Pular para o conteúdo principal

O baixo Brasil das bruxas soltas


Não gosto de ouvir o termo bruxa dirigido às mulheres, nem para designar a aparência, tampouco para atacar seu caráter. É um termo misógino e antifeminista usado desde tempos imemoriais para calar, reprimir e aviltar seres pensantes e que destemidamente buscavam a igualdade entre os gêneros. Muitos milhões de vidas pereceram brutalmente assassinadas ou encarceradas pelo crime de não se submeterem, de buscar respeito e relevância mais além da finalidade reprodutora, sexual e de sujeição às necessidades do gênero masculino. 

O arquétipo da bruxa está presente nos contos infanto-juvenis como a imagem da maldade, da inveja, da antiestética, da ambição. Expressam-se como seres dotados de alguma sabedoria, mas que o senso comum deixa claro que é uma sabedoria invariavelmente usada para o mal. Um dos exemplos que quebram esse paradigma da malignidade das bruxas é o filme Malévola, produzido pelos estúdios Walt Disney.

Na Língua Portuguesa, a expressão a bruxa está solta é uma forma de dizer que algo não vai bem, que acontecimentos estranhos estão surgindo muito repetidamente, que há uma maré de azar ou que estamos vivendo um período sinistro e muito ruim.

Pois nós, brasileiros advertidos ou inadvertidos estamos assistindo um período mais do que sinistro e ruim da nossa história. Está instalada uma verdadeira convenção de bruxos e bruxas saídos do mais funesto túnel do retrocesso e do obscurantismo social e político jamais visto desde o século XX.

Há uma mistura inaceitável de religião com política num Estado laico legitimado pela Constituição Federal, o que já mostra o fosso que o país se encontra, tentando se assemelhar às teocracias medievais. A hipocrisia religiosa está manifesta, quando doidos e mal-intencionados vão para frente de um hospital vociferar contra o aborto legal de uma criança, criminalizando o sexo feminino e a infância e ignorando o crime hediondo do indivíduo do sexo masculino.

O parlamento brasileiro está cheio de figuras bizarras e ignorantes de seu verdadeiro papel. Muitos se lançam na carreira política usando a enganação, a religião e a boa-fé dos eleitores. Ali já tentaram emplacar leis absurdas quanto aos costumes, se imiscuindo na sexualidade das pessoas, já tentaram censurar livros, obras de arte e fazer revisionismos em conteúdos escolares. A hipocrisia é escancarada, quando alguns desses parlamentares muito religiosos são acusados de ardilosos crimes contra a vida, e buscam a imunidade de seus cargos para escapar da prisão como temos acompanhado nos noticiários dos últimos dias.

Alguns juízes e procuradores de justiça se elevam a uma casta de ungidos e soberanos, enquanto tomam atitudes notoriamente punitivistas contra supostos inimigos da pátria, numa inquisição moderna que arrancaria palmas da Santa Inquisição. Ao mesmo tempo que se protegem de investigações e punições de suas próprias arbitrariedades, assim se tornam pródigos em combater a corrupção sendo corruptos.

Tempos atrás parte da classe médica promoveu uma campanha de ódio e xenofobia contra seus colegas cubanos, quando estes chegavam ao Brasil para ocupar postos de trabalho que vinham sendo rejeitados pelos mesmos profissionais brasileiros. Atitudes como essa, além de incivilizadas, mostravam o quanto esses médicos estavam alheios às necessidades da população, principalmente das zonas periféricas das cidades e dos sertões do país. Tempos depois, ainda mais estupidificados, desprezando a própria ciência que os formou e as diretrizes internacionais, se submetem, calados e aplaudem o governante leigo que propagandeia medicamentos sem comprovação científica. Irresponsavelmente, tanto os médicos como os governantes estimulam a automedicação no momento mais sensível da pandemia por coronavírus.

Governantes tentam calar seus oponentes e desrespeitar a liberdade de expressão criando supostas listas de pessoas monitoradas pela inteligência e segurança nacional num claro procedimento digno de ditaduras. Ao mesmo tempo insultam jornalistas, porque não têm respostas para perguntas embaraçosas e pertinentes. 

A população pobre e negra das periferias é morta pelo Estado como nos tempos da escravidão, quando estas vidas só importavam para arrancar-lhes o trabalho forçado e a dignidade.

A percepção da pandemia por parte da população segue a visão negacionista do governo, responsável pela inexistência de políticas públicas para a efetiva conscientização do problema e o país segue em número crescente de mortes e afetados, num ponto que já se banaliza a doença e a vida segue como se nada...

Por último e não menos grave é que parte da população e de alguns aproveitadores têm muita dificuldade de entender a diferença entre liberdade de expressão e produção de mentiras. Por isso as redes sociais seguem lotadas de fake news manipulando crédulos, aumentado a desinformação e corroendo a democracia.

