Foto: Arquivo Pessoal |
Ele despertou devagar, sentindo-se um pouco atordoado, sem noção de hora, nem dia, nem lugar. Parecia que havia dormido uma medida de tempo totalmente indefinida. Abriu os olhos aos poucos e a visão foi aclarando. Havia luz natural de um dia de sol, que chegava de uma janela com uma fina cortina branca e transparente que tremulava por conta de suave brisa que vinha de fora.
Estava
deitado numa cama estreita e macia e os lençóis brancos cheiravam algo
semelhante a alfazema. Olhou para si mesmo e viu seu corpo, mãos, tronco,
braços, pernas, sua musculatura era de jovem, forte como quando tinha trinta,
quarenta e até aos cinquenta anos. Sem demora, passou a mão pelo rosto e sentiu
a pele sadia, totalmente hígida e íntegra, com um pouco de barba crescida. Nem
rastro daquela ferida enorme que tinha na mandíbula e nenhum desconforto
físico. Se sentia inteiro, só ligeiramente aturdido e muito confuso.
Tentou
levantar-se, mas sentiu uma leve tontura, deitou-se de novo e resolveu que
seria melhor sentar-se primeiro, depois tentar descobrir onde estava e se havia
alguém ali. Será que o haviam transladado para outro hospital sem que se dera
conta? —pensou. Porém, estava tudo muito silencioso, não escutava nada daquela
azáfama a que tanto estava acostumado naqueles últimos tempos. Apurou a visão e
atentou para os detalhes do quarto. Tinha as paredes de pedra, soalho de tábuas
escuras, uma única janela pequena em madeira, aberta para fora, sem vidros. O
pouco mobiliário que havia era antigo como os da casa de sua avó ou de tempos
mais remotos ainda. Numa parede havia somente um pequeno quadro expondo uma
singela pintura de um barco navegando. Não, decididamente não estava em um
hospital.
A
temperatura era agradável, quase quente e vestia somente uma calça marrom
parecida com as que seu pai usava, amarrada na cintura. Ele se levantou da cama
devagar, de pés descalços e foi até a janela. Dali viu que estava no segundo
pavimento de uma casa e teve uma visão bonita de uma larga faixa de areia muito
branca e o mar a sua frente. Não
reconheceu o lugar. Dali de cima viu um muro baixo de pedras circundando a
casa, um pequeno portão de madeira, um quintal com jardim e uma árvore alta,
quase batendo o telhado.
Foi
nesse momento que avistou uma senhora que aparava umas roseiras no jardim e
percebeu que ela parecia uma pessoa muito familiar. Para seu espanto, ela levantou
a cabeça, viu-o na janela e lhe acenou de maneira muito natural como se lhe
conhecesse de há muito e estivesse ali também fazia tempo. Ele acenou de volta devagar,
meio encabulado e espantadiço.
Permaneceu
na janela sem entender absolutamente nada, se perguntando quem era aquela
mulher. Ao menos ela lhe parecia gentil. Seria uma enfermeira contratada por
sua família e estava numa casa de repouso? Mas não se sentia doente, tampouco envelhecido.
Bem, talvez estivesse ainda mais doente do que tinha estado por tanto tempo,
mas se sentia bem fisicamente. Muito bem.
Procurou
um espelho e havia um pequeno junto à cômoda antiga com marcas do tempo, com os
contornos um pouco oxidados. Viu sua imagem e levou um susto. Era ele, mas
estava com uma aparência bem mais jovem, talvez a mesma de seus quarenta e
poucos anos, um pouco mais magro, cabelo farto, naquela cor entre o ruivo e o
castanho e os olhos azuis mais brilhantes. Ele lembrou que pouco depois dos
cinquenta anos já tinha o cabelo quase todo grisalho e acostumara-se com suas
feições e o corpo de um senhor de idade, por isso o espanto. Afinal, já podia
ser avô, mas esse assunto sequer havia sido cogitado por suas filhas.
