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Evelina

 

Imagem: Global Gallerry, Diana Romanelli

Evelina chegou esgueirando-se perto do farol. Dali poderia avistar seu avô. Como muitas noites da semana, sua avó a encarregava daquela amolação, tinha que buscar por ele na Taberna da Lanterna. Às vezes, ele não estava ali e elas não tinham ideia de seu paradeiro. Sua avó tinha desconfianças. Comumente ele estava e sempre esquecia da hora na animação das conversas sobrepujadas pela bebida. Voltava trôpego, alto de vinho, abraçado na neta e dando muitas risadas. Felizmente não era violento, como muitos que ela via por ali em meio àquele ambiente ruidoso que cheirava à álcool, presunto defumado e corpos sem banho.

A tarefa não era fácil, pois ele remanchava até terminar seu último gole de vinho como se fosse um líquido preciosíssimo e Evelina tinha que estar ali lembrando a todo momento que sua vó o esperava em casa onde fatalmente ouviria a habitual refrega entre eles. Ao mesmo tempo, tinha que enfrentar os olhares lascivos de alguns frequentadores da taberna que não a molestavam, mas somente porque o avô estava presente e era uma pessoa conhecida e respeitada no lugar. 

Ela tinha dezessete anos e fora criada com os avós paternos. A mãe morrera no parto e o pai acometido gravemente pela dor da perda da esposa, nunca chegou a olhar direito para a filha, nem quando recém-nascida nem nos anos que se seguiram. Fazia três anos que ele havia se juntado aos republicanos e a guerra civil era uma realidade. Ninguém sabia nada do pai de Evelina, se estava morto ou vivo. Nada.

Para ela, seu pai era aquele senhor marinheiro alto e forte que saía ao mar todas as madrugadas, mesmo tendo ido dormir com a cabeça cheia de vinho e sua mãe aquela senhora alquebrada e gentil que mariscava com as vizinhas para garantir mais algum alimento para o dia. Quando a maré estava baixa elas saíam a colher berberechos, almejas ou navajas remexendo no fundo arenoso da ría com suas enxadas e ancinhos. Todos lutavam para ter o mínimo de comida na mesa naquela época de muita fome no país inteiro.

Evelina não tinha muitas ilusões para sua vida real, embora muitos sonhos povoassem seu inconsciente. Nunca saíra de seu povoado e mal aprendera a ler, escrever e fazer cálculos. Seu avô, por conseguinte, ocupara-se de ensinar-lhe tudo sobre o mar, sobre barcos, sobre as marés, a nadar e a pescar sem importar-se que fosse a uma mulher. Depois que ela completou quinze anos a avó começou a encorajá-la para que escolhesse logo um marido. Seria um homem a mais para trazer comida para dentro de casa, já que faria tudo para que eles continuassem morando todos juntos.

Porém, Evelina ainda não tinha despertado interesse por rapazes. Sabia por algumas amigas algo sobre namoros e casamentos e o que sabia bastava para ainda rejeitar a ideia. Seus dias passavam entre os afazeres da casa ajudando a avó, buscando água na mesma fonte onde lavava as roupas da família, limpando, costurando redes de pesca ou fazendo algum bordado para um enxoval que precisava ser providenciado, mesmo que ainda não houvesse nem sombra de noivo. Quando podia escapar da vigilância da avó e das muitas tarefas que lhe cabia, ela saía a andar pela beira da praia, assistindo amanheceres, pores de sol e divagando sobre outros mundos e outras vidas possíveis.

O avô de Evelina achava cedo para que ela se casasse, planejava que ela um dia saísse ao mar com ele e lhe ajudasse no trabalho, mas sabia que haveria muita resistência por parte de sua mulher. Além do mais, os homens jovens estavam ficando escassos por ali. Muitos tinham sido convocados para lutar ao lado dos monarquistas nacionalistas, outros, como o pai de Evelina, foram aumentar as fileiras dos republicanos naquele conflito histórico que gerou a guerra civil espanhola entre os anos de 1936 e 1939.

Assim que a freguesia da Lanterna estava limitada à homens mais velhos, mulheres sozinhas ou órfãs cujos pais ou maridos foram cooptados pela guerra—não lhes restando mais que oferecer-se aos frequentadores masculinos para sobreviver— ou mesmo as muitas esposas que vinham ali em busca de seus maridos impertinentes viciados em álcool. Seguidamente Evelina presenciava ali brigas entre casais ou entre homens disputando mulheres. Afortunadamente, o taberneiro era de boa índole, e logo interferia nas altercações impedindo acontecimentos mais graves em seu estabelecimento.

