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11 de novembro de 2021

 


Era 11 de outubro, J. me escreveu em seu último caderno em letras grandes na sua costumeira mistura de português, galego e espanhol quando se dirigia a mim:

—Hoje estou fazendo 63 anos e 11 meses. 

Li, concordei com a cabeça, pensando comigo se ele contava como uma conquista ou já fazia uma contagem regressiva. Nunca vou saber, não me cabia perguntar. As duas opções já me pareciam absolutamente sem sentido.

Hoje é 11 de novembro e já se vão vinte dias de sua partida, quando completaria 64 anos, mas  mantinha a cabeça de um jovem audaz, aventureiro, inteligente, curioso e louco pela vida se essa impiedosa enfermidade não o tivesse pego de jeito e colocado nossas vidas no meio de um turbilhão.

Por mais que eu tente, não sou capaz de conceber o que passa na cabeça de uma pessoa que conviveu com tanto sofrimento físico vendo a transformação de seu corpo vigoroso e saudável em uma frágil vida. Aceitação, renúncia, entrega, rendição? Afinal a dor e os padecimentos têm poder, fazem o corpo desmoronar e a mente implora por piedade, clemência, capitulação.

Muito se lê que o câncer há que ser combatido com ânimo e pensamento positivo, que é uma luta que enobrece o doente. Exigir isso de quem passa por duros tratamentos me parece desumano, porque por mais que se tenha esperanças na cura, às vezes é uma luta inglória e a pessoa não é capaz de reagir. Romantizar a dor e o sofrimento alheios é demasiado cruel. 

E J. entregou-se a seu destino, quando nos acenamos naquela noite em despedida. Por mais complexos e misteriosos que sejam os enredos de vida e morte, ambos sabíamos que seria a última vez que nos veríamos e nos tocaríamos.

No entanto, ele segue e seguirá vivo em meu coração, no coração de suas filhas, de sua família e de seus inúmeros amigos. Sua inigualável fé na justiça social e na educação como molas propulsoras para o desenvolvimento humano era uma de suas maiores virtudes. Sua competência e inteligência reconhecidas por seus pares em seus longos anos de trabalho, sua ideologia progressista, defensora dos direitos humanos e da natureza, sua aversão a toda forma de discriminação de raça, gêneros, crenças e violência também serão lembradas como seus maiores valores por todos os que o conheceram. 

Ele tinha tanto orgulho e convicção de seus posicionamentos, que às vezes vibrava com vaidade e confiava pouco em quem tivesse posições contrárias ao que ele qualificava como antidemocráticos. Apesar disso, respeitava a todos. Ele tinha em mente sua utopia, um mundo hipotético bem formatado que, infelizmente está longe de ser alcançado nesse nosso mundo dominado pelo poder do dinheiro, que abre fossos de iniquidades por cada vez mais falsos, ilusórios e distorcidos ideais de democracia. Isso tudo combinado com um coração extremamente generoso, amoroso e obsequioso.

Hoje, no dia de seu aniversário, desejo imensamente e do meu mais profundo querer que ele finalmente tenha se livrado de seu pobre corpo doente e seu espírito esteja livre, leve, cheio de luz e energia, descansando ou viajando por lindos lugares, mares, montanhas, rios, cidades ou trilhas para outro dia voltar e começarmos tudo de novo, se assim o quiser.

—Onde quer que estejas, feliz aniversário, J. sinta todo amor que deixaste aqui comigo. Há uma intensidade tua que quase não cabe em mim e ainda dói muito tua falta, mas pouco a pouco prometo serenar. Confio que teu espírito e nossas melhores memórias hão de me ajudar a superar tanta tristeza.

E, finalmente que os todos os deuses, anjos, teus ancestrais e espíritos de luz te protejam e te abençoem para sempre!

                                              💓💓💓💓

Brasil, 11 de noviembre de 2021.

En 11 de octubre, J. me escribió en su último cuaderno con letras grandes en su usual mezcla de portugués, gallego y español cuando se dirigía a mi:

—Hoy cumplo 63 años y 11 meses. 

