Uma das mais nítidas lembranças da infância, eu não teria mais que cinco anos é o quarto onde dormia. Lembro da cama junto à janela, a cama de meus pais e no outro extremo o berço de minha irmã mais nova, enquanto éramos só nós quatro. Durante a noite percebia a iluminação da rua entrando pelas frestas da veneziana fechada, enquanto escutava o ruído de algum carro zunindo no asfalto, passando longe no meio da madrugada. Até hoje quando ouço um barulho assim me ajuda a dormir. A sensação é reconfortante, assim como ouvir grilos ou sapos na noite quando se vive no interior. Morávamos num apartamento de um pequeno sobrado de dois pavimentos com uma vizinhança muito amigável entre conhecidos e parentes.
O apartamento tinha dois quartos, uma sala pequena, banheiro, cozinha e um corredor. O piso era de parquet de cor clara— termo francês usado no Brasil para designar peças de madeira acopladas. A cozinha tinha um ladrilho acinzentado imitando pedra, paredes revestidas de azulejos brancos, iguais em piso e parede também num banheiro de louças claras. Lembro quase nada dos móveis e utensílios dessa cozinha, não saberia descrevê-los. Uma janela basculante de vidro e uma porta na cozinha davam para uma área de serviço. Ali tínhamos a vista de parte da cidade de Porto Alegre, o Morro da Polícia como era chamado o Morro da Embratel com as antenas de televisão e as estações de rádio lá para os lados dos bairros Teresópolis e Glória.
O Morro do Caracol
Eu ouvia os adultos chamarem nosso bairro de Morro, pois era localizado numa zona alta e com muitas ladeiras. Outros chamavam de Caracol, pois a conformação das ruas era de muitas curvas fechadas que desciam ou subiam num ziguezague de caminhos asfaltados. Talvez o nome original —provindo de uma Porto Alegre mais antiga— fosse Morro do Caracol e depois na linguagem coloquial foi reduzido. O certo é que aquele local ficava entre os bairros Rio Branco e Bela Vista de hoje.
A cada curva as ruas pareciam mudar de nome, mas não tenho certeza que fosse assim. Esse tipo de urbanização transpassava também por bairros mais acima, onde havia lindas construções cada vez maiores e mais ostentosas conforme alcançava o topo daquela elevação de terreno. Tanto na zona nobre quanto na popular daquele entorno não havia edifícios muito altos como já havia no centro da cidade. Ambas eram zonas residenciais, a primeira com muitos palacetes e grandes sobrados símbolos da arquitetura daquela época e no nosso bairro—mais popular— havia desde pequenos sobrados até casas baixas de alvenaria ou de madeira com calçadas bem postas e ruas arborizadas.
Eu ainda não saía sozinha, só lembro de brincar na escadaria do prédio junto com outras meninas que viviam no mesmo sobrado ou na mesma rua, mas minha mãe me deixou uma vez comprar balas no pequeno armazém que havia ali. Com o dinheiro enrolado na mão fui até o armazém do Seu Décio, figura conhecida de todo o Morro.
Lembro de reuniões familiares na cozinha desse apartamento, conversas soltas de adultos que a mim não faziam sentido. Lembro de minha irmã pequena no banheiro sentada num pequeno urinol com as perninhas tapadas por uma manta de bebê. No corredor, havia um móvel branco de duas portas e gavetões onde guardávamos os brinquedos. Meus favoritos eram um coelho preto com olhos bordados de vermelho e a boneca Sissi, muito loira, mexia as pálpebras com grandes pestanas e olhos azuis.
Um dia me feri no rosto na altura do osso zigomático num canto da gaveta desse armário e me levaram ao hospital para dar pontos. Ali enrolaram todo o meu corpo numas faixas brancas para não me debater durante o procedimento. A tortura maior foi exatamente essa, ter sido amarrada, pois não senti absolutamente nada quando me costuraram.