Aquela era uma noite fria de novembro e o mar estava calmo depois de uma breve tormenta na parte da tarde. Quando havia vento e prenúncio de tempestade o farol era fortemente alvejado pelas ondas e muitas vezes, quando passava por ali Evelina saía respingada de água e, com as roupas tão úmidas que lhe entranhava um frio até os ossos. Ela gostava dos arredores do farol, era um lugar silencioso, nunca encontrara ninguém por ali e era para onde ia quando não queria ser encontrada, tanto de dia quanto de noite. Era como se fosse um lugar só seu.

Ela dirigiu-se à taberna e da entrada logo viu seu avô sentado no balcão. Naquela noite parecia mais lúcido, tinha o semblante mais sóbrio, os olhos sem o brilho da embriaguez e conversava sobre a guerra. Ele expunha suas opiniões abertamente a favor dos republicanos e da segunda República. O lugar estava cheio e havia muitas rodas de conversas. Evelina percebeu que ele falava com um grupo de desconhecidos, um senhor e dois jovens.

Parou ao lado do avô e ficou ouvindo a conversa. Era com pai e dois filhos, pescadores vindos de Ferrol que estavam ali escapando da tempestade da tarde em alto mar. Ficariam alojados em Celeiro naquela noite. Um dos jovens era quase um adolescente imberbe. O mais velho teria uns vinte ou vinte e poucos anos e chamou a atenção dela. Ele era bonito, tinha um olhar muito azul, meio perdido, não falava nada e logo que ela parou ao lado do avô, eles trocaram olhares tímidos. Felizmente, naquela noite ela não teve dificuldades para terminar sua tarefa. Depois de uns minutos, o avô tratou de encerrar a conversa com a família de marinheiros e foram para casa. Antes de deixar a taberna, Evelina despediu-se do jovem com um movimento de cabeça.

Na manhã seguinte, ela estava andando pela praia e avistou os dois rapazes que tinha visto na Lanterna na noite anterior. Estavam consertando o barco que tinha sido avariado com a tempestade. Passou por eles devagar e se sentou na borda do cais onde sempre costumava ficar admirando o mar. O sol apenas havia despontado e não havia nuvens, embora a temperatura baixa da noite ainda persistia. Ela fechou o casaco marrom tricotado à mão e empurrou a barra do vestido de lã para bem abaixo dos joelhos, enquanto se sentava. Passados uns minutos, o jovem mais velho, ao mesmo tempo que fazia sua tarefa, parecia perturbado com a presença de Evelina ali tão perto, vendo-a de costas sentada no cais. Os cabelos de um tom castanho acobreado lhe caíam até pouco mais dos ombros e o topo da cabeça estava coberto por uma touca de lã azul marinho.

Num dado momento, ela se levantou, aproximou-se e disse:

—Hoje vocês poderão voltar, não há mar de fundo e não há risco de tempestade.

—E como sabes? — perguntou-lhe o rapaz timidamente.

—Conheço o mar.

—Eu pensava que conhecia também, mas ontem ele nos pilhou.

—Ele é inconstante, precisa ser observado com prudência e calma.

E despediu-se. Antes de dar a volta para seguir, ouviu o rapaz dizer:

—Está faltando uma peça para consertar o barco. Meu pai foi buscar em Viveiro. Vamos ficar mais essa noite aqui. —disse o rapaz de maneira impulsiva, espantando-se consigo mesmo pela atitude que instintivamente teve de passar aquela informação para a moça.

Ela pareceu entender o recado, porque seguiu seu caminho sem assentir, nem nada, somente com um leve sorriso nos lábios e uma sensação de borboletas roçando seu estômago. Algo que nunca havia sentido.

Naquela noite, como em todas, Evelina saiu em direção à taberna com um ânimo diferente, estranhando a avó. Chegando perto do farol não enxergou nem vulto do avô o que na verdade contribuía para estar ali mais livremente e, pela primeira vez por questões particulares. Antes de entrar sondou o ambiente de fora da porta dissimulando procurar alguém. Entrou hesitante, porém o taberneiro logo avisou que seu avô não estava. Nesse momento avistou o jovem marinheiro numa das mesas jantando com o pai e o irmão. Ele também a viu.

