Pular para o conteúdo principal

Victoria

 


Victoria tinha um sonho recorrente desde a infância. Sonhava que uma mulher desconhecida corria com ela nos braços no meio de uma mata escura. Depois ela se via ao pé da escada de um enorme avião e a mulher ainda com ela no colo, aos gritos, impedia que seu pai a retirasse dos braços dela. Não sabia se seu pai a salvava da mulher do sonho, pois a última imagem que tinha era sempre da mulher gritando, seu pai lhe estendendo os braços e ela lhe dando os bracinhos chorando.

 Cresceu assim com essa imagem de um pai-herói que, possivelmente a tinha salvo das garras de uma bruxa ou de uma ladra de crianças. Porém, a mulher não parecia uma bruxa, não era velha, nem feia e a tratava com carinho. Ela não tinha medo da mulher, somente dos seus gritos desesperados, enquanto seu pai tentava resgatá-la dos braços dela.

Por vezes, Victoria fantasiava que a mulher do sonho podia ser sua verdadeira mãe e que sua mãe Lúcia a que havia lhe roubado. Tinha um certo ciúme da mãe com seu pai, pois os dois viviam aos beijos e abraços. Ela amava aquele pai bonito e carinhoso que antes de ser seu pai era o marido da sua mãe. Quando ele chegava em casa do trabalho, sua mãe o recebia sempre com um beijo na boca, e até os cinco anos permitiam que ela imitasse a mãe. Depois, mais crescida, ela mesma não se permitiu mais.

Adorava quando saía só com o pai a passear e isso passou a acontecer mais, depois que sua irmã nasceu com uma diferença de pouco mais de dois anos. Ele era cuidadoso, gentil, nunca levantava a voz, comprava sorvete, limpava seu rosto e nariz, levava na praia e depois lhe dava banho para tirar toda a areia. Victoria só não gostava quando ele tentava ensinar-lhe a nadar. A água era sempre muito fria e tinha medo dos mergulhos, então ele desistiu. Sua irmã Clara, sim, tornou-se uma nadadora brilhante graças a ele.

Sua mãe era professora de línguas, era uma mulher inteligente, sorridente e carinhosa quando estava tranquila e despreocupada. Quando se lhe apresentavam problemas e temores, frequentemente mais temores que problemas, ela se punha um tanto colérica e desatinada. Tinha uma certa mania por limpeza e organização, estrita com horários e regras. Depois que teve duas crianças, nascidas muito perto uma da outra, mesmo com a ajuda das cunhadas e do marido, parece que cultivava uma ansiedade que se lhe aflorava a pele. Ela tinha temores infiltrados, temores de perdas, temores de ausências.

Depois dos doze anos, mais ou menos, Victoria nunca mais teve o mesmo sonho, acabou esquecendo e nunca contou a ninguém. Até que um dia, depois de completar dezoito, ela estava com a irmã na casa do avô olhando umas fotografias antigas e sua tia Carmela tentou esconder uma foto do casamento anterior do pai. Victoria percebeu a tentativa da tia e pediu para ver a foto. Ali estavam seu pai, lindo, num terno escuro e gravata prateada, uma noiva igualmente linda com vestido longo branco, suas tias Cristina e Carmela e seu avô, vestidos elegantemente, todos sorridentes em frente à Catedral de Santa Maria de Vigo.

A tia contou que era uma foto do primeiro casamento do pai delas, fato que seus próprios pais já haviam relatado há tempos. Victoria nesse mesmo instante relembrou o sonho da infância e contou à tia e à irmã. Aquela noiva parecia a mulher do sonho. Carmela foi ficando cada vez mais atordoada à medida que Victoria ia contando. Era impressionante como alguns aspectos do sonho e da vida real se encaixavam.

Victoria havia sido sequestrada pela ex-mulher de seu pai, quando tinha pouco mais de três anos e o pai junto com a polícia a tinham resgatado quando elas estavam prestes a embarcar num voo da Espanha para a Venezuela, tendo Victoria um passaporte falso em nome de Maria Laura Álvarez.

