Imagem: Global Gallerry, Diana Romanelli |
Evelina chegou
esgueirando-se perto do farol. Dali poderia avistar seu avô. Como muitas noites
da semana, sua avó a encarregava daquela amolação, tinha que buscar por ele na
Taberna da Lanterna. Às vezes, ele não estava ali e elas não tinham ideia de
seu paradeiro. Sua avó tinha desconfianças. Comumente ele estava e sempre
esquecia da hora na animação das conversas sobrepujadas pela bebida. Voltava trôpego,
alto de vinho, abraçado na neta e dando muitas risadas. Felizmente não era
violento, como muitos que ela via por ali em meio àquele ambiente ruidoso que
cheirava à álcool, presunto defumado e corpos sem banho.
A tarefa não era
fácil, pois ele remanchava até terminar seu último gole de vinho como se fosse um
líquido preciosíssimo e Evelina tinha que estar ali lembrando a todo momento
que sua vó o esperava em casa onde fatalmente ouviria a habitual refrega entre
eles. Ao mesmo tempo, tinha que enfrentar os olhares lascivos de alguns frequentadores da taberna que não a molestavam, mas somente porque o avô estava
presente e era uma pessoa conhecida e respeitada no lugar.
Ela tinha dezessete
anos e fora criada com os avós paternos. A mãe morrera no parto e o pai
acometido gravemente pela dor da perda da esposa, nunca chegou a olhar direito
para a filha, nem quando recém-nascida nem nos anos que se seguiram. Fazia três
anos que ele havia se juntado aos republicanos e a guerra civil era uma
realidade. Ninguém sabia nada do pai de Evelina, se estava morto ou vivo. Nada.
Para ela, seu pai
era aquele senhor marinheiro alto e forte que saía ao mar todas as madrugadas,
mesmo tendo ido dormir com a cabeça cheia de vinho e sua mãe aquela senhora
alquebrada e gentil que mariscava com as vizinhas para garantir mais algum
alimento para o dia. Quando a maré estava baixa elas saíam a colher berberechos,
almejas ou navajas remexendo no fundo arenoso da ría com suas enxadas
e ancinhos. Todos lutavam para ter o mínimo de comida na mesa naquela época de
muita fome no país inteiro.
Evelina não tinha
muitas ilusões para sua vida real, embora muitos sonhos povoassem seu
inconsciente. Nunca saíra de seu povoado e mal aprendera a ler, escrever e
fazer cálculos. Seu avô, por conseguinte, ocupara-se de ensinar-lhe tudo sobre
o mar, sobre barcos, sobre as marés, a nadar e a pescar sem importar-se que fosse a uma mulher. Depois que ela completou quinze anos a avó começou a encorajá-la
para que escolhesse logo um marido. Seria um homem a mais para trazer comida
para dentro de casa, já que faria tudo para que eles continuassem morando todos
juntos.
Porém, Evelina ainda
não tinha despertado interesse por rapazes. Sabia por algumas amigas algo sobre
namoros e casamentos e o que sabia bastava para ainda rejeitar a ideia. Seus
dias passavam entre os afazeres da casa ajudando a avó, buscando água na mesma
fonte onde lavava as roupas da família, limpando, costurando redes de pesca ou
fazendo algum bordado para um enxoval que precisava ser providenciado, mesmo
que ainda não houvesse nem sombra de noivo. Quando podia escapar da vigilância
da avó e das muitas tarefas que lhe cabia, ela saía a andar pela beira da
praia, assistindo amanheceres, pores de sol e divagando sobre outros mundos e
outras vidas possíveis.
O avô de Evelina achava
cedo para que ela se casasse, planejava que ela um dia saísse ao mar
com ele e lhe ajudasse no trabalho, mas sabia que haveria muita
resistência por parte de sua mulher. Além do mais, os homens jovens estavam
ficando escassos por ali. Muitos tinham sido convocados para lutar ao lado dos
monarquistas nacionalistas, outros, como o pai de Evelina, foram aumentar as
fileiras dos republicanos naquele conflito histórico que gerou a guerra civil
espanhola entre os anos de 1936 e 1939.
