Depois do susto com um ônibus desgovernado entrar pátio adentro de nossa casa, deixando alguns danos materiais e certamente, insegurança e medo, mudamos definitivamente de casa, de cidade e de vida. Não sou capaz de avaliar o abalo emocional provocado, pois era uma criança, mas sem sombra de dúvida foi o fator de maior peso nesta decisão.
Não havia possibilidade de reclamar com os órgãos de defesa do cidadão, porque não havia órgãos de defesa do cidadão, porque também não havia cidadania, tampouco democracia. A busca pelo direito à segurança para as ruas do bairro evidentemente era inviável, se não fosse, seria caro. Não havia como demandar a empresa de transportes pela imperícia e irresponsabilidade do motorista ou pela negligência do mecânico que não supervisionou os freios do veículo. Não havia maneira da vizinhança articular-se para solicitar a colocação de um simples semáforo no cruzamento e evitar futuros acidentes.
Naquele 1969, vigorava o AI-5 e o povo, além de estar amordaçado pelo autoritarismo do regime, não tinha consciência que o Estado para o qual pagava impostos, também lhe devia proteção. Parece que um seguro pagou as despesas com os danos na casa. O motorista envolvido, depois do acidente, passou a abrir-nos a porta dianteira do ônibus e não cobrava a passagem. Deve ter pesado na consciência o fato de que, por pouco, não havia matado duas crianças, mas feriu gravemente uma outra pessoa que estava na calçada.
Na metade de 1970 nos mudamos para o interior do Estado onde segui com o curso ginasial. A escola tinha bons professores, instalações dignas e uma certa qualidade de ensino, embora os métodos fossem os mesmos—absorver conteúdos, assimilar regras, sem exercitar visão crítica, nem aprender a pensar. Tudo pedia ordem, moral e civismo como eram os valores educacionais da época. Eu continuei sendo a mesma aluna aplicada e fui tomando contato com outros temas e idiomas estrangeiros— inglês e francês— como já havia na outra escola.
Embora a escola tenha me influenciado positivamente, o mais marcante nesta cidade tinha relação com os costumes. Era um lugar pequeno, talvez não mais que dez mil habitantes naquela época. Alguns sobrenomes tinham importância e dinheiro, ou só importância porque em alguns casos o dinheiro era só aparente. Era um lugar onde definitivamente as aparências davam o tom das relações. Meu sobrenome era conhecido e talvez tivesse certa importância, mesmo sem dinheiro nenhum. Levada por familiares— eram muitos—fiz algumas amizades e tive um curso ginasial também com boas notas e nunca repeti de ano.
Era o começo da adolescência e tudo se complicava sobretudo nas convivências como é comum nessa fase. Para ganhar aceitação no grupo, aos 13 anos já aprendi a fumar nas redondezas da escola, de onde era permitido sair do pátio na hora do recreio. Havia um bar ali perto que vendia cigarros por unidades. Quão fácil era viciar jovens e crianças curiosos na adição ao tabaco naquela época! Só na década de 90, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente a venda de cigarros e bebidas a menores ficou proibida. Eu não lembro de ter dinheiro para isso, alguém comprava e fumávamos um único cigarro entre 3 ou 4 meninas. Depois de umas tragadas sem jeito, voltava meio enjoada para a sala de aula e certamente cheirando mal, mas os professores nunca reclamaram e não me viciei imediatamente só com aquelas aventuras daquelas tardes. Passei a fumar alguns anos depois a partir dos 20, já na Universidade de maneira moderada e deixei definitivamente esse vício horrível aos 32.
Nesta pequena cidade morávamos numa rua que não tinha pavimentação, era de terra batida, fazia barro quando chovia e aquilo me parecia anormal. Eu tinha medo de galinhas, vacas e de cavalos que passaram a ser animais comuns no meu entorno. As pessoas tinham um sotaque diferente e eu falava um portoalegrês cheio de dis e tis, motivo de gracejos por parte de alguns colegas. A aparência física e as roupas contavam muitíssimo e as pessoas eram acostumadas a reparar muito as vestimentas umas das outras.
O provincianismo é uma característica de lugares de interior. Os romances brasileiros clássicos do século XIX e XX são pródigos em detalhar a sociedade com características conservadoras, religiosas, mentes estreitas e repressivas. Havia um certo modo de vida decadente no sentido dos valores e das posses, mas sem nunca perder a elegância, lembrando a música de Lobão, principalmente nas povoações de origem portuguesa. Ali não era diferente, embora dentro de minha casa e na família em geral, a religião e a repressão não estavam supervalorizados e meus pais tinham cabeças um pouco mais abertas. Foi assim que nunca deixei de sentir que minha vida, de uma maneira geral, tinha retrocedido depois de deixar o lugar onde cresci.
