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Uma estrangeira há dois mil dias

Vista do Porto Deportivo de Combarro- arquivo pessoal


Marlena de Blasi, chef e escritora americana radicada na Itália escreveu Mil Dias em Veneza, publicado em 2002 contando como se transferiu dos Estados Unidos para a Itália numa decisão baseada em amor. Li o livro em meados de 2009 e algo ali me parecia muito familiar, como um pressentimento.

Anos mais tarde fiz a mesma mudança de continente pelo mesmo motivo de Marlena e agora já passa de dois mil dias desde que me transladei de mala e cuia— literalmente— para esse paraíso chamado Galícia, extremo oeste da Península Ibérica, terra dos antigos celtas, das fadas, das Rias Baixas, dos mariscos, do Finisterra—o Fim da Terra— do galego, língua irmã do Português e de Combarro, um dos pueblos mais bonitos da Espanha.

Cheguei no último dia de verão de 2014, 21 de setembro— dos breves dias de calor e praia galegos— e começo da temporada gelada e úmida que dura mais ou menos até abril.  Entrei no país com o passaporte visado pelo Consulado Espanhol de Porto Alegre e em seguida dei entrada nos documentos necessários para permanência: permiso de residencia—carteira de identidade de estrangeiro—empadronamiento—registro na prefeitura—conta em banco e linha telefônica.

Nos dois primeiros anos senti muita falta de antigos hábitos, de lugares, de pessoas, da família e até do trabalho do qual já me havia retirado. Felizmente já existiam os aplicativos de mensagem e os grupos aonde permaneci conectada e voltei ao Brasil todos os finais de ano para passar as festas. Apesar da saudade da família— preço a pagar por essas escolhas—seja uma constante, a falta de amigos, os costumes e o idioma foram desafios ora já superados.

O idioma

Logo que cheguei descobri um curso de Espanhol na Cruz Vermelha que, além de serviços médicos, presta atendimento à idosos, crianças, imigrantes etc. As aulas eram gratuitas, ministradas por voluntários e tinham como objetivo a inserção social dos imigrantes em seu novo país. Ali conheci pessoas de vários lugares. A maioria eram mulheres de nacionalidade marroquina que fazem parte de uma grande comunidade aqui na Espanha.

Além delas conheci também dezenas de brasileiros que nos últimos anos haviam emigrado para a Península em busca de oportunidades de trabalho, estudos ou pelo casamento. Este curso porém, não foi muito efetivo para meu aprendizado, porque meus colegas de língua árabe exigiam um ritmo mais lento, mais atenção dos professores e não avançávamos muito. No entanto, esse convívio foi uma rica troca de experiências com outras culturas, com gente muito querida e divertida.

Na verdade, meu primeiro contato com a língua foi mais custoso, porque aqui coexistem dois idiomas oficiais, o castelhano e o galego e no início não os distinguia bem. O galego é similar ao português, porém tem uma entonação muito diferente e a escrita me parece uma mistura de português antigo com castelhano. Faz parte do currículo escolar, todos entendem, mas nem todos falam. Há um certo preconceito por parte da sociedade que se recusa a falar em galego, pois considera uma língua de pueblo— linguajar de interior.  A ditadura franquista—que durou quarenta anos até 1978—não reconhecia o idioma, o que obrigava as pessoas a falar somente em castelhano. Porém, nas últimas décadas isso mudou, existem canais de televisão transmitidos em galego, o povo adquiriu mais segurança no falar e os jovens são incentivados a ter orgulho do idioma de sua terra.

Assim eu pouco entendia os nativos e eles também não me entendiam. Fui educada em meio à ditadura militar, onde a língua Inglesa era mais valorizada e não havia a disciplina de Espanhol. Nós, brasileiros acostumados a estar de costas para nossos vizinhos sul-americanos, parece que desconsideramos a cultura vizinha. Preferimos cultivar apenas vazias rivalidades no futebol em detrimento do saudável intercâmbio social e cultural. Isso faz com que muitos brasileiros pensem que é fácil comunicar-se nos países de língua espanhola bastando puxar aquele famoso portunhol. Não é verdade. 

Passei a assistir telejornais, novelas, séries e filmes, prestando atenção até na publicidade para acostumar o ouvido. Nos primeiros tempos, quando precisava ir à lojas ou supermercados levava as frases memorizadas. Mais tarde, após deixar o curso na Cruz Vermelha, decidi preparar-me sozinha para as provas de certificação de nível A2 em espanhol pelo Instituto Cervantes—uma das exigências para entrar com o pedido de nacionalidade espanhola. Agora leio e compreendo perfeitamente os dois idiomas oficiais, mas como segui falando português em casa e fiz muitas amizades brasileiras não adquiri fluência, embora use naturalmente muitas palavras em espanhol no meio das frases. 

A Gastronomia

Meu marido trabalhava de oito às três da tarde, então me incumbi de cozinhar. Precisava manter meu horário de almoço até, no máximo à uma da tarde como o hábito brasileiro. Os espanhóis costumam almoçar por volta das 3— mas nunca me adaptei. Inclusive alguns pequenos comércios fecham nessa hora para reabrir das 5 às 9 da tarde—mesmo no inverno, quando o dia se faz noite, eles chamam tarde até pelas 22 horas.

Tive um pouco de dificuldade para adaptar-me com a comida, não que eu exigisse muito, mas carne, feijão e arroz tiveram que ser substituídos por peixes, mariscos, batatas e verduras em pratos bastante simples e únicos. Estamos acostumados no Brasil com uma variedade de iguarias nos buffets à quilo e por isso me resultava estranho preparar somente um ou dois pratos acompanhado de fatias de pão, ítem obrigatório. 