Voltou
a analisar mais detidamente seu rosto no espelho e apenas tinha aspecto um
pouco abatido, talvez pela sensação que tinha dormido durante muito tempo. No
entanto, pensou que tudo não passava de um sonho. Deveras real, mas seguramente
era um sonho, delírio ou alucinação provocados pelas grandes doses de psicotrópicos
e analgésicos que vinha usando durante sua longa enfermidade.
Voltou
à janela e antes que ele pudesse indagar algo, a senhora falou lá de baixo:
—Me
espera, eu já subo aí.
Ele
assentiu com a cabeça, pensou que devia obedecer a aquela ordem, pois até a voz
da senhora lhe soava muito familiar. Passados uns minutos ela entrou no quarto.
Era uma mulher perto dos cinquenta anos, cabelos pretos presos com um lenço
floreado na cabeça, olhos grandes e verdes, vestia roupas de uma moda antiga e
um pouco gastas, era bonita e chegou sorrindo.
—Bom
dia, que bom que estás desperto...Vamos, beba tudo que vai te fazer bem! — disse
a senhora chegando no quarto com uma xícara saindo um líquido fumegante.
—Olá,
senhora, por favor, me diga onde estou e que estou fazendo aqui? Que lugar é
esse? Que dia é hoje? —ele perguntou em seguida, atropelando todas as
perguntas.
—Tranquilo,
logo já vais entender...não te preocupa.
—Foi minha mulher e minhas filhas que me puseram aqui
para que fosse cuidado? Afinal dei tanto trabalho que até entendo que se
cansaram.
—Não,
ninguém te trouxe aqui...Vieste sozinho e meu marido e eu te acolhemos.
—Não
entendo como pude vir sozinho para cá...Há tempos dependo de que me levem para
todo lado...Não reconheço a senhora, nem esse lugar, não tenho ideia de como
cheguei aqui! Minha família sabe que estou aqui? Virão me ver? Já me sinto tão bem!
—Calma,
homem! Uma pergunta de cada vez!
—Ok, primeira pergunta...Quem é a senhora e seu marido?
—Quando conseguires me ver com o coração, vais lembrar quem sou ou
quem fui. Meu marido saiu ao mar bem cedo, como todos os dias. Volta logo.
—Por que a senhora não pode me responder objetivamente? Tenho uma
vaga ideia que lhe conheço de algum lugar, mas não sei de onde.
—Não
precisa ter pressa!... Tu estás sem memória e necessitarás tempo para recordar
coisas.
—Não
me diga! Além do câncer, estou com amnésia?? Que desastre essa minha vida, que
azarento. — disse, exasperado.
—Não,
a falta de memória é normal e temporária depois do que te aconteceu...Agora,
termina de beber e te aquieta. Necessitas descansar! Tudo a seu tempo.
Ele
obedeceu e bebeu todo o líquido da xícara que lhe pareceu uma mistura de ervas
e um cheiro forte indescritível.
—Muito bem! —disse a senhora depois que ele lhe
entregou a xícara vazia de volta. Quando queiras, podes descer, dar um passeio
pela praia. Refletir te fará bem, te ajudará a recordar...Agora te deixo, tenho
coisas que fazer...Ah...Abaixo tem livros se quiseres ler um pouco.
—Obrigada, mas até quando tenho que ficar aqui? O que realmente
aconteceu comigo? Quando poderei ir para minha casa? Onde está meu telefone?
Preciso falar com minha mulher—continuou sua série de dúvidas.
—Por Deus, homem! Primero, aqui também é tua casa, então podes ficar
o tempo que quiseres e segundo, aqui não temos telefone e tu chegaste sem nenhum
objeto pessoal...E quanto a tua família, estão todos bem. Quando chegar o
momento, poderás comunicar-te com quem queiras. Mas antes, tens que aprender algumas
coisas.
—Por Deus, assim a senhora não me aclara nada! —disse levantando da
cama e fazendo menção de sair. Bem, se não estou preso aqui, vou sair...Preciso
saber onde estou.
—Procura
as respostas dentro de ti...Tem roupa e calçados no armário. Coloca uma
camiseta, o sol está queimando.