Enquanto ela tentava dar meia volta depois do aviso do taberneiro, um homem desconhecido abordou-a, passou-lhe a mão pela cintura, enquanto lhe propunha sair e lhe empurrava grosseiramente para fora da taberna. No mesmo instante tanto o taberneiro como o jovem marinheiro pularam em cima do homem, impedindo que ele continuasse a importunar Evelina. Nisso, ela saiu correndo e escondeu-se no farol. Pensou que deveria continuar por perto, de um ponto em que pudesse ver o movimento da taberna sem ser vista. Depois de alguns minutos ela percebeu que o homem, visivelmente embriagado, tinha sido advertido pelo taberneiro e o ambiente havia acalmado. Logo depois o jovem marinheiro saía sozinho vindo em direção ao lugar onde ela estava.

—Ei, olá...Estás bem?  —Perguntou ele em voz alta, antes ainda de poder vê-la na escuridão.

—Como sabia que eu estava escondida aqui? —Evelina apareceu devagar vindo das sombras.

—Eu vi quando saíste correndo para cá.

—Obrigada por afastar aquele homem. Geralmente ninguém me importuna, mas hoje não encontrei meu avô e aquele homem é desconhecido por aqui. Ele pensou que eu fosse uma daquelas mulheres que procuram homens na taberna.

—Mesmo assim ele não tem o direito de sair agarrando toda a mulher que aparece, e tu és pouco mais que uma adolescente.

—Já tenho dezessete anos, muitas mulheres já estão casadas com a minha idade.

—Eu sei...Mesmo assim, deveria haver mais respeito por parte dos homens.

—Os homens só respeitam suas mães, filhas e irmãs...Às vezes, nem estas...

—O taberneiro é teu parente? Ele te protegeu...

—Não, é amigo de meu avô e me conhece desde criança. É um bom homem.

—Teu avô me pareceu um bom homem também...A verdade é que nem todos são desprezíveis.

—A maioria dos homens trata as mulheres como inferiores e são consideradas presas fáceis para eles, são feitas para serem caçadas. Já estou acostumada e sei me defender. Meu avô me ensinou, mesmo assim te agradeço.

—É verdade e vejo que tens coragem também.

—Instinto de sobrevivência. Agora tenho que ir, não encontrei meu avô. Hoje é daquelas noites que ele fica sumido. Minha avó pensa que ele está com outra mulher.

—Queres que te acompanhe até tua casa? Estarás em segurança, não sou como todos...

Ela deu de ombros, mas com o coração aos saltos e a boca do estômago povoada de bichos de asas, disse tentando dissimular a perturbação:

—Se queres...—e seguiram andando devagar lado a lado. —Já conseguiram consertar o barco?

—Amanhã finalizamos e seguimos viagem de volta.

—E vocês costumam navegar por esta ría?

—Sim, além das proximidades de Ferrol, às vezes saímos mais longe...

—Quer dizer que poderão voltar outra vez?

—Certamente. Já estivemos outras vezes aqui, mas é a primeira vez que temos que pernoitar.

—Pois nunca tinha te visto.

—Eu tampouco.

—Moro aqui. Obrigada. Tenho que entrar. — Ela disse estacando numa porta grande de madeira num dos casarios do povoado.

—Me chamo Julián. E tu?

—Evelina.

—Gostas de ler, Evelina?

—Gosto, mas aqui se lê pouco, não há nada para ler a não ser as páginas de periódicos e revistas velhas que minha avó trás embrulhando as compras da venda da esquina. Às vezes tenho sorte que há um pequeno conto inteiro numa página que eu desamasso e leio.

—Pois da próxima vez que eu vier te trago um livro.

—Nunca li um livro inteiro...E sobre que é?

—Ainda não sei. Eu tenho alguns em casa, vou escolher uma novela leve e alegre.

—E por quê?

—Por que o quê?

—Por que me acompanhaste até aqui e agora diz que volta e vai me trazer algo?

—Não sei..., mas eu sei que vou voltar até aqui à tua porta.

—Bem, tenho que entrar. —Ela disse um pouco embaraçada. Até outro dia, Julián.

—Até outro dia, Evelina.