Assim que a
freguesia da Lanterna estava limitada à homens mais velhos, mulheres sozinhas ou
órfãs cujos pais ou maridos foram cooptados pela guerra—não lhes restando mais
que oferecer-se aos frequentadores masculinos para sobreviver— ou mesmo as
muitas esposas que vinham ali em busca de seus maridos impertinentes viciados
em álcool. Seguidamente Evelina presenciava ali brigas entre casais ou entre homens
disputando mulheres. Afortunadamente, o taberneiro era de boa índole, e logo interferia
nas altercações impedindo acontecimentos mais graves em seu estabelecimento.
Aquela era uma
noite fria de novembro e o mar estava calmo depois de uma breve tormenta
na parte da tarde. Quando havia vento e prenúncio de tempestade o farol era fortemente
alvejado pelas ondas e muitas vezes, quando passava por ali Evelina saía
respingada de água e, com as roupas tão úmidas que lhe entranhava um frio até
os ossos. Ela gostava dos arredores do farol, era um lugar silencioso, nunca
encontrara ninguém por ali e era para onde ia quando não queria ser encontrada,
tanto de dia quanto de noite. Era como se fosse um lugar só seu.
Ela dirigiu-se à
taberna e da entrada logo viu seu avô sentado no balcão. Naquela noite parecia
mais lúcido, tinha o semblante mais sóbrio, os olhos sem o brilho da embriaguez
e conversava sobre a guerra. Ele expunha suas opiniões abertamente a favor dos
republicanos e da segunda República. O lugar estava cheio e havia muitas rodas
de conversas. Evelina percebeu que ele falava com um grupo de desconhecidos, um senhor e dois jovens.
Parou ao lado do avô e
ficou ouvindo a conversa. Era com pai e dois filhos, pescadores vindos de Ferrol que estavam ali escapando da tempestade da
tarde em alto mar. Ficariam alojados em Celeiro naquela noite. Um dos jovens
era quase um adolescente imberbe. O mais velho teria uns vinte ou vinte e
poucos anos e chamou a atenção dela. Ele era bonito, tinha um olhar muito azul,
meio perdido, não falava nada e logo que ela parou ao lado do avô, eles
trocaram olhares tímidos. Felizmente, naquela noite ela não teve dificuldades
para terminar sua tarefa. Depois de uns minutos, o avô tratou de encerrar a
conversa com a família de marinheiros e foram para casa. Antes de deixar a
taberna, Evelina despediu-se do jovem com um movimento de cabeça.
Na manhã seguinte, ela
estava andando pela praia e avistou os dois rapazes que tinha visto na Lanterna
na noite anterior. Estavam consertando o barco que tinha sido avariado com a
tempestade. Passou por eles devagar e se sentou na borda do cais onde sempre
costumava ficar admirando o mar. O sol apenas havia despontado e não havia
nuvens, embora a temperatura baixa da noite ainda persistia. Ela fechou o
casaco marrom tricotado à mão e empurrou a barra do vestido de lã para bem
abaixo dos joelhos, enquanto se sentava. Passados uns minutos, o jovem mais
velho, ao mesmo tempo que fazia sua tarefa, parecia perturbado com a presença
de Evelina ali tão perto, vendo-a de costas sentada no cais. Os cabelos de um
tom castanho acobreado lhe caíam até pouco mais dos ombros e o topo da cabeça
estava coberto por uma touca de lã azul marinho.
Num dado momento,
ela se levantou, aproximou-se e disse:
—Hoje vocês poderão
voltar, não há mar de fundo e não há risco de tempestade.
—E como sabes? —
perguntou-lhe o rapaz timidamente.
—Conheço o mar.
—Eu pensava que
conhecia também, mas ontem ele nos pilhou.
—Ele é inconstante,
precisa ser observado com prudência e calma.
E despediu-se.
Antes de dar a volta para seguir, ouviu o rapaz dizer:
—Está faltando uma
peça para consertar o barco. Meu pai foi buscar em Viveiro. Vamos ficar mais
essa noite aqui. —disse o rapaz de maneira impulsiva, espantando-se consigo
mesmo pela atitude que instintivamente teve de passar aquela informação para a moça.
Ela pareceu
entender o recado, porque seguiu seu caminho sem assentir, nem nada, somente com
um leve sorriso nos lábios e uma sensação de borboletas roçando seu estômago.
Algo que nunca havia sentido.