A
maneira maternal que a mulher lhe falava remeteu-lhe à infância, mas com pressa
de sair e fazer o reconhecimento do lugar, esqueceu logo aquela sensação. Quando
deu por si, ao procurar a roupa para sair, ela já havia sumido em silêncio. Vestiu
uma camiseta branca que lembrava as que usava quando esteve no exército aos
dezoito anos e os chinelos eram de couro, pareciam feitos à mão. Ele desceu à
parte de baixo da casa por uma escada íngreme, cujos degraus de pedra marcavam
sua antiguidade e desgaste por pequenas concavidades do subir e descer de
milhares de passos anteriores aos seus.
Aquela
característica da casa o fez pensar que estava em uma construção de séculos
passados, nada incomum em seu país que era um grande museu a céu aberto. Pensou
também que poderia estar hospedado numa casa rural. Este tipo de acomodação
estava muito em moda nos últimos anos, era um tipo de negócio que tinha
crescido bastante. Só estranhou que mantinham o mobiliário antigo, não via
instalações elétricas e as hidráulicas estavam muito defasadas.
Na
parte de baixo comprovou que havia uma sala grande e uma estante cheia de
livros. Com uma passada de olhos pelas lombadas viu que ali estavam todos os
seus filósofos favoritos e muitas obras de autores importantes da literatura
mundial. De relance, olhou para dentro de uma grande cozinha igualmente antiga,
fogão de pedra, madeira estocada para queimar, armários, mesa e cadeiras de
madeira de lei e muitos utensílios domésticos. Só lhe pareceu que ali já não se
cozinhava nada havia muito tempo.
Saiu
à rua pelo portão da entrada e não havia nenhuma outra casa próxima, só a grande
extensão de praia a sua frente e um caminho arborizado protegendo a casa do sol
pleno daquela hora. Caminhou em direção ao mar, teve vontade de nadar, enquanto
pensava que precisava falar urgente com sua mulher, tentar passar uma mensagem.
Haveria de encontrar um telefone público ou um lugar com internet. Ela deveria
estar aflita e ele não tinha ideia desde quando não se viam e precisava dizer o
quanto estava se sentindo bem e que parecia totalmente curado, ainda que isso
parecesse um prodígio inacreditável. Algum milagre teria acontecido enquanto ele
esteve dormindo? Quanto tempo havia passado desde que chegara naquela casa por
seus próprios pés, segundo a senhora lhe havia dito? Não se lembrava de
absolutamente nada.
Um
longo mergulho no mar deixou-lhe ainda mais revitalizado. A água estava morna,
como as águas do Mediterrâneo ou do Atlântico Sul nas costas brasileiras onde
já havia estado algumas vezes. Como a praia estava deserta deu-se ao luxo de
entrar completamente nu para não molhar suas novas roupas.
Depois
do banho de mar, vestiu-se e tratou de buscar um lugar com telefone ou computador
para comunicar-se. Olhou em volta, mas só via a casa à beira-mar de onde tinha
saído, a pequena vegetação em volta dela e uma imensidão branca e azul de areia,
céu e mar. Nada mais. Pensou consigo:
—Que
deserto é esse, quem é aquela mulher, que mistério é esse em torno de minha
vinda para cá? — Por mais que tentava, sua mente era uma escuridão. A última
coisa que lembrava nitidamente era de uma médica, muito gentil que cuidava dele,
colocando uma máscara de oxigênio em sua boca e nariz. Lembrou da sensação de respirar
com dificuldade e parecia que o ar já não lhe chegava aos pulmões. Ao mesmo
tempo, recordou de uma indescritível sensação de paz posterior aos momentos em
que respirava mal.
Quando
resolveu voltar à casa viu uma pequena embarcação aproximando-se da praia. O
pescador acenou e ele ajudou a trazer o barco à praia, enquanto perguntava:
—O
senhor é o marido daquela senhora da casa em frente?
—Sim, me chamo Fernando. E tu como estás? Me parece melhor hoje,
depois de tanto dormir, vejo que acordou bem-disposto. Vi quando nadava.
