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Anarquia sanitária e o embuste como política

Imagem : Pixabay

Como farmacêutica de formação e atuando muitos anos em Saúde Pública e mais tarde na Gestão da Assistência Farmacêutica do Sistema Único, relutei em falar sobre isso. No entanto, precisava exteriorizar uma indignação, aliás, minha velha conhecida, quanto à forma como governos federais, gestores estaduais e municipais, parte da sociedade e também da imprensa em sua maioria leigos, tratam os medicamentos como produtos quaisquer, que poderiam, numa visão puramente mercadológica, estar à disposição nas prateleiras dos supermercados, em lojas de departamentos, vendidos pela internet, em feiras de rua ou nas mãos de vendedores ambulantes.

É quase um mantra profissional informar que um medicamento jamais é desprovido de risco. Antes de ser usada para curar, toda substância é uma droga e dependendo da dose ou da forma de apresentação pode provocar desde pequenos desconfortos ao organismo, como graves prejuízos à saúde e também levar à morte. Uma planta, um alimento, uma bebida quando irresponsavelmente consumidos também não são isentos de riscos. Todo medicamento antes de ser lançado do mercado passa por inúmeros testes químicos e clínicos, demanda dedicação e tempo de muitos profissionais e muito dinheiro para as pesquisas. Ou seja, não é algo que acontece da noite para o dia e tem uma carga imensa de conhecimento científico acumulado. Conhecimento esse que tem sido sistematicamente desprezado por conta de charlatanices que vêm sendo disseminadas, aproveitando-se do momento em que a população está mais carente de saúde, de respostas e de soluções  para a grande crise mundial da pandemia  do coronavírus.

Desde dezembro de 2019, quando apareceu o primeiro caso na China, pesquisadores e profissionais de saúde enfrentam duplo desafio, tentam salvar vidas dentro dos hospitais e ao mesmo tempo correm contra o tempo nos centros de pesquisa, testando substâncias que possam ser efetivas para curar ou prevenir a Covid-19. Até agora falou-se em muitos tratamentos, mas nada ainda foi declarado pela OMS como protocolo efetivo para o manejo clínico dos pacientes mais graves. Imagino quantas pessoas morreram e seguirão morrendo nesse grande experimento científico mundial,  fazendo de 2020 um ano que jamais será esquecido.

Lembro de antigas lutas por parte do Conselho Federal de Farmácia para proibir a venda de medicamentos em supermercados na década de 90, das campanhas de promoção pelo uso racional dos medicamentos dos anos 2000, da proibição de propaganda de medicamentos pela televisão, da exigência de receita médica para a compra de antibióticos, pelo cumprimento da lei 5991/73 que exige a presença de profissional farmacêutico em todo período de funcionamento das farmácias. Era uma busca pela excelência, adesão à normas internacionais, pelo respeito ao público, pela promoção e proteção da saúde do cidadão tão evidenciadas na Constituição Federal.

Hidroxicloroquina, ivermectina e dexametasona são medicamentos bastante conhecidos pelas equipes de saúde, têm mecanismos de ação e indicações bem definidos e fazem parte das listas dos medicamentos essenciais do Sistema Único de Saúde. Todo cidadão pode ter acesso a eles gratuitamente mediante prescrição e supervisão médica e farmacêutica. Como todos os medicamentos de consumo nacional, são regulados pela Agência Nacional de Saúde e fiscalizados desde sua importação, fabricação, comercialização e distribuição pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária e seus órgãos estaduais.

Agora, no momento mais crítico e de mais vulnerabilidade sanitária, estando a população exposta ao contágio de um vírus pouco conhecido, surgem desserviços, distorções e aberrações as mais variadas vindo dos mais variados órgãos e pessoas públicos, privados e associações da sociedade civil. Não obstante, para piorar a catástrofe que vive o mundo e o nosso país, atos e cenas aberrantes invadiram o cotidiano brasileiro, quando o chefe da Nação achou por bem ignorar a gravidade da pandemia, rechaçar o sentido do isolamento social e fazer publicidade falsa, acintosa e premeditada de hidroxicloroquina como tratamento para Covid-19. O mais incrível é que parece que há um pacto nacional para que, no desespero de encontrar soluções, mesmo que forjadas, para a crise econômica que veio atrelada à crise sanitária, governos estaduais, municipais, órgãos e corporações alinhadas com o governo federal empenham-se nesse cúmplice desvario inconsequente e irresponsável.

Onde estão os órgãos de defesa do consumidor e da saúde pública?

Onde estão os órgãos de fiscalização do exercício profissional que não apontam o delito de exercício ilegal da profissão, quando pessoas não médicas como o presidente da república, jornalistas e prefeitos promovem o uso indiscriminado de hidroxicloroquina, associações com dexametasona, ivermectina em doses cavalares e outras bizarrices medicinais em aparições públicas, vinculando fortemente sua imagem com a de um medicamento inócuo para evitar as mortes e não livre de riscos à saúde.

Onde estão os Conselhos de Farmácia e Medicina, ao que parece submissos aos abusos governamentais e não emitem pareceres honestos baseados na ciência?

Onde estão os órgãos de fiscalização de publicidade e propaganda, quando planos de saúde enviam para seus  médicos conveniados  kits para coronavírus sugerindo prescrições como se fossem brindes de final de ano.

Onde estão os fiscais da Vigilância Sanitária, quando aparecem fotos nas redes sociais de ambulantes vendendo na rua e no transporte público caixas de hidroxicloroquina, como se fosse algodão doce? Fato esse tão grave que carece de veracidade.

Onde está o Ministério da Saúde que não promove uma só campanha de informação baseada nas orientações da OMS, esconde as estatísticas e ainda tira aproveito da boa-fé da população que acode às farmácias buscando o remédio do presidente?

Onde estão Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal e o Tribunal de Contas que não enxergam no mínimo, improbidade administrativa por parte do governo federal e até do Exército Brasileiro que, segundo a imprensa gastou os tubos para fabricar medicamentos inúteis e que agora precisam urgentemente despejar os estoques para desonerar-se da irresponsabilidade e da sua gigantesca incompetência administrativa?


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