo dos ricos, os donos do capital que são os que tem poder e influência nas sociedades. Falo do assalariados e informais de baixa renda cujo sistema toma todo o ganho mensal no alimento, na moradia e nas taxas públicas obrigando-os ao recurso do crediário para as necessidades de maior vulto. Os trabalhadores médios, com maior poder de compra e que poderiam ter uma certa capacidade de reserva deixam-se encantar pelo apelo midiático e consequentemente acabam seduzidos pelas compras por impulso e são engolidos pelo endividamento. Hoje não encontro justificativa e vejo até como um delito que os órgãos reguladores permitam que empresas de cartões de crédito, financeiras e o comércio em geral priorizem a venda de tudo pelo crediário e muitas vezes sem transparência, sem um processo educativo e com técnicas de coação do consumidor. Já achava absurdo e agora inimaginável comprar roupas, por exemplo, parcelando o valor em oito vezes como é praxe nas mais conhecidas e grandes lojas de departamentos no Brasil.
Com o tempo e a mudança para outro país passei a vivenciar outros padrões de consumo e de não consumo ao mesmo tempo que aprendi a valorizar o dinheiro. Em primeiro lugar, porque fui para um país com uma moeda mais forte e precisei de um tempo para averiguar a valia das coisas. As altas taxas cobradas pelas transferências internacionais também forçam a necessidade de controle de gastos e por isso também passei a dar muito sentido em como gastar cada euro. Na cotação de hoje um euro já ultrapassa espantosamente mais de seis reais. Quando cheguei aqui há seis anos não alcançava nem quatro.
Tive também outra percepção de mundo quando constatava invariavelmente nas pessoas do meu novo país o sentido do não desperdício e da economia de recursos. Ouvi muitas histórias de fome e guerra referentes à Guerra Civil Espanhola da década de 30 do século XX que destroçou o país economicamente trazendo pobreza e fome e emocionalmente separando famílias pelas mortes, prisões e pela luta em si.  Esses fatos ainda estão muito presentes na memória de muitas famílias.
Nesse período de mudanças também passei a observar novos padrões de consumo e percebi como normalizamos ver as vitrines das lojas no Brasil com os preços das mercadorias mostrados em "parcelas de pagamento". Aqui esse tipo de consumo à crédito é quase inexistente a não ser para produtos de maior valor. Para isso estão as hipotecas. Reconheço um único movimento de consumo muito popular aqui na Espanha que é a época de liquidação de estoques em final de temporada, as famosas "rebajas". Muita gente espera para comprar artigos que podem estar até 70 por cento mais baratos e é possível encontrar desde boas bagatelas úteis ou até coisas muito baratas, porém inservíveis.
Nos últimos anos também passei a ter mais informação sobre economia solidária e sustentável, sobre o trabalho similar ao escravo na indústria da moda, sobre os aditivos químicos dos alimentos ultraprocessados, sobre o comércio de grãos e sementes nas mãos dos grandes do agronegócio, sobre agricultura familiar e orgânica, sobre o negócio da carne e os danos sobre o meio ambiente e o organismo humano e  também sobre o acúmulo de lixo que gera em todo planeta na conta do consumo. Tudo isso arrematado ao grande revés planetário do aquecimento global. Diante desses temas passei a avaliar melhor a necessidade e a qualidade de cada produto que era impelida a comprar. A partir daí passei a analisar melhor minhas necessidades e a possibilidade de consumir menos e melhor, o que afinal poderia me trazer mais saúde física, mental e financeira além de contribuir como um grão de areia para a preservação ambiental.
Com a pandemia desse difícil 2020, o consumo restringiu-se ainda mais, pois a maioria dos comércios não essenciais  fechou e só podíamos nos afastar de casa para ir no supermercado mais próximo. Comprar o essencial do essencial passou a ser a rotina, pois havia uma urgência em sair do estabelecimento cuja ocupação estava limitada a trinta por cento e às vezes havia fila no lado de fora.
Quando começou o processo de abertura da economia, os negócios tentaram se adaptar e vi uma notícia que lojas de roupas abririam para atender clientes com agendamento. Achei bem bizarra essa medida, embora respeite a tentativa de sobrevivência dos locais, mas esse modelo jamais me serviria como consumidora. Ao invés disso, se tivesse tanta urgência em comprar roupas, preferiria optar pela compra por internet que podemos fazer comodamente de casa, sem pressa, com distanciamento social, com a opção de devolução e sem constrangimentos. Aliás, comprar pela internet já é um hábito cada vez mais popular e minha experiência pessoal com essa prática é bastante positiva.
Como já disse em textos anteriores não me tornei avarenta e tampouco radical anti-consumo, pois ainda gosto de experimentar novas marcas, modelos, cores e sabores e o gosto pelas viagens persiste firme e forte. Apenas me dou conta que, além dos problemas costumeiros ainda longe de solução, estamos sujeitos a sermos surpreendidos por fatos como essa pandemia, que mudem muitas situações de vida, emprego e renda. Entendo com isso que é preciso sempre parcimônia quando os recursos são limitados ou escassos. Depois e durante a pandemia será preciso essa reflexão. Talvez uma reflexão sobre minimalismo a que muitos já estão obrigatoriamente submetidos, mas que seja uma nova ordem para aqueles que estão sempre dispostos a sair de casa para comprar o que não precisam. Uma tendência a reduzir tudo ao essencial, a nos despojarmos do que sobra, dividir, igualar e equiparar poderia vir a ser uma conduta saudável. Utopia, talvez.

Comentários

  1. A abordagem desse tema - o consumismo nos dias atuais, parece-me pertinente com uma realidade que nós aqui, no Brasil cultuamos cada vez mais em maior escala. Infelizmente, a educação financeira não faz parte dos currículos escolares e nem da maioria das famílias brasileiras...Passamos a ser reféns desse consumismo desenfreado, como também, da mídia que nos consome e a nossos salários. Pobres brasileiros! E aqui me incluo, por fazer parte de uma classe tão desvalorizada em todos os sentidos.
    Muito interessante e significativo esse texto para contemporaneidade, pelo fato que apresenta os aspectos positivos e negativos de ser um consumidor compulsivo, relacionando com culturas de outro país, nesse caso, a Espanha.
    Gostei bastante!!!

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  2. Bastante pertinente o tema abordado nesse texto: consumismo pelo consumismo (acho que posso dizer assim), fazendo parte da nossa realidade, aqui no Brasil. Tão bem apresentas e te aproprias desse assunto, que considerando o alarmante consumismo em nossa cultura, necessitamos com urgência de uma política que contemple a educação financeira nos currículos escolares, bem como, o papel das mídias em auxiliar, esclarecer...as famílias sobre consumir de forma responsável, organizar-se financeiramente, evitando endividamento e transtornos.
    Gostei da tua abordagem!

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