O
homem regulava com a idade da mulher, tinha a aparência típica de um pescador
artesanal, usava vestimentas simples, um chapéu de palha, tinha olhos azuis, cabelos
alourados e pele queimada de sol. A fala era pausada e parecia de índole
sossegada e amigável.
—Sim,
realmente me sinto bem e preciso saber muitas coisas. Sua esposa não me
explicou nada como vim parar aqui. Aliás, nem o nome dela ela me disse...
—Se chama Cayetana...É um pouco distraída com esses detalhes, me
desculpe, estamos aqui para ajudá-lo, mas tens que entender que deve ser pouco
a pouco.
—O
senhor também com enigmas!! Ao menos pode me dizer onde há um telefone mais
perto ou um lugar conectado à internet?
—Não
temos telefones por aqui e não sei o que significa internet...É alguma palavra
inglesa? Me desculpa, mas só falo espanhol.
—Tudo
bem, não importa! Me diga então há quanto tempo fica o povoado mais perto a pé
ou de barco. Me emprestaria o seu, se acaso precise?
—O
povoado mais próximo fica a um piscar de olhos daqui, mas primeiro tens que
exercitar tua mente para poder estar ali.
—Fale
mais claro, por favor! — já começava a irritar-se com tanto mistério, falta de
informação e conversas cifradas.
—Venha, vamos para dentro. Cayetana está esperando que eu lhe
traga a pesca de hoje para o almoço e deve ter uma merenda preparada. Aproveita
tua energia e bem-estar, podemos conversar um pouco e te relaxas. Não precisa
ter pressa para nada.
—Senhor
Fernando, entenda que estou preocupado que minha família não sabe nada de mim.
Preciso falar urgente com minha mulher! Ela precisa saber que estou aqui!
—Meu amigo, não há que preocupar-se por sua família. Estão todos
bem.
—D.
Cayetana também me disso isso...E como vocês sabem?
—Aqui
sabemos de tudo...De bem e de mal. Confie em mim. Sua mulher e filhas estão, por
ora, tristes, abatidas, consternadas com lembranças suas a todo momento, mas
estão apoiando-se, têm as outras pessoas da família, têm os amigos, estão bem. Com
o tempo vão superar que estão afastadas de você.
—Como
o senhor sabe que tenho filhas? E como assim, superar?? Não quero continuar
afastado delas...Quero ir para casa...
—Julián,
é assim que você se chama, não? Vamos entrar, podemos beber algo e conversar
com tranquilidade. Olha, está Cayetana no jardim...
—Sim,
desculpe...Também não me apresentei. Mas parece que nem precisava. Vocês sabem
tudo sobre mim. E por quê? Como? —seguia perguntando, enquanto chegavam à casa
e eram recebidos por Cayetana.
Foram
em direção à cozinha e surpreendentemente, apareceu ali uma mesa cheia de verduras,
frutas e legumes que não havia antes e o fogão de lenha ardia em brasas que não
esquentava o ambiente daquele dia quente. Fernando entregou à esposa várias
sardinhas que tinha pescado e eles convidaram o hóspede para tomar um refresco
num alpendre atrás da casa.
—Como foi o banho de mar? Te vejo com mais energia, meu
filho...—disse Cayetana.
—Bem,
creio que a senhora não tem idade para ser minha mãe, podes me chamar pelo
nome...Sou Julián, dona Cayetana...Bem, creio que também posso chamar a senhora
de Cayetana, não?
—Aqui
o tempo, as idades, as aparências e essas formalidades não contam muito.
Escolhemos uma aparência que nos recordamos e que gostamos mais e a adotamos.
—Aqui!
Onde é aqui? —Por favor, já está na hora que vocês me expliquem de uma
vez por todas que lugar é esse...
—Diga-me
primeiro qual é tua última recordação antes de acordar hoje pela manhã? —perguntou-lhe
Cayetana.
—Pois,
estava no hospital e a médica que me cuidava colocou-me uma máscara de oxigênio
para que eu respirasse melhor, lembro que estava com dificuldade.