Naquela noite, como
em todas, Evelina saiu em direção à taberna com um ânimo diferente, estranhando
a avó. Chegando perto do farol não enxergou nem vulto do avô o que na verdade
contribuía para estar ali mais livremente e, pela primeira vez por questões
particulares. Antes de entrar sondou o ambiente de fora da porta dissimulando procurar
alguém. Entrou hesitante, porém o taberneiro logo avisou que seu avô não
estava. Nesse momento avistou o jovem marinheiro numa das mesas jantando com o
pai e o irmão. Ele também a viu.
Enquanto ela tentava
dar meia volta depois do aviso do taberneiro, um homem desconhecido abordou-a, passou-lhe
a mão pela cintura, enquanto lhe propunha sair e lhe empurrava grosseiramente
para fora da taberna. No mesmo instante tanto o taberneiro como o jovem
marinheiro pularam em cima do homem, impedindo que ele continuasse a importunar
Evelina. Nisso, ela saiu correndo e escondeu-se no farol. Pensou que deveria
continuar por perto, de um ponto em que pudesse ver o movimento da taberna sem
ser vista. Depois de alguns minutos ela percebeu que o homem, visivelmente
embriagado, tinha sido advertido pelo taberneiro e o ambiente havia acalmado. Logo
depois o jovem marinheiro saía sozinho vindo em direção ao lugar onde ela estava.
—Ei, olá...Estás
bem? —Perguntou ele em voz alta, antes
ainda de poder vê-la na escuridão.
—Como sabia que eu
estava escondida aqui? —Evelina apareceu devagar vindo das sombras.
—Eu vi quando
saíste correndo para cá.
—Obrigada por
afastar aquele homem. Geralmente ninguém me importuna, mas hoje não encontrei
meu avô e aquele homem é desconhecido por aqui. Ele pensou que eu fosse uma daquelas
mulheres que procuram homens na taberna.
—Mesmo assim ele
não tem o direito de sair agarrando toda a mulher que aparece, e tu és pouco
mais que uma adolescente.
—Já tenho dezessete
anos, muitas mulheres já estão casadas com a minha idade.
—Eu sei...Mesmo
assim, deveria haver mais respeito por parte dos homens.
—Os homens só
respeitam suas mães, filhas e irmãs...Às vezes, nem estas...
—O taberneiro é teu
parente? Ele te protegeu...
—Não, é amigo de
meu avô e me conhece desde criança. É um bom homem.
—Teu avô me pareceu
um bom homem também...A verdade é que nem todos são desprezíveis.
—A maioria dos homens trata as mulheres como inferiores e são consideradas presas fáceis para eles, são feitas para serem caçadas. Já estou acostumada e sei me defender.
Meu avô me ensinou, mesmo assim te agradeço.
—É verdade e vejo que
tens coragem também.
—Instinto de sobrevivência. Agora
tenho que ir, não encontrei meu avô. Hoje é daquelas noites que ele fica sumido.
Minha avó pensa que ele está com outra mulher.
—Queres que te acompanhe até tua
casa? Estarás em segurança, não sou como todos...
Ela deu de ombros,
mas com o coração aos saltos e a boca do estômago povoada de bichos de asas, disse
tentando dissimular a perturbação:
—Se queres...—e
seguiram andando devagar lado a lado. —Já conseguiram consertar o barco?
—Amanhã finalizamos
e seguimos viagem de volta.
—E vocês costumam
navegar por esta ría?
—Sim, além das
proximidades de Ferrol, às vezes saímos mais longe...
—Quer dizer que
poderão voltar outra vez?
—Certamente. Já
estivemos outras vezes aqui, mas é a primeira vez que temos que pernoitar.
—Pois nunca tinha
te visto.
—Eu tampouco.
—Moro aqui. Obrigada.
Tenho que entrar. — Ela disse estacando numa porta grande de madeira num dos
casarios do povoado.
—Me chamo Julián. E
tu?
—Evelina.
—Gostas de ler,
Evelina?
—Gosto, mas aqui se
lê pouco, não há nada para ler a não ser as páginas de periódicos e revistas
velhas que minha avó trás embrulhando as compras da venda da esquina. Às vezes
tenho sorte que há um pequeno conto inteiro numa página que eu desamasso e
leio.
—Pois da próxima
vez que eu vier te trago um livro.
—Nunca li um livro
inteiro...E sobre que é?