A mulher foi presa, julgada e condenada, mas por conta do diagnóstico de um transtorno psiquiátrico obteve liberdade condicional, porém suicidou-se antes de sair da prisão. Ela também amava o pai de Victoria. Sua mãe depois de saber da morte da mulher, nunca mais temeu perder ninguém.

Comentários

  1. Texto muito bom, interessante, dá vontade de continuar a ler!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É um fragmento de uma pequena novela. Quando for publicada, aviso. Me manda teu e-mail. Obrigada.

      Excluir

Postar um comentário

Sinta-se à vontade para comentar

Postagens mais visitadas deste blog

O Morro do Caracol

Foto: Rua Cabral, Barão de Ubá ao fundo e o Mato da Vitória à esquerda Arquivo Pessoal O povoamento de uma pequeníssima área do bairro Bela Vista em Porto Alegre, mais especificamente nas ruas Barão de Ubá que vai desde a rua Passo da Pátria até a Carlos Trein Filho e a rua Cabral, que começa na Ramiro Barcelos e termina na Barão de Ubá, está historicamente relacionado com a vinda de algumas famílias oriundas do município de Formigueiro, região central do Estado do Rio Grande do Sul.  O início dessa migração, provavelmente, ocorreu no final da década de 40, início dos anos 50, quando o bairro ainda não havia sido desmembrado de Petrópolis e aquele pequeno território era chamado popularmente Morro do Caracol. Talvez tenha sido alcunhado por esses mesmos migrantes ao depararem-se com aquele tipo de terreno. Quem vai saber! O conceito em Wikipedia de que o bairro Bela Vista é uma zona nobre da cidade, expressão usada para lugares onde vivem pessoas de alto poder aquisitivo, pode ser ...

O Caderno, escritos do amanhecer

Queria escrever no teu caderno. Naquele que resgatei, antes de ser largado no lixo. Fiz isso talvez, digo talvez, por uma súbita intuição de desfecho. Queria ler e juntar teus pensamentos com os meus, misturando as letras e os manuscritos. Queria poder juntar nossas inspirações, talvez criar um romance, um conto, uma narrativa breve que seja, mesmo que tenhamos estilos diferentes e tua criatividade vá muito além da linguagem e do meu amadorismo. Queria misturar nossos traços, rascunhos,  já quase ilegíveis, formados numa infância onde se fazia caligrafia— isso já faz tanto tempo!—até produzir um texto ao menos coerente e coeso como mandam as leis da escrita. Ou não, pois ainda busco a licença poética dos artistas, que têm liberdade com as palavras, ao contrário das palavras ditas que podem ser a nossa desgraça. Eu precisava do caderno, não para descobrir teus segredos, mas para ter o privilégio de escrever de meu punho, junto ao teu, naquelas folhas amarradas em espiral com uma cap...

2025

  Foto: Pinterest Essa noite eu tive um sonho. 2025 tinha desistido de sua estreia e era 2008 de novo. Não entendi o porquê de voltar 17 anos atrás. Terá sido 2008 um ano cabalístico, com um significado oculto? Ou só um número aleatório? Foi bom ver algumas pessoas conhecidas bem mais jovens, saudáveis, outras vivas e alegres. Eu não me vi, pois protagonizava aquele delírio noturno, mas sentia que os 17 anos tinham passado em meu espírito, alojados à força, a despeito da rebeldia do 2025. A humanidade se curva ao tempo, mas no meu sonho pela primeira vez o tempo se curvou à humanidade. Posso até imaginar, o clichê Bebê 2025 espiando o Senhor 2024 antes da meia-noite e vacilando se nascia ou não. Bem, anos não nascem como bebês, são imateriais, mas este talvez tivesse certa racionalidade humana(?), certo sentido de prudência, sensatez e clarividência. É isso, clarividência. A despeito dos melhores augúrios para 2025, ele próprio não estava convencido. Os anos anteriores, principalme...