—Me conta alguma história, algo bom...— J. me
pediu por escrito recostado no sofá da sala, num dia de costumeira letargia
provocada pela sua condição de saúde, ainda assim com relativo conforto físico.
Enquanto sua comida—um líquido amarelo e espesso— saía de uma garrafinha de
plástico adaptada a um cabideiro da casa e fluía por um tubo que ia direto ao
seu estômago, sentei bem perto dele. Com um tom de voz um pouco mais alto e
compassado para que ele me ouvisse bem, eu comecei.
Contei a história de um casal cujo encontro era
tido como totalmente impossível. Porém, à medida que foram se conhecendo, a
princípio por um aplicativo de idiomas depois por mensagens instantâneas e
correios eletrônicos descobriram que eram como poucos para se entender e que
valeria a pena um projeto de acercamento. O segredo desse entendimento era
dizer tudo e transparecer. Nada a esconder, dourar, disfarçar ou dissimular
fosse o que fosse: o clima chuvoso da terra dele, o inverno rigoroso europeu, o
dinheiro escasso, a barreira dos idiomas, os preconceitos a respeito de
costumes e cultura mútuos e receios normais de quem nunca havia saído de seu
continente. Inclusive um temor fantasioso e hilário se o ar seria respirável nos
seus respectivos hemisférios, tudo isso foi considerado e relatado um para o
outro.
Haviam nascido com uma diferença de apenas três
meses e cresceram separados pelo Oceano Atlântico, mais de oito mil
quilômetros, vivenciando fatos pessoais e coletivos mais ou menos semelhantes,
crescendo sob ditaduras e em famílias amorosas de classe trabalhadora. Estudos,
casamentos, filhos, trabalhos e desejos de acumulação de pequenos patrimônios
foram eventos comuns de suas vidas, nada extraordinário para aquela geração de
baby boomers, nascidos no final da década de 1950.
Um dia, depois de muitos planos, ideias, esquemas e
conjecturas—inclusive após uma incrível e objetiva análise de risco que um
deles realizou utilizando seus conhecimentos técnicos— esse encontro fez-se
possível. Aí começou a maior aventura romântica de suas vidas. Eles nunca
tinham vivido semelhante atmosfera de romance até então, um verdadeiro idílio,
mesmo os dois já tendo passado dos cinquenta anos.
Os sonhos e anseios de toda uma vida permaneciam
latentes nos lugares mais recônditos de suas almas, uns por impossibilidades
variadas, outros por impositivos alheios, muitos por simples renúncia. Ao serem
revelados, descobriram uns tantos em comum e o compromisso recíproco de serem
resgatados passou a ser um projeto de vida único. Havia um mundo a ser criado
um para o outro cheio de oportunidades, uma felicidade factível pronta para ser
perseguida. Era a última chance que tinham para aprender, ao fim e ao cabo, o
que significa amar e ser amado. Quando se aprende a amar, o mundo passa
a ser seu, já dizia Legião Urbana.
E contei a J. todos os lugares por onde passaram
aqueles dois aventureiros desde os aeroportos em que aterrissaram ou decolaram,
os lugares que mostraram um ao outro e os que desbravaram juntos. Eles
alcançaram bons pedaços de mundo, foram muitos quilômetros percorridos a pé, de
carro, barco, trem, ônibus e avião com as músicas dos anos 70 e 80 em sua
maioria soando nos ouvidos de ambos como dois adolescentes.
À menção de cada lugar ou cada situação J. sorria,
um sorriso que tinha ficado difícil de esboçar pelo seu permanente estado de
abatimento e pela musculatura da face —não sei se mais afetada pela enfermidade
ou pela radiação. Ele também não podia falar, pois o tratamento tinha atingido
suas cordas vocais. Porém, ele sorria com o coração a cada detalhe narrado da
história— aquele café na Plaza Mayor de Salamanca, a longa espera na fila
debaixo de sol para subir na Torre Eiffel e a corrida para conseguir alcançar
um barco que saía para Greenwich Park pelo Rio Tâmisa, ouvindo o barqueiro
gritar alto: Hurry up! The boat is leaving! —Depressa, o barco está
partindo!
Houve uma vez que eles caçoaram de um grupo de
turistas asiáticos com a boca coberta por máscaras higiênicas, andando
disciplinadamente enfileirados, comandados por um guia, subindo
uma ladeira estreita de uma ruazinha de Toledo—de máscara, mesmo quando
uma pandemia ainda era inimaginável para o mundo. Quão sábio é aquele povo! Concluímos
naquela hora em que estávamos vivendo o confinamento imposto pela emergência
sanitária.
Relatei as visitas deles ao Brasil nos finais de
ano, sempre enriquecedoras para ele—o estrangeiro— tanto no aprendizado da
língua, quanto dos costumes, derrubando vários estereótipos brasileiros que
ainda perduram pelo mundo, mesmo com o advento da internet e do fenômeno da
globalização.
E houve o dia do auge do encantamento quando os
dois visitaram Veneza e cruzaram os canais num vaporeto—principal meio
de transporte da cidade. Concordaram que os passeios nas tradicionais gôndolas tinham
preços exorbitantes. Mesmo assim, não se incomodaram de pagar cinco euros por
um simples café pertinho da Praça São Marcos, comer com a mão pedaços de pizza
na hora do almoço ou arriscar derrubar o sorvete, enquanto eles se espremiam
com os demais turistas para atravessar a Ponte di Rialto.
Contei-lhe também dos muitos sábados ensolarados e
despreocupados que eles iam à feira livre em Vilanova de Cerveira, um pequeno
município de Portugal na fronteira com a Espanha. Ali ela remexia em pilhas de
casacos ou suéteres de frio pela bagatela de dez euros a peça, enquanto ele
esperava pacientemente. Depois compravam verduras e frutas orgânicas, para
finalmente terminar o passeio tomando café com pastel de nata na pastelaria
Velha Rosa.
Os encontros divertidos com os amigos brasileiros,
os cafés com os amigos de infância de J. no pequeno povoado espanhol em que
viviam e se encontravam aos finais de semana também tiveram que ser
mencionados. Veio também a lembrança da pizza Olívia do Bar Farol— com rúcula,
tomate cherry, queijo de cabra e nozes, a preferida dela. A dele era sempre
acompanhada por uma generosa porção de batatas fritas, mistura um pouco rara
para os padrões brasileiros.
Contei também sobre as longas caminhadas pela praia
de Sanxenxo e dos incontáveis pores de sol na Lanzada, maior praia de mar
aberto da região. Relatei também as vezes em que eles davam de comer às
gaivotas que insistiam em aparecer depois dos almoços de verão na sacada
do apartamento. E sobre a vista das luzes da cidade de Marin
refletidas no mar, enfeitando as noites e o horizonte de seu pequeno povoado. Antes
de fechar as persianas do quarto era a última imagem antes de dormir, o mais
belo e simples cenário.
Foi quando finalizei a história contando de um
beijo durante o trajeto no teleférico da cidade do Porto registrado em uma foto
que está bem guardada que ele, enquanto tentava sorrir, deixou escorrer uma
lágrima. Pedi que ele relevasse aquele detalhe que pareceu lhe trouxera muita
emoção e certo desassossego. Afinal ele havia pedido uma boa história. E a
história que eu tinha para contar era essa, real, encantadora e inesquecível.
O mundo nos esperou até que J. não pode mais ficar
nele. Ele foi embora deixando ao mesmo tempo uma vastidão de memórias e um
imenso vazio de histórias interrompidas ou quiçá adiadas.
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