—Ainda não sei. Eu
tenho alguns em casa, vou escolher uma novela leve e alegre.
—E por quê?
—Por que o quê?
—Por que me
acompanhaste até aqui e agora diz que volta e vai me trazer algo?
—Não sei..., mas eu
sei que vou voltar até aqui à tua porta.
—Bem, tenho que
entrar. —Ela disse um pouco embaraçada. Até outro dia, Julián.
—Até outro dia,
Evelina.
Na manhã seguinte, seus avós ainda dormiam, ela teve um ímpeto de sair correndo à praia logo cedo com esperança de ver Julián pela última vez. Quando ela chegou ao cais, viu o barco deles se afastando. Só ficaram se olhando de longe, sem um aceno, sem nada para não despertar a atenção dos outros tripulantes.
A rotina de Evelina
seguiu sem mudar absolutamente nada, somente um sentimento estranho e
indescritível passou a acompanhar-lhe depois daquele brevíssimo encontro com o
jovem marinheiro. Passados seis meses, já era primavera e ela estava em casa
pela hora da sesta, entre entediada e relaxada bordando toalhas, quando bateram
na porta. Era Julián.
—Olá, Evelina.
Ainda lembra de mim?
—Quase que
não...Demoraste demasiado a voltar. — Ela disse depois de uns segundos de surpresa
e alvoroço, simulando contrariedade.
—Desculpa,
estivemos navegando muito longe daqui. Voltamos há pouco de Terra Nova. Posso
entrar?
—Claro. Minha avó
está recostada e dormita essa hora e meu avô está no cais ajudando um amigo a
consertar barcos.
—Eu sei, encontrei
com ele ali e pedi permissão para vir te visitar. Toma, aqui está o livro que
te prometi. — Disse Julián entregando uma pequena brochura antiga com páginas
amareladas, enquanto se sentavam num banco de madeira que havia na sala da
casa.
—Las cumbres
borrascosas¹ de Emily Brönte? — Evelina leu devagar o nome da autora.
—É um romance do
século passado de uma escritora inglesa. Comprei lá em Terra Nova num comércio
local e me chamou atenção que estava traduzido ao espanhol. Já li e penso que
vais gostar.
—Muito obrigada.
Nunca ganhei um livro de presente. E onde fica Terra Nova? —perguntou, enquanto
acariciava a capa e as páginas, passando os dedos devagar pelo papel.
—Terra Nova fica na
América do Norte, é uma grande ilha que pertence ao Canadá e estivemos ali meu pai e eu trabalhando num grande pesqueiro espanhol.
—E que língua falam
lá?
—Inglês e francês,
mas eu não entrei muito em contato com eles, não entendia nada que diziam...Estivemos
pouco em terra.
Nisso, a avó de
Evelina apareceu descendo as escadas.
—Vovó, esse é
Julián. Nos conhecemos um dia na taberna, quando fui atrás do avô....
—Boa tarde, senhora.
— Disse Julián levantando-se rapidamente.
—Boa tarde...E dirigindo-se
à neta. — E teu avô o conhece?
—Sim...—preferiu
responder Julián. Nos vimos mais que uma vez e creio que ele conhece a meu pai
de Ferrol. Também somos pescadores.
—Ah...De Ferrol? Meu
marido já foi muitas vezes a Ferrol. Aqui nesta região quem não pesca, não
come... Convide seu amigo para jantar, Evelina. Mas antes vão dar um passeio
pela praia, tenho que sair e seu avô, sabes bem, que tão cedo não aparece.
Assim que não fica bem uma moça e um rapaz solteiros sozinhos dentro de casa. A
vizinhança repara.
Assim os dois saíram
andando devagar em direção à praia.
—Semana que vem
faço dezoito anos. Assim que o livro já o considero como um presente de
aniversário.
—Ah, sim? Pois na
semana que vem tratarei de voltar se me convidares para a festa.
—Não haverá festa. Esta
data não é muito festiva para minha família, pois foi quando morreu minha mãe e
meu pai nunca superou. No máximo minha avó vai fazer um almoço e sobremesa mais
caprichados e meu avô não vai sair para o mar. Agora mais que nunca ela vai
querer que eu busque um marido. Não gosta da ideia de que eu comece a embarcar
com meu avô, como ele pretende me levar logo...