Na casa de uma tia que morava na mesma rua havia uma televisão novinha e íamos ali, minha irmã e eu, ansiosas por assistir desenhos animados. Porém, naquela época estava em curso a Campanha da Legalidade, movimento político antes do golpe militar de 1964, quando os políticos ocupavam os canais de televisão—que ainda eram escassos—para difundir os acontecimentos que estavam em curso. Esperávamos em vão para assistir Zé Colméia, Bob Pai, Bibo Filho ou Gasparzinho. Mais adiante quando já tínhamos nossa própria TV gostava de assistir A Feiticeira, Perdidos do Espaço, Os Flintstones, Viagem ao Fundo do Mar ou Batman. Também era tempo das séries Bonanza e O Fugitivo que toda a família assistia. A maioria eram produções americanas e ainda em preto e banco.
Uns anos depois, quando meu pai tinha uma camionete Kombi, a primeira de umas três, costumávamos fazer o trajeto de subir e descer o Morro quando íamos para Canoas ou São Leopoldo onde moravam outros tios e primos. Às vezes saíamos de passeio aos domingos para almoçar em algum restaurante tomando a BR-116 em direção à Serra Gaúcha. Lembro também de passear no Parque da Redenção, andar de balanço, rodar no carrossel e comer algodão doce. Algumas vezes íamos ao cinema Atlas ou no Rio Branco —ou seria Ritz?— com uma prima mais velha e assistimos clássicos como Branca de Neve e os Sete Anões, Pinóquio, Mary Poppins, Se Meu Fusca Falasse e Deu a Louca no Mundo.
A Casa do Bar
Quando completei sete anos fui para a escola primária e já havíamos mudado para outra rua, não muito longe do apartamento. Ali meu pai deixou de trabalhar como taxista e se estabeleceu com um comércio de bar e armazém. Seria como uma mercearia hoje, pois vendia desde frutas, verduras, alimentos secos, balas, confeitaria, lanches, cigarros e bebidas. Inclusive servia bebidas no balcão. Lembro dos clientes bebendo nos copinhos de aperitivo à tardinha, em pé em frente a um grande balcão de granito. Havia uma geladeira industrial com quatro portas e puxadores enormes onde se estocavam as bebidas e que fazia um barulho inconfundível de liga-desliga percebido bastante durante a noite.
Às vezes escutava discussões acaloradas que hoje, presumo, versavam sobre política e me impressionou uma vez a fala de uma senhora conhecida como Dona Mirta. Vaticinava ela que, num futuro—não sei se próximo ou distante— só comeríamos capim ou só teríamos capim para comer, algo assim. Certamente o mau agouro da vizinha se referia às políticas salariais, ao desemprego ou um suposto caos na agricultura. Bem, já se passaram mais de cinquenta anos e felizmente o capim não entrou na nossa dieta, ao contrário, a produção e oferta de alimentos teve grande desenvolvimento, embora o flagelo da fome ainda não tenha sido superado, tampouco a luta por justiça social.
A casa nova era de madeira pintada de verde-escuro e janelas marrons acoplada a uma construção de alvenaria onde estava instalada a mercearia. Ficava na esquina das ruas Amélia Teles e Lavras e havia um pátio grande onde brincávamos. Tivemos um cachorro que diziam ser policial, mas acho que era um pobre vira-lata que vivia preso na coleira e chamávamos Lobo. Não éramos incentivadas a interagir com ele, pois os cães naquela época eram usados como vigias e passou muito tempo para que eu entendesse que são seres amigáveis. Também havia uma gata amarela que teve filhotes atrás de uma cama-estante num dos quartos, mas não tenho ideia do que foi feito deles. Nessa casa e em outras ocasiões até a adolescência lembro de alguns episódios de sonambulismo que desenvolvi em criança. Acordava noutro lugar, em pé ou caminhando, mas acho que isso acontecia só quando tinha febre.
Tenho ótimas lembranças da casa do bar, ali cresci e vi nascer mais uma irmã e um irmão. Ali também passamos Natais e Páscoas muito divertidos reunidos com a família, tios e primos. Lembro de uma árvore de Natal muito alta e cheia de enfeites num canto da sala. Confeccionávamos os ninhos de Páscoa com caixas de sapato, forradas com papel de seda colorido e os enfileirava na mesa da sala para no domingo de manhã encontrá-los cheios de ovos de açúcar e bombons.
