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De hora em hora só o Brasil piora



De hora em hora, Deus melhora era uma expressão que ouvia muito de minha mãe que certamente aprendeu com sua mãe e avós. Eu não tenho o costume de evocar o nome de Deus, mesmo acreditando na onisciência e onipresença de um ser  elevado e acima da compreensão humana. Pouco me atrevo a molestar essa entidade que, na maioria da vezes, não tem nada que ver com os desatinos provocados pela humanidade. Contudo, a expressão, reconheço, tem um poder consolador.

Hoje não há esforço suficiente para que esta expressão ouvida na infância faça algum sentido. Com os rumos que as coisas tomaram no Brasil durante a pandemia de coronavírus só consigo parafraseá-la : De hora em hora, tudo piora. Agora tenho a certeza que o buraco que o Brasil está metido, realmente não tem fundo e cada dia algo ou alguém trata de cavar mais um pouco.

Introduzo aqui a expressão para referir-me ao manifesto dos médicos de Santa Maria em favor do malfadado tratamento precoce para Covid-19.  De pronto, me chama atenção o nome de uma sumidade em infectologia da cidade, que quase não acreditei que estaria entre os signatários. E lá está, junto a outras dezenas de profissionais cujos nomes estão associados à credibilidade, à competência e que, certamente já salvaram muitas vidas. O dito manifesto não cita um único estudo reconhecido mundialmente. O texto é vazio nesse sentido, fala de estudos científicos atualizados, trabalhos e guidelines. Quais? De onde? Quais instituições? Quem estudou? Onde está tendo sucesso? 

Segundo o Art. 32 do Código de Ética Médica, é considerada infração grave: "deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção de saúde e de prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.

Em nenhum lugar do mundo se falou em tratamento precoce durante a pandemia, portanto não existe estudo sério que referende essa prática.  Não tenho notícia que algum país tenha adotado os medicamentos citados no manifesto como preventivos e nunca ouvi a expressão tratamento precoce nas inúmeras exposições dos profissionais de saúde nas intervenções oficiais do Estado espanhol durante a pandemia. Tanta excelência científica tem o Brasil que é o único que faz o manejo correto? Não duvido da qualificação dos profissionais de saúde brasileiros, mas os que avalizam essa prática, fazem do Brasil o país mais errado no combate à pandemia. Primeiro, porque atingirá a marca dos países com mais mortos do mundo e segundo, porque a corporação optou por mesclar ciência com proselitismo político. 

Na Espanha, onde tenho passado a maior parte da pandemia, o país está lutando para que o vírus não se propague com as únicas alternativas factíveis: o distanciamento, o isolamento social, as restrições de movimentos, o uso de máscaras e as vacinas que estão chegando pouco a pouco. Nunca foram citados quais medicamentos estavam sendo usados nas intervenções clínicas nos pacientes com a doença em curso, a não ser o grupo dos corticóides. Usar medicamento off-label (sem indicação para covid-19) pode ser um direito do médico, porém a questão ética deve ser avaliada para que se mantenha o sigilo dos tratamentos e em comum acordo com os pacientes ou estarão praticando experiências para as quais não estão autorizados.

"E num momento que centenas de casos surgem em nossa cidade, não podemos ficar de braços cruzados e deixar de tratar esses pacientes!" Diz o manifesto.

Claro que devem ser tratados, mas com os protocolos e diretrizes clínicas referendados e para tratar os sintomas decorrentes da infecção. Ainda não existe um medicamento curativo para Covid-19. Há muitos estudos em andamento, porém inconclusivos. Mas o objeto do manifesto dá ideia que existe um grupo de medicamentos que fazem os pacientes acreditarem que estarão livre da contaminação e assim desobrigá-los da responsabilidade social de cumprir a prática coletiva do distanciamento.  Entende-se por precoce como ideia de anterioridade, de prevenir, de acautelar, de precaver. Quantas pessoas acorrerão certamente às farmácias para automedicar-se como já fazem, vendo os cartazes de "Temos Ivermectina" estampados nos estabelecimentos? Por conta dessa irresponsabilidade quantos vão continuar a minimizar a doença, a aglomerar-se e a proporcionar cada vez mais replicações do vírus originando novas mutações e mais letais?

Qual a necessidade desses médicos manifestarem publicamente suas decisões e manejos clínicos? Isso é irresponsabilidade, é desespero, é desserviço, é gerar gastos públicos desnecessários, é atirar para todos os lados, quando deveriam apoiar o distanciamento social, o uso de máscaras, o funcionamento somente de serviços essenciais, apoiar as autoridades locais na proibição de festas, reuniões, fechamento das praias e horários de reclusão. A serviço de quem está o manifesto? Eu entendo o desespero. Orientações desencontradas e falta de um plano nacional único e articulado com os governos estaduais para combater a pandemia, está levando o caos aos serviços de saúde e até aos serviços funerários. E há um dado interessante. Uma escolha errada feita no passado pelas entidades médicas brasileiras começa a cobrar fatura.

 É muito triste e vergonhoso constatar que o extremismo de direita está vencendo a ciência, que uma entidade de classe tão importante permite que a medicina se transforme em magia e seus profissionais em charlatães. Num país onde médicos ainda são tratados como deuses, os tratamentos e curas milagrosas chegam mais rápido que um trem-bala. A crença e o comércio de práticas médicas abandonadas ou rechaçadas em outros lugares são campo fértil num país de imaturos, inconsequentes e indisciplinados. E ainda, onde o individualismo está totalmente acima do coletivo, não me admira que já são 250 mil mortos caminhando para 300 mil. E quantos mais serão?

E Deus, a essas alturas, creio que só balança a cabeça, porque não tem nada a ver com isso.




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