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Escritos do amanhecer

Combarro, Galícia Foto: Arquivo pessoal

Fazia mais ou menos três meses que eu não tinha o prazer de dormir sete horas seguidas. Foi desde que J. voltou do hospital, não para convalescer, mas pela simples e dura razão que o setor de Oncologia informou que não poderia fazer mais nada por ele. Estive ocupada esse tempo atendendo suas demandas, tentando confortar e aliviar suas dores e uma multiplicidade de sintomas que um paciente com câncer pode acumular.

A minha dor física começou justamente aí, quando os médicos oncologistas o abandonaram depois de três anos de tratamento e minha dor psicológica já estava há muito instalada. Comecei, então a me encher de cansaços, de ansiedade, de dores por todo corpo. Tinha dificuldade até para levantar da cama de manhã, os músculos pareciam enrijecidos, doía para me vestir, para esticar as pernas e até para pentear os cabelos. Fui atrás de ajuda médica, porque os dias estavam tornando-se insuportáveis e empilhando mais um doente dentro de casa. Com dois eu não podia.

Minhas dores, as quais eu atribuía de origem emocional, se converteram num diagnóstico comprovado por testes de laboratório chamado de polimialgia reumática.  O médico prescreveu um tratamento com prednisona durante três meses e disse: Tranquilavás a te poner bien. Ele tinha razão, eu já estava bastante aliviada em cinco dias de tratamento. 

Agora, precisamente há dois dias, J. voltou para o hospital. Está na Unidade de Cuidados Paliativos e eu prestes a tomar um voo de volta para o Brasil. Tinha passagem comprada desde julho, mês que costumava começar a me organizar para passar o final de ano no Brasil. Mas naquele ano, as coisas estavam tomando um rumo diverso. Ele não iria comigo e eu não queria estar presente quando ele partisse. Era sabido que isso podia acontecer a qualquer momento. Pensei que uma despedida ali nos Cuidados Paliativos seria menos dolorosa. O ambiente hospitalar, embora pesado e propício a emoções mais fortes, sempre podemos dar um jeito de dissimular e fazer do momento como se fosse algo trivial. E ele, seguramente, estará entorpecido e letárgico, já não mais aflito com a sua e a nossa tragédia pessoal, mas ansiando somente que não tenha dores e possa estar tranquilo.

Agora sozinha em casa e tendo só a mim para cuidar, nesta manhã de domingo me sinto quase feliz. Ontem adormeci muito rápido com a ajuda de um fitoterápico, de um comprimidinho tarja preta, lendo um romance bobo de Danielle Steel e com o barulho de uma chuva forte que caía. Dormi horas seguidas e repus boa dose de energia. Ao me levantar, precisei logo de um café, porque depois de tomar a prednisona fica um gosto forte na garganta. 

As malas estão prontas e há um checklist curto ao lado do computador: comparecer amanhã ao laboratório para o teste PCR exigido pela companhia aérea, preencher um formulário de saúde para o governo brasileiro e fazer uma recarga em meu celular do Brasil. Liguei a televisão da sala e levei o controle até um canal de rádio como sempre fazia quando J. estava saudável, trabalhando e só chegava às três da tarde. Na Melodia FM tocava Phil Collins, seu Easy Lover como num dia tranquilo, porém disfarçado de cotidiano. Tentei abstrair, porque definitivamente os tempos não estão normais. 

Assim como é provável que J. não volte mais para casa, eu não sei se volto a esse lugar e a esse país que me concedeu uma outra nacionalidade. Aqui nesse apartamento tive a sorte de viver tendo uma das vistas mais lindas do litoral da Galícia, acordando todas as manhãs com o barulho de barcos e de gaivotas. Aqui vivi durante mais de cinco anos plenos de felicidade, amor e crescimento pessoal. Porém, ficarão sentimentos contraditórios, de dor e alegria, incredulidade e aceitação, inquietação e paz.

De agora em diante, uma pergunta seguirá comigo para sempre ou até que eu seja digna de uma resposta. Por quê?

                                                                                             17 de outubro de 2021

 


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