Na manhã seguinte, seus avós ainda dormiam, ela teve um ímpeto de sair correndo à praia logo cedo com esperança de ver Julián pela última vez. Quando ela chegou ao cais, viu o barco deles se afastando. Só ficaram se olhando de longe, sem um aceno, sem nada para não despertar a atenção dos outros tripulantes.                                

A rotina de Evelina seguiu sem mudar absolutamente nada, somente um sentimento estranho e indescritível passou a acompanhar-lhe depois daquele brevíssimo encontro com o jovem marinheiro. Passados seis meses, já era primavera e ela estava em casa pela hora da sesta, entre entediada e relaxada bordando toalhas, quando bateram na porta. Era Julián.

—Olá, Evelina. Ainda lembra de mim?

—Quase que não...Demoraste demasiado a voltar. — Ela disse depois de uns segundos de surpresa e alvoroço, simulando contrariedade.

—Desculpa, estivemos navegando muito longe daqui. Voltamos há pouco de Terra Nova. Posso entrar?

—Claro. Minha avó está recostada e dormita essa hora e meu avô está no cais ajudando um amigo a consertar barcos.

—Eu sei, encontrei com ele ali e pedi permissão para vir te visitar. Toma, aqui está o livro que te prometi. — Disse Julián entregando uma pequena brochura antiga com páginas amareladas, enquanto se sentavam num banco de madeira que havia na sala da casa.

Las cumbres borrascosas¹ de Emily Brönte? — Evelina leu devagar o nome da autora.

—É um romance do século passado de uma escritora inglesa. Comprei lá em Terra Nova num comércio local e me chamou atenção que estava traduzido ao espanhol. Já li e penso que vais gostar.

—Muito obrigada. Nunca ganhei um livro de presente. E onde fica Terra Nova? —perguntou, enquanto acariciava a capa e as páginas, passando os dedos devagar pelo papel.

—Terra Nova fica na América do Norte, é uma grande ilha que pertence ao Canadá e estivemos ali meu pai e eu trabalhando num grande pesqueiro espanhol.

—E que língua falam lá?

—Inglês e francês, mas eu não entrei muito em contato com eles, não entendia nada que diziam...Estivemos pouco em terra.

Nisso, a avó de Evelina apareceu descendo as escadas.

—Vovó, esse é Julián. Nos conhecemos um dia na taberna, quando fui atrás do avô....

—Boa tarde, senhora. — Disse Julián levantando-se rapidamente.

—Boa tarde...E dirigindo-se à neta. — E teu avô o conhece?

—Sim...—preferiu responder Julián. Nos vimos mais que uma vez e creio que ele conhece a meu pai de Ferrol. Também somos pescadores.

—Ah...De Ferrol? Meu marido já foi muitas vezes a Ferrol. Aqui nesta região quem não pesca, não come... Convide seu amigo para jantar, Evelina. Mas antes vão dar um passeio pela praia, tenho que sair e seu avô, sabes bem, que tão cedo não aparece. Assim que não fica bem uma moça e um rapaz solteiros sozinhos dentro de casa. A vizinhança repara.

Assim os dois saíram andando devagar em direção à praia.

—Semana que vem faço dezoito anos. Assim que o livro já o considero como um presente de aniversário.

—Ah, sim? Pois na semana que vem tratarei de voltar se me convidares para a festa.

—Não haverá festa. Esta data não é muito festiva para minha família, pois foi quando morreu minha mãe e meu pai nunca superou. No máximo minha avó vai fazer um almoço e sobremesa mais caprichados e meu avô não vai sair para o mar. Agora mais que nunca ela vai querer que eu busque um marido. Não gosta da ideia de que eu comece a embarcar com meu avô, como ele pretende me levar logo...

—E tu conheces as lides do mar? Sabes que não é um trabalho comum para mulheres, não? Irias sem receios?

—Meu avô me ensinou tudo e como meu pai sumiu há anos, não tem ninguém para ajudá-lo. Sim, eu iria. Prefiro do que ficar limpando, lavando e bordando.

—Meu pai também quer que eu me case logo. Sempre diz que um homem tem que ter uma mulher para cuidar, ter filhos e outra para divertir-se. Eu, na verdade só quero uma para amar...Se encontrar...

—Pois vais te distinguir dos outros homens. Todos têm mais que uma mulher na vida, enquanto às mulheres lhes obrigam a casar até com quem não querem e lhes impõem fidelidade, senão ficam mal faladas.