—E
depois, te sentiste melhor? Digo, depois de te colocarem a máscara.
—Talvez
não logo, aspirei e expirei com certa dificuldade algumas vezes, mas depois
lembro de um instante de muito relaxamento que parecia que voava acima de meu
corpo— De súbito, Julián parou de falar, pensou e teve um olhar de espanto para
o casal a frente dele e fez um gesto de levar uma das mãos até o braço de
Cayetana e a outra até o braço de Fernando. No que fez isso, levantou-se
rapidamente apavorado, constatando:
—Vocês
não são reais!! Isso tudo é um sonho!! Quero sair daqui. —E saiu correndo em
direção à praia. Ali, ao menos tudo era palpável.
Acabava
de fazer uma assombrosa descoberta. Aquelas pessoas não eram reais, aquele
lugar não existia e ele definitivamente estava morto. Sim, aquilo só podia ser
a morte. Na verdade, não de todo ruim, pois sentia-se bem com seu corpo e tinha
um corpo. Apenas sentiu um vazio, uma solidão inexplicável e uma mistura de comiseração
e preocupação consigo mesmo, perguntando-se que seria dele. Que faria com a sua
morte, se fosse o caso? Para onde deveria ou poderia seguir? Era livre para
decidir? Ele era o mesmo de sempre. Recordava de toda sua vida, das pessoas, de
tudo que havia vivido, só estava um pouco confuso e as memórias mais recentes
haviam se apagado.
Andou,
andou muito pela beira da praia até deixar aquela casa bem longe de sua visão.
Não sentia fome, nem sede, nem calor, nem frio, nem sono. Estava alerta e cheio
de energia. Talvez pudesse andar a esmo grandes distâncias e assim mesmo não se
sentiria cansado. Haveria de encontrar outro lugar, uma cidade ou povoado onde
pudesse esclarecer em que mundo realmente tinha ido parar.
Pensou
na morte e constatou que era seu único caminho depois de tudo que passara desde
quando descobrira o câncer e todo o agravamento e sofrimentos passados no
último ano. Não havia forma de continuar vivo naquele estado aonde chegara seu
corpo. Ele sabia disso desde alguns meses, mas não podia desistir em nome das
pessoas que amava, principalmente de sua mulher. Eles tinham uma vida perfeita
até antes dele adoecer, eram muito apegados, tinham muitos planos de vida e continuavam
muito apaixonados desde o dia em que se conheceram.
Ela
sofreria mais ainda, como já sofria sua falta, pois a doença o levara a
internações periódicas e já estavam muito afastados intimamente por causa das
inúmeras limitações físicas que ele tinha adquirido no último ano. No entanto,
ela não perdia a esperança de vê-lo curado, embora ele percebesse, às vezes,
seu cansaço e desalento por uma recuperação que não vinha.
Envolto
nesses pensamentos, perdeu a noção de quanto havia andado. O mar estava ali, a
grande extensão de praia também e a casa de Cayetana e Fernando tinha
desaparecido do horizonte. Estacou, sentindo o sol na cabeça, tirou as sandálias
e refrescou os pés na água. Em alto-mar viu algumas embarcações, um barco cargueiro,
um pesqueiro e uma pequena lancha vindo em direção à praia. Pensou que podia
estar perto de um porto.
Fez
sinal para a lancha que se aproximou e de longe ele gritou a pergunta para o
único ocupante do veículo:
–Olá,
podes me deixar no próximo porto? Está perto daqui?
—É
claro, suba! — respondeu um rapaz jovem e queimado de sol.
—Obrigada!
— disse subindo com as roupas molhadas.
—Tem
roupas secas ali, podes trocar...—
—Obrigada,
mas quanto tempo temos até o porto? —
—Questão
de poucos minutos...Estás perdido? Teu barco naufragou?
—Totalmente
perdido, mas não cheguei de barco aqui, não... Podes me dizer que lugar é esse e
a que porto estamos indo?
—Ah,
estás sem memória, então...É normal.
—Ah,
por favor...Tu também com essa conversa de que tudo que acontece aqui é normal.
