Entre o final de 1969 até a metade de 1970 ainda permanecemos em Porto Alegre e moramos estes seis meses num conjunto habitacional para os lados da zona norte. Naquela época era literalmente onde acabava a área urbanizada da cidade. De onde vivíamos antes até este novo endereço são cerca de 10 km que se pode fazer em 40 minutos de ônibus ou 10 minutos de carro com as rotas que existem hoje, porém naquele tempo não havia muitas opções de percurso e havia pouca fluidez no trânsito.
O conjunto habitacional era relativamente novo, consistia de vários blocos e tomava uma rua principal dos dois lados e várias outras transversais. Chamava-se Parque São Sebastião. O nosso apartamento era térreo com três quartos, sala de bom tamanho, piso de tacos de madeira clara e brilhosa. A cozinha ficava numa posição de fundo e era um tanto escura, assim como o banheiro. Era tudo novo e cheirava bem. Meu pai, depois que passou adiante o negócio do bar-armazém, passou a trabalhar com vendas e viajava para o interior do Estado em sua kombi durante a semana, enquanto isso minha mãe começou a exercer de costureira.
Eu tinha feito provas de admissão em dois colégios para ser aceita no Curso Ginasial — hoje equivale do 6° ao 9° ano Fundamental — e obtive boas notas em ambos. Entretanto, como ainda não sabíamos onde iríamos morar fui matriculada no final do ano anterior numa escola no Centro da cidade. O Colégio Pio XII funcionava como escola ginasial no turno da tarde. No turno da manhã se chamava Paula Soares e era uma escola primária. Até hoje essa escola funciona no prédio vizinho ao Palácio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul localizado no Centro Histórico de Porto Alegre, uma construção antiga e imponente do final do século 19.
Eram três pisos com grandes aberturas e portões de ferro, largas escadarias em madeira e salas de aula amplas e iluminadas. Cada aluno tinha uma caderneta escolar, um livrinho de capa azul onde eram carimbadas as presenças, ausências e outras anotações. O uniforme já não era mais aquela bata disforme e comprida do Grupo Escolar. Era uma saia azul marinho acima do joelho, blusa branca, um lacinho vermelho na gola, sapatos pretos e meias brancas. Era pouco comum as mulheres e meninas usarem calças compridas naquela época— num uniforme escolar era impensável. Somente foi permitido usar calças compridas na escola mais ao final dos anos 70, quando eu já cursava o ensino médio que na época chamava Científico.
Eu estava habituada a andar de ônibus desde os sete anos, portanto não lembro de ter dificuldades para ir para esta escola no centro da cidade, só tinha que descer no final da linha na Praça Quinze de Novembro e caminhar um pedaço a pé subindo a Avenida Borges em direção à Praça da Matriz, percurso de cerca de um quilômetro. Desde o bairro, o trajeto me parecia larguíssimo, porque pegava sempre horários de pico tanto para ir quanto para voltar o que dava em torno de trinta a cinquenta minutos segundo cálculos do Google Maps de hoje. Nos dias de inverno chegava em casa com o dia já escurecendo e minha mãe me esperava na parada de ônibus perto de casa. Parece um tanto descabido nos dias atuais mandar uma criança de doze anos sozinha em transporte público numa cidade grande, mas nunca me aconteceu nada. Eu apenas fazia o trajeto num passo acelerado para não perder o horário do ônibus no ponto. Deu sempre certo.
Numa dessas voltas do colégio lembro da Avenida Borges estar sendo interrompida porque haveria uma recepção a Everaldo, único jogador gaúcho da seleção brasileira que voltava do México com o título de tri campeão da Copa do Mundo daquele ano. Àquela hora, na saída da escola, pelas cinco da tarde, já havia muita movimentação de pessoas para ver o desfile do ídolo. Naquele momento eu não sabia nada sobre a recepção, apenas intuí, porque a Copa do Mundo estava muito presente na cabeça das pessoas naquele mês. Segundo artigo jornalístico da época foi uma festa que parou Porto Alegre e uniu gremistas e colorados no dia 24 de junho de 1970.
A vizinhança do condomínio era bem barulhenta e cheia de crianças. Lembro de brincar na rua e nos corredores com uma turma de minha idade, mas não lembro o nome de nenhum deles. Como eu disse, estávamos no final da cidade e passando os muros do conjunto havia um campo grande onde pastavam bois e vacas e ali havia todos os dejetos e cheiros possíveis de onde surgiam nuvens de mosquitos nos dias quentes. No meio do descampado, numa parte mais elevada da área havia uma casa antiga, danificada e deserta que diziam ser mal-assombrada. Às vezes me punha a observá-la desde o muro ou da janela de casa, mas nunca vi nada estranho ali, tampouco cheguei perto.
Algumas semanas me deixavam aos cuidados de uns tios que moravam mais perto do centro para facilitar meu deslocamento até a escola. Eu não gostava muito de ficar longe de casa, pois não sentia a mesma atenção e segurança, embora todas as pessoas me tratassem bem.
Em julho de 1970 demos adeus a Porto Alegre e iniciou-se nova etapa de vida para todos.
Comentários
Postar um comentário
Sinta-se à vontade para comentar