—É verdade...Quer dizer que na próxima semana veremos uma marinheira na faina dos barcos com o avô?

—Não sei...Tenho muitas tarefas em casa, e minha avó não pode com tudo...Assim que não é uma decisão fácil para meu avô, eu entendo...talvez começaria somente alguns dias da semana. E tu, deixaria tua mulher te acompanhar no mar?

— Me acompanhar, creio que sim, mas sair sozinha a pescar, não sei...o trabalho é árduo e às vezes perigoso, sabes como é o mar... Olha, ali estão meu pai e teu avô.

Ambos se acercaram aos dois senhores marinheiros e eles esboçaram o mesmo sentimento de satisfação ao verem neta e filho passeando juntos. O avô de Evelina já havia feito o mesmo convite para que fossem jantar em sua casa na mesma noite, assim que os jovens ficaram contentes de poder estarem juntos sem a implicância de algum familiar o que era bastante comum naquela época de muita vigilância e repressão dentro das famílias.

Evelina e Julián seguiram o passeio até a praia, andaram um pouco pela areia depois sentados na escadaria de pedra do cais, ela perguntou:

—Quantos anos tens, Julián?

—21.

—E tua mãe, está em Ferrol?

—Sim, moramos perto do porto na vila dos marinheiros, chama-se Irene e tenho uma irmã menor, está com 13 anos, se chama Carmiña e meu irmão do meio é Enrique, acabou de fazer 15 anos.

—Deve ser bom ter irmãos, uma família completa...E que pretendes fazer com tua vida?

—Pois o mesmo que meu pai, pescar, sair ao mar... Se tivesse algum dinheiro iria a capital estudar, mas ainda não tenho condições. Talvez , um dia...Meu pai herdou algumas vinhas de meu avô, mas não gosta da agricultura e é minha mãe e dois empregados que se encarregam da vindima. Assim que não somos ricos e tampouco miseráveis.

—Tiveste sorte que ainda não te chamaram para lutar junto aos monarquistas.

—Não vão me chamar. Meu pai tem uma certa influência na região, embora seja contra eles...E eu não quero participar de uma guerra entre irmãos, embora eu ache que a luta é relevante e importante para o país. Somos todos espanhóis e as desigualdades e as lutas dos trabalhadores devem ser enfrentadas como asseguram os idealistas, como deve ser teu pai. Além do mais, os monarquistas cooptam somente gente muito pobre para suas fileiras ou os que já têm uma carreira no exército. Não prestei serviço militar, porque na época meu pai teve um problema de saúde e atestei que eu era arrimo de família. Os republicanos estão ali por convicção e idealismo. Não é meu caso, nem um, nem outro.

—Eu não entendo bem do tema, só sei que meu avô também é contra a monarquia. Meu pai sumiu há uns três anos e nem sabemos se está vivo ou morto. Dizem que ele se apegou a esses ideais políticos mais por ter pelo que viver. É um homem muito amargurado. Nunca o vi sorrir ou desfrutar de algo. Acho que me odeia, porque pensa que fui responsável pela morte de minha mãe. Sei que não fui. Muitas mulheres morrem de parto. Minha avó já me explicou isso muitas vezes, e se um dia me casar não vou querer ter filhos.

—E como faríamos para isso não acontecer? — Disse Julián num impulso, aproveitando o assunto.

—Faríamos?

—Sim...Se nos casássemos terias que me dizer como faríamos para que não tivéssemos filhos. Eu tenho algumas ideias, mas queria saber as tuas...

—Julián, esta é a segunda vez que nos vimos!!! Como podes falar em casamento?? Mal nos conhecemos!!! E nunca falei sobre essas questões a não ser com minha avó!!

—Eu te entendo, me desculpa a pergunta intempestiva. Mas não precisa ser para amanhã, nem para o mês que vem.... Eu poderia esperar...um pouco..., mas não muito, um ano, pensas que estaria bem para nos conhecermos melhor? —perguntou Julián encorajado.

—Não sei, me pegaste de surpresa...na verdade, desde que fostes atrás de mim no farol naquela noite e durante esses seis meses pensei muito em ti, mas não te conheço...precisamos nos conhecer melhor...Além do mais não estou atrás de marido como quer minha avó e a maioria das amigas de minha idade.

