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Vexames recreativos

O Brasil é um lugar inigualável para bizarrices na política, embora na vida em sociedade também não lhe escape fatos anômalos, que em outros países seriam tratados com muito mais seriedade.

O fato de políticos serem flagrados pela polícia escondendo dinheiro debaixo das roupas ou em malas dentro de apartamentos vazios não é novidade. Os criminosos de gravata conseguem façanhas insuperáveis em montante e criatividade se comparados com ladrões comuns que são rapidamente encarcerados em flagrante delito e assim mantidos povoando as prisões.

Um faminto roubando comida num supermercado, um usuário de drogas assaltando pedestres, ladrões de bancos ou veículos parece que provocam mais revolta na opinião pública do que os atos criminosos dos senhores de Brasília ou de quaisquer outros cargos eletivos, protegidos, para o bem da democracia—mas valendo-se da malversação— pela imunidade que lhes confere o artigo 53 da Constituição Federal.

Além da imunidade esses distintos senhores que, entre outras qualidades se intitulam patriotas e cristãos—mesmo portando dinheiro público em espécie e de finalidade questionável— aproveitam-se do espírito jocoso, bem-humorado, abstraído da realidade e da memória curta dos brasileiros calejados de tanta impostura e assaltos aos cofres públicos.

Assim, por breve tempo, o senador com dinheiro nas partes íntimas é alvo de piadas, memes, vídeos, mensagens instantâneas que infestam as redes sociais e os veículos de comunicação de divertimento e perda de tempo, sem que haja uma linha de desprezo e repúdio por parte de seus pares ou da instituição da qual faz parte. Sequer há um pedido de afastamento e de aclaração do assunto por parte do próprio senador perante, ao menos, aos eleitores de seu Estado. 

A bem da verdade é bem difícil explicar tanto dinheiro em espécie fazendo volume entre as nádegas do distinto senhor. Fosse uma mulher teria a opção do sutiã, local mais digno onde pequenas notas podem ser camufladas. Mas não era uma mulher, tampouco eram poucos reais. Num país sério, honradez e retidão de caráter seria o mínimo exigido de um homem público e é intolerável para os racionais tamanha falta de decoro e descaramento. No entanto, o sistema político brasileiro banaliza os fatos, abraça o corporativismo, não age com presteza e rigor e persiste dando margem para que o povo associe sempre política com vigarice.

Vivemos num país escaldado pelas rudezas, pela sordidez e o cinismo de homens públicos, escolhidos pelo povo, muitas vezes de maneira desvirtuada e irresponsável, segundo interesses de uma minoria e fora do interesse coletivo. O dito senador talvez seja afastado num processo moroso e dissimulado, mas seguramente voltará ao parlamento ou será convidado para exercer outro cargo público. Precisamos aprender a votar? Sim, é preciso aprender, mas antes de tudo, há lições mais importantes a serem aprendidas pelos parlamentares e instituições. Eles devem respeito às leis, aos eleitores, ao patrimônio público que deve continuar público e à população que tem o direito de não ser eternamente expoliada e enganada. Parece simples e elementar, mas essa é a utopia brasileira.

“Não podemos enxergar essas ações como aceitáveis. Precisamos continuar no esforço de desnaturalização das coisas erradas no Brasil.” (Ministro Luis Roberto Barroso - STF)




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