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Sonhos interrompidos

Foto: Arquivo Pessoal, Praia das Catedrais, Espanha

Eu nunca tinha tido curiosidade de visitar as Missões Jesuíticas no Rio Grande do Sul. Por muita insistência de J. passamos um final de semana em São Miguel das Missões no verão brasileiro de 2020, quando a pandemia já se avizinhava na longínqua Wuhan na China. Ele tinha toda a razão de querer conhecer, constatei depois de assistirmos a representação da história da Missão que é exibida ao ar livre todas as noites em frente às ruínas. É emocionante e o lugar é muito bonito. Ficamos surpreendidos.

Outra vez, creio que na segunda que ele veio ao Brasil, me propôs uma viagem de carro desde Santa Maria até Foz do Iguaçu para visitar as cataratas. Mostrei-lhe o trajeto inteiro no Google Maps, disse-lhe que desconhecia totalmente a região e as condições das rodovias e ele nunca mais falou em viajar por terra até ali, embora a vontade de conhecer persistiu. Foi quando ele teve a percepção do gigantismo e das proporções continentais do Brasil.

J. só conhecia São Paulo e Rio de algumas vezes em que precisou trocar de aeroporto nas suas inúmeras chegadas e partidas do Brasil, mas tínhamos planos de visitar da mesma forma que ele tinha curiosidade por conhecer Salvador onde há uma comunidade imensa de galegos que emigraram da Espanha para ali décadas atrás.

Ele ficou encantado por Florianópolis e pelo litoral de Santa Catarina, principalmente por suas praias de águas quentes que usufruía como se fosse criança. Entrava na água e não queria mais sair. Acho que seria um dos únicos lugares que poderia adaptar-se, por se acaso um dia viéssemos morar no Brasil como planejávamos.

Fomos uma única vez a Londres, Paris e à região de Vêneto na Itália onde nos hospedamos em Pádua e Veneza; viajamos muitas vezes à Lisboa e região e muitas mais à Madrid e às comunidades espanholas, Astúrias, Andaluzia e Castilla y León. Posso dizer que percorremos juntos meia Espanha e meio Portugal, além de esquadrinhar todas as províncias galegas desde Pontevedra, Coruña, Lugo e Ourense. Num longínquo final de tarde em Finisterra, choramos junto com dezenas de turistas vendo o pôr-do-sol e ouvindo o tema de A Missão —Gabriel' s Oboé de Enio Morricone—que alguém colocou para tocar no celular.

Num verão eu sugeri ir para as Ilhas Baleares, Palma de Mallorca, mas estava demasiado caro e acabamos indo para Nazaré em Portugal, ou seria Ofir, Espinho ou Póvoa de Varzim? Já me confundo com muitos verões e primaveras que saíamos de passeio. Demais de lindo qualquer uma delas, porém as praias portuguesas são de água muito fria—quase tão frias como as da Galícia— com imensas faixas de areia, mar aberto e muito vento principalmente à noite.

Nessa estadia em Nazaré, um dia quase pegamos um barco desde Peniche— distrito de Leiria— até as Ilhas Berlengas. Felizmente(ufa!) já tinha saído o último daquele dia. Tinha ouvido dizer que o trajeto até as Ilhas pode ser perigoso e terrificante por causa das ondas altas na região, mas um ex-marinheiro como ele não se intimidava com esse tipo de aviso. Acho que ele sabia bem como era e eu teria ido, mesmo apavorada. Parece que a paisagem do destino compensa o enjoo marítimo e o trajeto assustador.

Assim como eu queria mostrar a ele como era bonito passear por Buenos Aires e Montevideo que eu já conhecia, ele queria me mostrar o quanto era divertido viajar em um navio de cruzeiro pelo Mar Mediterrâneo. Pensar em passar dias e noites no meio do mar, confesso me inquietava um pouco e adiava esse passeio, mas havia me comprometido a fazermos depois que passasse a pandemia, quando tudo prometia voltar à normalidade. Naquele tempo, independente da pandemia, uma esperança imensurável nos acompanhava cada dia. 

Tínhamos uma listinha de lugares para visitar onde constava, sem ordem de prioridade, Havana, Biarritz, Nova York, Amsterdam, Saint Michel na Normandia, Nápoles e Dublin. A prioridade era a capacidade econômica, obviamente, aproveitando ofertas ou pacotes de viagens de baixa temporada. Nunca fomos mochileiros, não gostávamos de pousadas com banheiros compartilhados, por exemplo, tampouco éramos hóspedes cinco estrelas. Buscávamos sempre por voos e alojamentos confortáveis, porém mais baratos. E antes da pandemia isso era totalmente possível. 

Por fim, veio o câncer, "o imperador de todos os males", essa epidemia silenciosa, renunciante, traiçoeira e devastadora. Esse crescimento maligno microscópico e  macroscópico de células anormais e disformes apoderou-se de todos os nossos sonhos, interrompeu nossa caminhada, rompeu nossos corações e nossas esperanças e acabou consumindo com a vida de J. 

Esse gigante invisível, insidioso, que se escamoteia por detrás de tratamentos infrutíferos e malogrados goza do poder de ser ainda maior que esse mundo todo que tanto percorremos e ainda nos faltou percorrer. O destino tem duas caras, por vezes é aprazível, clemente e bondoso e outras impiedoso, cruel e atroz. Assim é a vida, porém em sua memória estou tentando ainda ter fé como dizia Gonzaguinha em Sementes do Amanhã. A voz do menino J. ecoa no meu ouvido cada vez que me deprimo e penso em desistir.



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