—Concordo que mal nos conhecemos, podemos esperar e te prometo vir aqui te ver uma vez por semana a partir de agora. Falo com teu avô essa noite mesmo, se me permitires. Eu nunca mais te esqueci esse tempo todo desde que te vi entrar naquela taberna. — E deram-se as mãos devagar e ensaiaram tímidos um primeiro beijo de amor ali sentados nas pedras do cais.

—Vamos, tenho que ajudar minha avó com o jantar. Ela vai ficar contente em saber que já tenho um noivo antes de completar os dezoito...—disse Evelina sorrindo, um pouco embaraçada com a situação.

—Aceitas, então?

—Aceito um noivado primeiro, se me prometes vir sempre...Depois, veremos...

—Te prometo. Se eu pudesse me mudava a Celeiro hoje mesmo e estaríamos mais perto, mas preciso conversar com meu pai, organizar algumas coisas.

Saíram andando em direção à casa e continuaram a conversa.

—Que coisas? — Quis saber ela.

—Por exemplo, onde vamos morar, se aqui ou em Ferrol, se consigo um barco para trabalhar, como vamos viver, enfim...

—Calma, eu ainda não disse que vou casar contigo, também preciso saber se sendo tua mulher poderia embarcar como gostaria meu avô...

—Esse é um pedido um pouco raro partindo de uma noiva...

—Mas terás que considerar, se queres casar comigo...poderíamos sair para o mar juntos todas as manhãs...

—E quem se ocuparia da casa?

—Ora, nós dois...!! Lembre-se que não haverá crianças...

—Não sei, isso me soa um pouco estranho...Teremos que falar sobre isso mais detalhadamente.

—Pois se vieres todas as semanas como estás dizendo, teremos muito tempo para conversar...

—Não me crês, não?

—Ainda não...

—E o beijo de agora há pouco? Quero dizer.... Gostaste? —quis saber Julián.

Ela relutou um pouco antes de responder:

—Está bem, gostei ...até mais do que deveria, mas gostei, porém, isso não quer dizer que confio em ti cem por cem...

—Pois deverias, foi meu primeiro beijo para valer também...

—Também? Como sabes que foi meu primeiro? Também não acredito que foi o teu...E o quer dizer “para valer”?

—Evelina, eu sei que foi e não minto...Quero dizer que foi um beijo de verdade. Antes eu só tinha beijado uma menina, e no rosto...E já faz muito tempo...

—Está bem...te creio. — E estacou na frente da porta de casa, sem palavras para definir o que estava sentindo e impetuosamente deu um beijo rápido em Julián despedindo-se:

—Nos vemos à noite...tenho que ajudar minha avó para a janta de logo mais...

—Nos vemos...—ele disse entre surpreso e contente.

Passados doze meses Evelina e Julián se casaram na Igreja de São Francisco em Viveiro numa cerimônia simples para uns poucos convidados da vizinhança e os parentes de Ferrol. O avô, depois de muitos copos de vinho durante a festa no pátio da casa chorou na despedida da neta, mesmo ela indo morar com o marido a poucas quadras dali. A avó foi voto vencido no quesito moradia.

Era uma casa simples recebida de presente pelo pai de Julián junto com o barco que ele passaria a trabalhar desde ali da Ría de Viveiro. Havia que fazer muitos reparos, mas eles estavam felizes por começarem uma vida juntos. Durante aqueles meses, eles puderam se conhecer melhor e Julián cumpriu com a palavra visitando Evelina todos os domingos.

Ele chegava sempre depois da missa das nove que ela ia junto com a avó, depois corria até o cais para esperá-lo. Um que outro domingo, se fazia mau tempo ele não aparecia, mas ela sabia o motivo e ficava rezando para que ele não tivesse embarcado antes das tempestades e estivesse em casa. Mesmo assim, na segunda-feira, ele mandava um recado ou uma carta por alguma embarcação informando como havia sido seu dia e perguntando por ela.

Num desses domingos quando estavam prestes a casar-se foram organizar a pequena casa que iam morar. Ficava numa ladeira íngreme do povoado e tinha apenas quatro cômodos, sala, cozinha e um quarto de banho na parte de baixo e o quarto de dormir na parte de cima. Havia um pátio interno atrás com jardim onde eles pretendiam plantar uma horta e flores.