Eu procurava substituições por outros ingredientes que pudessem adaptar-se aos pratos que estava acostumada, mas na prática não dava muito certo. Foi difícil, por exemplo, substituir a banana-prata—meu alimento favorito no café da manhã— pelo plátano das Ilhas Canárias, um fruto maior e menos doce, mas o café solúvel de sempre e o pão de barra tradicional galego equilibraram os meus sentidos. 

O arroz mais popular é um tipo integral de grãos redondos ou de aspecto quebrado muito usado nas típicas paellasprato de arroz caldoso com frango e mariscos que se quisermos cozinhar como o arroz no Brasil não há maneira de ficar solto. Tempos depois, uma amiga brasileira me apresentou o arroz Basmati tailandês, um tipo de arroz muito branco e fininho que cozinha rápido e sempre fica soltinho. 

O feijão preto está sempre disponível nos supermercados, mas não é costume. Aqui preferem o feijão branco, aquele grão maior, para fazer fabada—prato típico asturiano com linguiça— ou nas saladas. Outro grão muito apreciado são os garbanzos — grão de bico— que é cozido como se fosse feijoada com muitas carnes e especiarias.

A yuca é um tubérculo como a mandioca, cozinha muito rápido, vem da América envolta em parafina para não estragar e é muito fácil de descascar. Também está disponível nas fruterías papaya—mamão— também uma planta tropical. Ambos não são produtos baratos, mas são encontrados facilmente. Embora tenha trazido os apetrechos—cuia e bomba— para tomar chimarrão, não me animei a experimentar a única marca de erva-mate que encontrei por aqui— a argentina Cruz de Malta. Tanto que abandonei o hábito.

Enfim, era preciso adaptar frutas, verduras e legumes mais usados aqui e empreender a mudança para o consumo de pescados— opção audaciosa para quem estava acostumada a comer peixe só na Sexta-Feira Santa— e um caminho resignado para a sobrevivência, o menor dos males.  Torço para que os nutricionistas não voltem atrás nas recomendações de gorduras ômega-3— presente nos peixes— para a saúde do coração e do sistema circulatório.

As pescaderias e as lonjas —postos de venda de pescado direto das cooperativas de pescadores ao consumidorpossuem sempre grande variedade, aonde diariamente chegam peixes frescos como merluzas brancas ou rosas, atum, rape, bacalhau, raia, sardinha, jurel, cavala, rapante, linguado etc. Aprendi a comer mariscos, aqui muito apreciados como pulpo, mejillones, calamares, chocos, langostinos, cigalas, almejas, berberechos e zamburiñas. Hoje já não me faz falta comer arroz e carne todos os dias, que foram substituídos por ovos, batatas, legumes variados ou massa e peixe intercalando com frango. 

Pelas tardes adquiri o hábito de frequentar cafeterias, costume muito arraigado aqui, onde as pessoas estão desde o café-da-manhã—nas milhares que existem em todos os lugares—antes de irem para o trabalho. Esses locais têm por tradição oferecer um petisco grátis—um pincho—tanto se pedes um café ou uma bebida. Os pinchos podem ser desde frutos secos, batata chips, pequenos churros, um pedaço de bolo, uma bolachinha industrializada ou até um doce cheio de creme. Um verdadeiro perigo para o sobrepeso.

Às vezes éramos convidados para jantar em casa de amigos espanhóis e ali as curiosidades eram muitas. Os pratos podiam ser churrasco de solomillo—picanha— ou chuletón, ambos feitos com pouco sal e malpassados para meu paladar. Uma noite havia arroz com bogavante—um tipo de lagosta—e me custou comer aquele bicho que antes tinha visto mover-se na panela. Nunca faltava a tortilla de patata—o prato genuinamente espanhol— ou as batatas fritas com pimentão, pão, cerveja ou vinho. No final, para fazer a digestão, uns vermutes, café com leite ou chá de camomila—manzanilla.

O Contraponto

Galícia tem uma área territorial semelhante ao Estado de Alagoas— segundo menor Estado brasileiro— com menos de 30 mil km². Possui um deslumbrante relevo costeiro e uma paisagem verde, fértil e abundante no interior, faz bastante frio e chove muito no inverno. As cidades possuem uma coleção de parques, praias e pistas de caminhada que favorecem e estimulam o exercício físico e a higiene mental pelo contato com um dos cenários mais bonitos do mundo.

Tínhamos por hábito sair todas as tardes para conhecer lugares diferentes, explorar um lugar turístico, um castelo medieval, uma festa de pueblo, uma praia de mar aberto, um porto marítimo, um sendero pouco conhecido, um mirante e os centros históricos sempre cheios de gente como os de PontevedraVigo, Santiago de Compostela ou A Coruña  lindas cidades que dariam um capítulo à parte desta narrativa. 

As belezas naturais, o modelo de mobilidade urbana, a segurança pública, a infraestrutura educacional, de saúde e serviços, a estabilidade social e econômica, a valorização dos espaços públicos e de ócio que se desfruta nesse lugar são exemplos de qualidade de vida. Sou privilegiada por estar aqui e, não renegando meu país e minha cultura, a Galícia—definitivamente—é um lugar onde gostaria de ter nascido e crescido.












Comentários

  1. Linda tua narrativa sobre a Galicia: sua cultura, costumes, gastronomia...Posso imaginar quão surpreendente e encantador é esse pedaço de chão espanhol! E quanto te faz bem!

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