Yo leí, asentí con un movimiento de cabeza, pensando para mi si él hacía esta cuenta como tiempo conquistado de vida o empezaba una cuenta atrás. Nunca lo voy a saber, no procedía preguntar. Las dos opciones ya me parecían absolutamente sin sentido.

Hoy es 11 de noviembre y ya hace veinte días de su partida, cuando cumpliría 64 años, pero mantenía la cabeza de un joven audaz, curioso, inteligente, aventurero y con muchísimas ganas de vivir si esta imperiosa enfermedad no lo hubiese golpeado y puesto nuestras vidas patas arriba.

Por más que yo intente no soy capaz de comprender lo que pasa en la mente de una persona que vivió tanto sufrimiento físico respecto de su cuerpo vigoroso y saludable, transformándose en una frágil vida. ¿Aceptación, renuncia, entrega, rendición? Al final el dolor y los padecimientos tienen poder, hacen al cuerpo derrumbarse y la mente implora piedad y clemencia. 

Decir que el cáncer tiene que ser combatido también con ánimo y pensamiento positivo, que es una lucha que engrandece a los enfermos me parece inhumano, porque por más que sí, se tiene esperanza, la lucha a veces es sin gloria y el enfermo no puede hacer nada. No me gusta romantizar el dolor ajeno, es cruel. Y J., al final se rindió a su destino, cuando nos abrazamos en aquella noche de despedida en su habitación de aquel hospital. Por más complejas y misteriosas que sean las tramas de la vida y de la muerte, los dos sabíamos que sería la última vez que nos mirábamos y nos tocábamos.

Sin embargo, él sigue y seguirá vivo en mi corazón, en los corazones de sus hijas, de su familia y de sus incontables amigos. Su obstinada fe en la justicia social y educación como premisa para el desarrollo de la humanidad era una de sus mayores virtudes. Más allá de su notable y reconocida inteligencia y capacidad ejercida en su trabajo a lo largo de la vida y sus sueños por un mundo ideal y armonioso. Su ideología progresista, siempre en la defensa de los derechos humanos y de la naturaleza, su repulsa a todas formas de discriminación de razas, géneros, creencias y una aversión a todas las formas de violencia también han de ser recordadas como sus más elevados valores por todos los que lo conocieron. Estaba tan orgulloso y convencido de sus ideas, que a veces se ponía muy vanidoso y poco confiaba en alguien que tuviese actitudes o ideas contrarias, aunque respetaba a todos. Él llevaba em su mente el deseo de un mundo hipotético, aún utópico, pero bien formateado que desafortunadamente está lejos de hacerse realidad en este mundo gobernado por la sed por dinero y poder y por cada vez más falsos demócratas. Todo eso unido a uno corazón extremadamente generoso, agradecido y cariñoso.

Hoy, en el día de su cumpleañosdeseo inmensamente y desde mi más profundo querer que él finalmente esté libre de su pobre cuerpo enfermo y su espíritu pueda volar libre, ligero, lleno de luz y energía, descansando o viajando por hermosos lugares, mares, montañas, ríos, ciudades o senderos para otro día volver y empezaremos todo de nuevo, si así lo deseara.

—Donde estés, mi amor que seas feliz, feliz cumple, J. Siente todo el amor que dejaste aquí conmigo. Hay toda una intensidad tuya que casi no cabe en mí y aún duele mucho, pero poco a poco prometo ponerme más tranquila. Confío que nuestras mejores memorias y tu espíritu puedan ayudarme a superar tanta tristeza.

Y, ¡finalmente que todos los dioses, ángeles, tus ancestros, elevados espíritus de luz te protejan y te bendigan para siempre!

 






Comentários

  1. Me emociono com tuas palavras, Eliane, assim... cheias de sentimentos de afeto, fidelidade, de lembranças, de verdades... E J. mesmo sem conhecê-lo, fez-se próximo através do teu olhar - um ser encantador, humanizado, de uma luz que não ofusca...
    Tamanha expressividade é a tua, nesse momento, amiga, embora - talvez insignificante, frente a tua dor... nossas fragilidades oscilam, ora se agigantam, ora se apequenam porque a vida não nos permite ensaios...estamos todos aqui, agora, diante do previsível, bem como, do desconhecido - numa corda bamba, construindo nossa história.



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