Subiram ao quarto deles para guardar a roupa de cama junto a todo o enxoval de Evelina e ali entre carícias inadiáveis e toques há muito cobiçados por ambos, anteciparam entre nervosos e excitados sua lua-de-mel. Depois, Julián receoso do resultado daquele ato impensado, perguntou:

—Me deixaste seguir...Não há perigo de uma gravidez?

—Eu acho que não, porque estava com as regras até dois dias atrás e minha avó já me ensinou sobre algumas ervas que posso usar e nós já falamos sobre alguns métodos para evitar filhos. Não te preocupes. Gostei muito...E tu?

—Gostaste? Eu, claro...Gostei muito. Seremos muito felizes, tenho certeza...Te amo!

—Eu também te amo e melhor voltarmos à casa... e por favor disfarce esse seu sorriso quando chegar, minha avó pode perceber...

—E tu também...—repetiu Julián divertindo-se. Mas se ela perceber o que poderá fazer? Mais duas semanas e estaremos casados.

Assim Evelina e Julián começaram uma vida em comum naquele setembro de 1939. Julián cumpriu a promessa de levá-la consigo a navegar em alguns dias da semana e ela pôde aprender muito mais as artes da pesca e da navegação com seu marido, além de poderem estar mais tempo juntos. A convivência no trabalho e em casa proporcionou a ambos uma forma de relacionamento ímpar para aquela época cujo patriarcado, a religiosidade e a submissão da mulher eram a base daquela sociedade.  As pessoas estranhavam a atitude de Julián, pensavam que ele somente estava acatando um capricho passageiro da esposa e que ela logo se veria obrigada a abandonar quando viesse o primeiro filho.

Porém a decisão de não ter filhos era acordo tácito entre eles. Evelina tinha medo de engravidar e morrer deixando um filho sem mãe como ela. A avó temia o mesmo fim da neta, pensando que poderia ser alguma falha hereditária da família dela cujas tias também haviam morrido de parto. Julián em suas viagens fora do continente havia aprendido alguns truques de como as mulheres evitavam filhos naquela época, assim como a avó de Evelina tinha seus conhecimentos sobre plantas abortivas ou anticonceptivas: os brotos de acácia como espermicida natural, esponjas embebidas em vinagre, salmoura, suco de limão ou cera de abelhas. Tudo isso era oficialmente reprovado pela Igreja Católica que consentia o sexo—ao menos como dogma— somente como finalidade reprodutiva. Entretanto, mulheres como a avó de Evelina, mesmo religiosas, já praticavam seus conhecimentos, visando a evitar gravidezes simultâneas, mortes maternas decorrentes do parto e os altos índices de mortalidade infantil daquela época.

Evelina pensava, às vezes, que tinha tido muita sorte de encontrar um marido como Julián, já que mesmo não simpatizando à princípio com aquele destino feminino, apaixonou-se e nutria por ele além do amor romântico, uma amizade, um sentimento além do encontro físico entre homem e mulher. Era um encontro de almas. Eles tinham um convívio fácil e alegre, um cuidando do outro, não havia ciúmes, nem as costumeiras brigas que cresceu assistindo entre os avós.

A vida seguiu tranquila para o jovem casal, a guerra acabou e um dia o pai de Evelina apareceu de volta ao povoado com uma família, mulher e um menino de dois anos, empobrecidos, famintos e exaustos da viagem. Vinham da Catalunha e buscavam trabalho e acolhimento. Os avós acolheram com emoção e sem reservas o filho, pois já o consideravam morto. Temiam somente que ele estivesse sendo perseguido pelo governo, então trataram de não alardear muito a volta dele, o que se fazia um tanto impossível numa aldeia tão pequena. Porém, houve solidariedade entre os vizinhos que também trataram de ocultar dos desconhecidos a identidade daquela nova família que chegara de longe.

Antônio, Maria e o pequeno Victor foram instalados no antigo quarto de Evelina e o avô passou a dividir o trabalho e o barco com o filho, enquanto a nora passou a ajudar a sogra com os afazeres e o marisqueo. Antonio com o incentivo de Maria e dos pais tratou de reconciliar-se com a filha, provando que gostaria que o passado ausente ficasse para trás. Estava definitivamente vivendo outra vida e os acontecimentos de quase vinte anos estavam superados. Era mais feliz e a amargura de perder a primeira esposa havia sido substituída por uma singela saudade que estava personificada em Evelina, fisicamente igual à mãe.