Eu estava na casa de Fernando e Cayetana, conheces?
—Não,
mas já ouvi falar deles. São muito boas pessoas. Estão aqui pela zona
auxiliando quem chega.
—Quem
chega de onde?
—Da
vida.
—E
aqui é o quê afinal, a morte?
—Aqui é somente um interposto entre tua vida anterior e o lugar para
onde desejares ir depois.
—Depois
de que?
—Depois
que entenderes tudo que te aconteceu.
—Ah,
sim? E quem vai me explicar tudo isso?
—As
pessoas que irás encontrando pelo caminho. Olha, chegamos...
Como
se uma bruma se desfizesse a sua frente, Julián percebeu que chegaram
rapidamente num porto pesqueiro de um pequeno povoado igual aos milhares que
conhecia no litoral de seu país. Ali podia ser qualquer ponto do Oceano
Atlântico Norte ou do Mar Mediterrâneo. Já estava começando a acostumar-se com o
pouco esclarecimento e as evasivas que as pessoas lhe dispensavam. Empreenderia,
então a busca por explicações à medida que fosse encontrando pessoas. Alguém
haveria de elucidar aquele enigma e o porquê tinha entrado naquela estranha
aventura. Agradeceu a carona do rapaz da lancha e adentrou ao povoado.
Já
entardecia e havia uma luz amarelo-laranja intensa cobrindo o cais do porto. O
mar estava calmo e soprava leve brisa. Havia muitos barcos de passeio e de pesca
atracados. Viu um grupo de mulheres sentadas no chão em círculo, costurando
redes, enquanto conversavam na frente do mercado de peixe, naquela hora quase
vazio. Dirigiu-se até o outro lado da rua à procura de uma cafeteria. Ali
poderia pedir um jornal do dia e afinal, saberia em que lugar estava e em que
data. Logo avistou um bar-café, mas subitamente lembrou que não carregava
dinheiro e isso quase o fez desistir de entrar. Nisso, uma voz detrás dele
chamou:
—Olá...Procuras
algum endereço? Ou alguém em especial? Vejo que estás um pouco indeciso de
entrar aí. Esse povoado é muito pequeno, talvez eu possa ajudar. —Perguntou
um senhor de idade, cabelos grisalhos, andando com uma bengala.
—Olá,
na verdade não procuro ninguém em especial. Só estou procurando um jornal do
lugar para saber onde estou e que dia é hoje. Tive amnésia recentemente. — E
teve vergonha de dizer que estava sem dinheiro.
—Vamos,
entre aí, tomamos um café.
—Não,
obrigado...Só quero mesmo ver o jornal. Depois já me vou. —disse quase fugindo
do senhor.
—Vamos,
homem...Te pago o café. Aqui somos muito hospitaleiros com os forasteiros. —
E foi carregando Julián para dentro da cafeteria. E se queres saber que
lugar é esse te digo logo. Estamos num lugar semelhante à Ria de Viveiro na
Galícia, num povoado chamado Celeiro. Já deves ter ouvido falar.
—Sim,
muito...Já naveguei por aqui algumas vezes, mas confesso não reconheci. Bem, é
que estou com esse problema para lembrar das coisas. E que dia é hoje? —perguntou
enquanto eles se sentavam numa mesa e Julián olhava em volta. Havia pouca gente
naquela hora.
—O tempo é relativo. Pode ser medido, sentido ou simplesmente ignorado.
Aqui quase que o ignoramos não fosse a exigência de procedimentos práticos como
registros de nascimentos, mortes, datas comemorativas etc.
—Outra
resposta evasiva! — pensou e concluiu que encontrava com seres cada vez mais delirantes.
Olhou em volta, mas não havia jornais. O senhor pediu dois cafés com leite e
logo perguntou se Julián havia sido pescador também como ele.
—Sim,
fui, mas somente quando era muito jovem para ajudar meu pai. Depois fui para a
Escola Naval, me formei em Patrão de Pesca. Naveguei um tempo em grandes buques,
depois me casei e fui trabalhar em terra. Por falar nisso, o senhor disse que
poderia me ajudar. Preciso avisar minha mulher onde estou, ela estará
preocupada. Me diga onde encontro um telefone.