Havia dois clubes na cidade e aos domingos faziam serões dançantes à tardinha, onde entrávamos em grupo, dávamos uma volta e logo perdíamos o interesse, pois era um lugar onde se encontravam somente jovens mais velhos que nós. Os eventos noturnos ainda não eram permitidos a menores de 15 anos, ou melhor, as meninas que ainda não tinham tido seu baile de debutantes ainda não frequentavam a noite. Esses bailes costumavam acontecer uma vez ao ano e tinham forte adesão, quase que como uma obrigação das famílias. Menos da minha que não tinha condições financeiras e tampouco muito entusiasmo por essas veleidades.
Eu gostava de encontrar com as amigas na praça central, andando de um lado para outro ou sentadas em algum banco com nosso melhor sapato ou roupa. Naquela época começavam a aparecer as calças jeans e ganhei uma importada da Argentina quando tinha 14 anos. Com minha mãe sendo costureira, lembro que ganhávamos roupas novas de vez em quando e ela gostava de copiar modelos e as novidades das revistas. Depois ela passou a vender cosméticos de uma empresa conhecida mundialmente de venda porta em porta. Tínhamos sempre em casa muito batom, sombra, cremes, esmaltes, perfumes etc. Durante um tempo usava máscaras para os cílios todos os dias para ir à escola, produto que na idade adulta jamais usei. Felizmente a passagem por essa cidade foi curta e logo nos mudamos dali quando comecei o Ensino Médio e partimos para outra realidade.
No convívio com os colegas de escola, nunca fui pretensiosa, era bastante tímida e não queria me sentir melhor do que ninguém. Porém, eu notava que tinha uma bagagem cultural maior e que algumas vezes procurava esconder para me equiparar e não passar por sabidinha demais. Já bastava meu sotaque atrapalhar um pouco. Estudando em grupo, muitas vezes eu fingia não saber dos temas e não me manifestava muito em sala de aula. Era melhor manter-se no nível da média, pois não gostava de estar em evidencia. Claro que nas provas individuais eu dava toda a minha habilidade e sempre tinha boas notas.
Sempre considerei que se eu tivesse permanecido na capital teria tido mais e melhores oportunidades. As escolas, as universidades, os cinemas, os teatros, os museus, as bibliotecas, inclusive o aeroporto, tudo estaria ali há poucos quilômetros ou metros de distância—embora o aeroporto ainda não estava entre as minhas pretensões. O restante me agradava e muitas vezes me via entrando naqueles prédios antigos das UFRGS quando passava em frente, assim como lamentava não ter estudado no Instituto de Educação, mesmo tendo garantido uma vaga. Claro, isso não vale para todos, pois sei que milhares de pessoas vivem perto de tudo isso e não usufruem pelos mais variados motivos, uns não têm interesse, outros não têm condições e outros simplesmente ignoram esse privilégio. Eu garanto que tiraria o melhor proveito para minha formação pessoal e profissional.
Antes de completar 16 anos e terminada a escola ginasial já estávamos de mudança para outra cidade onde cursaria o Ensino Médio chamado naquela época Curso Científico. Era noutra região não muito distante, mas com características bem distintas, de imigração italiana, ou seja, outros costumes, outras experiências, outras amizades e outras histórias.
Muito lindo seu texto.
ResponderExcluirGostei muito, a começar pelo título em francês!
ResponderExcluirUma história cheia de particularidades, remete a um tempo em que os costumes se assemelhvam; nossas famílias, modelos de escolas, entretenimentos...tudo sob o regime de um governo militar.
Parece-me até, que à época a Educação era regida pelos conceitos ultra conservadores, sem nenhuma liberdade de expressão; bem como, as manifestações artísticas/culturais controladas e limitadas pelo Estado ditatorial; escola do tipo conservadora, baseada na repetição de conteúdos, sem desenvolver o pensamento crítico. Bem como tua fala! Assim, vivíamos nossa adolescência...
Voltei no tempo....me vi no teu texto!E compartilho da tua percepção sobre a cidade do interior, a primeira.
ResponderExcluirDe certa forma acho que nunca fiz parte de nenhuma delas, no fundo sabia que seriam relações não duradouras as que tive ali.
E eu fui arrebatada de Porto Alegre, a única que até hoje tenho as melhores recordações.
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