O inverno de 42 foi particularmente frio, mais chuvoso, com mais borrascas no mar e os ventos atingiram fortemente aquela região litorânea galega. Os marinheiros já estavam dias sem sair ao mar, esperando que o tempo amainasse, porém, as semanas se alongavam e as borrascas não davam trégua. Foi numa madrugada de janeiro, Julián resolveu que deveria sair a trabalhar e reuniu outros companheiros em um mesmo barco para dividirem a pesca. Evelina ficou apreensiva com a decisão dele, mas já eram muitos dias parados e o mercado precisava ser abastecido, assim como eles precisavam de dinheiro. Em outros barcos sairiam também seu avô, seu pai e outros vizinhos todos para alto mar e fora da ría.

Antes de sair, Evelina pediu a Julián:

—Me leva contigo, assim não estarei aqui aflita te esperando...Eu conheço a situação.

—Nem pensar, fica em casa tranquila...sairemos somente até o final da ría. Não te preocupa, logo estaremos de volta. Sabes que tanto eu quanto teu avô já enfrentamos tempo ruim. — Beijou a mulher e foi descendo as escadas.

—Julián!! —chamou Evelina correndo atrás dele. —Te cuida, por favor! E beijou-lhe mais longamente.

—Fica tranquila, meu amor...Eu volto...

Julián e seus companheiros eram experientes e sabiam manejar os barcos nas tempestades, porém naquela madrugada, subitamente ventos muito fortes entraram pela ría formando altas ondas e muito movimento dos barcos. As embarcações foram surpreendidas por um temporal ainda mais violento que os dos últimos dias e dos sete barcos que estavam na zona, três foram atingidos brutalmente e afundaram com seus tripulantes. Entre eles estava o barco de Julián e seus companheiros. Naquele momento, cada embarcação fazia o que podia para safar-se, no entanto, Antonio viu quando o barco de Julián foi atingido e ele sumiu no mar. Os barcos estavam perto um do outro e ele pensou em saltar e retirar Julián das águas, mas seu pai o impediu, deu a entender que deveriam tratar de sair do meio daquele redemoinho que sugava tudo para o fundo do mar.

Assim, o barco de Julián e todos seus tripulantes desapareceram no meio das águas. O corpo dele foi encontrado somente uma semana depois entre as rochas de uma praia da ría de Viveiro. Evelina manteve esperanças de que o mar o devolveria vivo em alguma praia, ele era ótimo nadador e poderia ter sobrevivido ao naufrágio. Não podia crer que havia perdido o marido, o amor que tinha, um amor que nem sabia que existia até tê-lo vivido intensamente com Julián. Desesperou-se quando o corpo foi entregue à família e juntou-se aos sogros e cunhados naquele sofrimento indefinível.

Dois meses depois, Evelina estava morando com a família de Julián em Ferrol. Tinha a saúde debilitada pela perda e pela dor que sentia, quando percebeu que estava grávida e teve uma confusão de sentimentos. Se por um lado ficava feliz sabendo que carregava um filho de Julián, por outro tinha medo de deixar a criança sem mãe no momento do parto e outra pessoa passaria a criá-la, provavelmente a sogra. Passou a gravidez entre temerosa e o alento de que se morresse e houvesse vida eterna espiritual como propagava a religião da avó, sua morte serviria para encontrar-se novamente com Julián.

Por fim, sete meses depois nascia o pequeno Jose, que embora com todos os cuidados despendidos pela família no momento do parto, com a assistência de um médico e de uma parteira experiente, Evelina teve o mesmo fim das mulheres de sua família. Faleceu dois dias depois de febre puerperal, nem bem tinha completado vinte anos de idade.

Quando ela recuperou a lucidez depois das febres e seu espírito se energizava, viu seu filho no berço aos cuidados de sua sogra e avó chorosas, mas sentiu-se feliz e em paz, seu menino estaria bem cuidado como ela foi. Logo a seguir pressentiu o chamado de Julián vindo da Lanterna dos Afogados e foi para lá que ela correu.


1. O Morro dos Ventos Uivantes de Emily Brontë, clássico da literatura inglesa.

 

 

 

Comentários

  1. Adorei...muito interessante!!! A linguagem fluidica desperta a curiosidade...somente o final, achei muito triste....

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