—Não
precisas de telefone para encontrar tua mulher. Tu poderás sintonizar com ela
desde onde estás e ela saberá que estás bem e tu saberás dela.
—Sintonizar? E como se faz isso? Sintonizo uma rádio do carro, um canal de televisão, mas
uma pessoa eu não sei sintonizar...
—Na
verdade, vocês estão em sintonia sempre. Não vejo por que preocupar-se.
—Quero
vê-la, estar com ela! Entende, senhor?
—Então
pense num lugar e envie-lhe uma mensagem. Ela virá, se quiser, se puder e
quando puder.
Julián
refletiu sobre a resposta do senhor e deduziu que se estivesse morto não haveria
de querer que sua mulher também morresse para encontrá-lo. Na dúvida, encerrou
o assunto, agradeceu o café e saiu quase correndo do lugar.
Lá
fora já anoitecia e não sabia mais que rumo tomar. Sozinho, com nada mais
fazendo muito sentido, sentou-se na amurada do passeio marítimo e ficou olhando
o mar durante um tempo que não saberia precisar. Quando escureceu percebeu as
luzes de um pequeno farol acendendo e apagando, orientando os marinheiros. Ficava a uns trezentos metros daquele ponto onde estava e sentiu-se impelido a seguir para ali. Quando chegou mais perto do farol viu uma construção de pedra ao lado e muita luz e movimento vindos lá de dentro. Parecia uma taberna de cais de porto.
Ficou parado diante da porta de madeira aberta de par em
par, meio corroída pelo tempo, com fechadura e dobradiças enormes muito
antigas. O ambiente interno era pequeno, pé direito baixo, as paredes eram de
pedras brutas, grandes e maciças sem reboco. A iluminação vinha de pequenas
lanternas dispostas de longe em longe nas paredes e de um grande lampadário pendurado no
teto central. Sob o balcão pendiam
taças, copos e peças de queijo e presunto defumado. Uma prateleira exibia
grande quantidade de garrafas de bebidas. Havia bancos e mesas em forma de
barris de vinho. E o vinho estava estocado em um grande barril em cima do
balcão. Muitas pessoas se aglomeravam pelo local, homens e mulheres sentados pelas mesas, rindo, conversando ou dançando. Tocava uma música alegre num ambiente
descontraído. Antes de entrar ele olhou para a parede de fora da taberna, havia
uma placa escrito em letras meio góticas onde leu Lanterna dos Afogados e a
partir daquele instante tudo começou a fazer sentido.
Prontamente
lembrou de Evelina, uma jovem de vinte anos que havia conhecido ali naquele
mesmo lugar. E a imagem dela e de sua atual esposa se embaralharam em sua
cabeça, pois definitivamente eram a mesma pessoa. Decidiu, então que esperaria
por ela ali, com aquelas pessoas, naquele ambiente, exatamente no lugar onde um
dia eles tinham se encontrado. Não lembrava bem quando isso tinha acontecido,
mas sabia que o lugar era aquele. Teve breves lapsos de memória de um tempo em
que eles eram muito jovens e foram viver juntos num lugar perto dali. Ela o
esperava chegar do mar todos os dias, até que num dia de tempestade seu barco
não voltou mais, porque ele e seus companheiros foram tragados pelas águas.
Mais
tarde ele procuraria e estava certo de que encontraria a casa onde eles viveram
e se amaram. Isso o ajudaria a lembrar mais detalhes de sua vida. Agora já estava descansado e curado e a Evelina do passado, sua esposa no presente saberia onde
encontrá-lo. Ele queria estar ali quando ela chegasse e esperaria quanto fosse
preciso. E seguiriam juntos, como sempre. Afinal, aprendeu que o tempo pode ser
ignorado, quando se espera com a alma.
★★★★
Nossa! Que história enigmática! Posso dizer que só fui compreender mesmo o final.
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