Lembro de estudar no chão da sala, com os livros e cadernos espalhados no assoalho de tábuas vermelhas que minha mãe encerava e nos mandava lustrar com panos de lã. Às vezes eu também fazia as lições na mesa da cozinha, um cômodo muito claro e agradável, enquanto comia bolacha Maria que pegava numa lata grande onde meu pai as estocava para vender a granel.
Naquela época não era comum os pais ditarem restrições alimentares quanto à doces, refrigerantes etc. Só lembro de uma regra imposta por minha mãe—que sigo até hoje— que não era permitido comer doces antes das principais refeições. Fora isso, eu adorava as guloseimas da época, bala de banana, bombom Beijo de Moça e Beijo Africano, rapadura de amendoim, chiclete Ping-Pong, picolé de chocolate, guaraná e refresco de framboesa. Mas mesmo tudo estando à disposição, não comia nada sem pedir.
A Escola
A Escola Primária ficava a pouco mais de um quilômetro a pé, mas eu ia de ônibus pois havia a linha do Bela Vista que passava justo em frente de casa e largava em frente à escola. Chamava-se Grupo Escolar Dona Leopoldina, por acaso, um personagem histórico que aprendi a respeitar e uma das mais bonitas biografias que li. O prédio era antigo, mobiliário velho, escuro e mal conservado. Os banheiros cheiravam mal, as torneiras não funcionavam e escorria água e de tudo mais pelo chão.
Na volta do primeiro dia de aula da primeira série tive uma queda estúpida em frente de casa, onde havia um desnível da calçada, o que causou uma fratura em meu braço esquerdo. Estive engessada por um tempo, mas fui às aulas normalmente. A professora só não me deixava subir nos brinquedos na hora do recreio. Lembro um dia dela me recolher lá de cima do escorregador. Dona Solange era uma senhora gordinha, baixa e afável, usava muito uma saia azul-claro pregueada e pintava os lábios com batom vermelho que muitas vezes manchava seus dentes. Tinha uma letra de forma linda que eu procurava imitar e me alfabetizei rapidamente com ela.
Na escola havia um gabinete dentário e às vezes nos mandavam ali para revisar os dentes, mas a doutora era uma senhora sem paciência e mal-humorada. Usava o cabelo curto muito preto, cheio de líquido fixador— o famoso laquê— que parecia uma juba negra. Felizmente, nem tudo eram visitas ao dentista, pois também tínhamos aulas de música, participava de uma bandinha escolar, fazia educação física e de vez em quando saíamos de excursão. Uma vez fomos à Tramandaí e molhei os pés no mar, outro dia no Jardim Zoológico, vi uma girafa pela primeira vez na vida ou ainda saíamos a ver exposições por Porto Alegre.
Nessa época as escolas adotavam uniformes e usávamos umas batas brancas cheias de pregas com um laço de fita azul no pescoço. Os meninos, ao invés do laço, usavam uma pequena gravata. Quando estava mais velha voltava à pé para casa na companhia de colegas, descendo devagar e despreocupada pelas ruas Carazinho e Lavras até chegar em casa.
No último ano que estive ali, a escola foi transladada para um prédio novinho em folha. Lembro de um cheiro suave de tinta fresca, da claridade e limpeza das salas de aula. As classes e bancos de madeira escura e formais, rabiscados e sujos do prédio antigo foram substituídos por mesas individuais e cadeiras de fórmica verde-clara. O pátio era enorme, limpo e coberto.
Por infortúnios e circunstâncias alheias à vontade de uma criança só vivi até os doze anos em Porto Alegre, mas a cidade e esses lugares ficaram marcados para sempre deixando em minha memória uma infância feliz e protegida. Justamente nessa época, quando terminava o curso primário, um acidente veio para mudar os rumos e os planos da família que escolheu deixar a capital e voltar para o interior de onde meus pais tinham vindo. Isso coincidiu também com o final dos anos sessenta.
Encantadora essa história dos primeiros anos da tua infância.
ResponderExcluirRevela uma Porto Alegre completamente distinta dos tempos atuais. Sempre muito bom, ler, conhecer tuas histórias...
Muito bonito também.
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