Isso é só uma parte do Brasil das sombras. Os absurdos são muitos. Até quando os enfeitiçados pelo ódio  seguirão seu projeto de escuridão?

Nós, homens e mulheres descendentes das bruxas genuínas seguiremos aqui sua luta.


                                              * * *



Comentários

  1. Concordo que a idéia de "bruxa" a partir do séculoXVIII passou por vários estereótipos, todos designando a figura de mulher extremamente depreciativa, fugindo ao real sentido da palavra. Aliás, muitas caracterizações negativas, discriminatórias sofreram as bruxas ao longo do tempo - como bem mostras em teu texto.
    Porém, atualmente, o termo bruxa, para muitos, passou a ter outros sentidos; da mulher sábia, voltada para sua essência - a natureza; generosa, ao mesmo tempo, enigmática,mística, à frente de seu tempo, dentre tantas outras conotações.
    Portanto, sob esse novo estigma, recomendo a leitura: o-livro-da-bruxa-roberto-lopes.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Bom saber que o estigma da "bruxa" vai adquirindo novos sentidos. Só me referi a elas, porque lembrei do termo muito usado na Língua Portuguesa "bruxas soltas" para descrever o baixo Brasil nessa maré de horrores, tema central do texto.

      Excluir
  2. Sim, Eliane, a expressão "bruxas soltas" a que fazes referência, relacionando a um Brasil atual de horrores e um termo nosso super conhecido. Na verdade, entendo que o foco do teu texto e a caótica situação em que nós, brasileiros nos encontramos...




    ResponderExcluir

Postar um comentário

Sinta-se à vontade para comentar

Postagens mais visitadas deste blog

O Morro do Caracol

Foto: Rua Cabral, Barão de Ubá ao fundo e o Mato da Vitória à esquerda Arquivo Pessoal O povoamento de uma pequeníssima área do bairro Bela Vista em Porto Alegre, mais especificamente nas ruas Barão de Ubá que vai desde a rua Passo da Pátria até a Carlos Trein Filho e a rua Cabral, que começa na Ramiro Barcelos e termina na Barão de Ubá, está historicamente relacionado com a vinda de algumas famílias oriundas do município de Formigueiro, região central do Estado do Rio Grande do Sul.  O início dessa migração, provavelmente, ocorreu no final da década de 40, início dos anos 50, quando o bairro ainda não havia sido desmembrado de Petrópolis e aquele pequeno território era chamado popularmente Morro do Caracol. Talvez tenha sido alcunhado por esses mesmos migrantes ao depararem-se com aquele tipo de terreno. Quem vai saber! O conceito em Wikipedia de que o bairro Bela Vista é uma zona nobre da cidade, expressão usada para lugares onde vivem pessoas de alto poder aquisitivo, pode ser apli

Puxando memórias I

https://br.pinterest.com/pin/671177150688752068/ O apartamento Uma das mais nítidas lembranças da infância, eu não teria mais que cinco anos  é o quarto onde dormia. Lembro da cama junto à janela, a cama de meus pais e no outro extremo o berço de minha irmã mais nova, enquanto éramos só nós quatro. Durante a noite percebia a iluminação da rua entrando pelas frestas da veneziana fechada, enquanto escutava o ruído de algum carro zunindo no asfalto, passando longe no meio da madrugada. Até hoje quando ouço um barulho assim me ajuda a dormir. A sensação é reconfortante, assim como ouvir grilos ou sapos na noite quando se vive no interior.  Morávamos num apartamento de um pequeno sobrado de dois pavimentos com uma vizinhança muito amigável entre conhecidos e parentes.  O apartamento tinha dois quartos, uma sala pequena, banheiro, cozinha e um corredor. O piso era de parquet  de cor clara— termo francês usado no Brasil para designar peças de madeira acopladas. A cozinha tinha um ladrilho aci

Distopia verde-amarela

Foto: Sérgio Lima/AFP Crônica classificada, destacada e publicada pelo Prêmio Off Flip 2023 Dois de novembro de 2022, dia de sol pleno. Moro perto de um quartel. Saio para a caminhada matinal e noto inúmeros veículos estacionados na minha rua que não costuma ser muito movimentada. Vejo muitas pessoas vestidas de verde e amarelo ou enroladas em bandeiras do Brasil indo em direção ao prédio do Exército. Homens, mulheres e até crianças cheias de acessórios nas cores do país, um cenário meio carnavalesco, porém sem a alegria do samba. Pelo contrário, as expressões eram fechadas, cenhos franzidos.  Quando chego à esquina e me deparo com o inusitado, me pergunto em voz alta:    —Mas o que é isso? — um senhor sentado na entrada de seu prédio me ouve e faz um alerta: "A senhora não passe por ali, é perigoso!” Então entendi que o perigo era pós-eleitoral. Os vencidos tinham fechado a rua em frente ao quartel e pediam intervenção militar . Ou seria federal? Não havia muita coerência no uso