—E tu conheces as
lides do mar? Sabes que não é um trabalho comum para mulheres, não? Irias sem
receios?
—Meu avô me ensinou
tudo e como meu pai sumiu há anos, não tem ninguém para ajudá-lo. Sim, eu iria.
Prefiro do que ficar limpando, lavando e bordando.
—Meu pai também
quer que eu me case logo. Sempre diz que um homem tem que ter uma mulher para cuidar,
ter filhos e outra para divertir-se. Eu, na verdade só quero uma para amar...Se
encontrar...
—Pois vais te
distinguir dos outros homens. Todos têm mais que uma mulher na vida, enquanto
às mulheres lhes obrigam a casar até com quem não querem e lhes impõem
fidelidade, senão ficam mal faladas.
—É verdade...Quer
dizer que na próxima semana veremos uma marinheira na faina dos barcos com o
avô?
—Não sei...Tenho muitas
tarefas em casa, e minha avó não pode com tudo...Assim que não é uma decisão
fácil para meu avô, eu entendo...talvez começaria somente alguns dias da
semana. E tu, deixaria tua mulher te acompanhar no mar?
— Me acompanhar,
creio que sim, mas sair sozinha a pescar, não sei...o trabalho é árduo e às
vezes perigoso, sabes como é o mar... Olha, ali estão meu pai e teu avô.
Ambos se acercaram
aos dois senhores marinheiros e eles esboçaram o mesmo sentimento de satisfação
ao verem neta e filho passeando juntos. O avô de Evelina já havia feito o mesmo
convite para que fossem jantar em sua casa na mesma noite, assim que os jovens
ficaram contentes de poder estarem juntos sem a implicância de algum familiar o
que era bastante comum naquela época de muita vigilância e repressão dentro das
famílias.
Evelina e Julián
seguiram o passeio até a praia, andaram um pouco pela areia depois sentados na
escadaria de pedra do cais, ela perguntou:
—Quantos anos tens,
Julián?
—21.
—E tua mãe, está em
Ferrol?
—Sim, moramos perto
do porto na vila dos marinheiros, chama-se Irene e tenho uma irmã menor, está
com 13 anos, se chama Carmiña e meu irmão do meio é Enrique, acabou de fazer 15
anos.
—Deve ser bom ter
irmãos, uma família completa...E que pretendes fazer com tua vida?
—Pois o mesmo que
meu pai, pescar, sair ao mar... Se tivesse algum dinheiro iria a capital
estudar, mas ainda não tenho condições. Talvez , um dia...Meu pai herdou algumas vinhas de meu
avô, mas não gosta da agricultura e é minha mãe e dois empregados que
se encarregam da vindima. Assim que não somos ricos e tampouco miseráveis.
—Tiveste sorte que
ainda não te chamaram para lutar junto aos monarquistas.
—Não vão me chamar.
Meu pai tem uma certa influência na região, embora seja contra eles...E eu não
quero participar de uma guerra entre irmãos, embora eu ache que a luta é
relevante e importante para o país. Somos todos espanhóis e as desigualdades e
as lutas dos trabalhadores devem ser enfrentadas como asseguram os idealistas,
como deve ser teu pai. Além do mais, os monarquistas cooptam somente gente
muito pobre para suas fileiras ou os que já têm uma carreira no exército. Não prestei serviço militar, porque na época meu pai teve um problema de saúde e
atestei que eu era arrimo de família. Os republicanos estão ali por convicção e
idealismo. Não é meu caso, nem um, nem outro.
—Eu não entendo bem
do tema, só sei que meu avô também é contra a monarquia. Meu pai sumiu há uns
três anos e nem sabemos se está vivo ou morto. Dizem que ele se apegou a esses
ideais políticos mais por ter pelo que viver. É um homem muito amargurado.
Nunca o vi sorrir ou desfrutar de algo. Acho que me odeia, porque pensa que fui
responsável pela morte de minha mãe. Sei que não fui. Muitas mulheres morrem de
parto. Minha avó já me explicou isso muitas vezes, e se um dia me casar não vou
querer ter filhos.
—E como faríamos
para isso não acontecer? — Disse Julián num impulso, aproveitando o assunto.
—Faríamos?
—Sim...Se nos
casássemos terias que me dizer como faríamos para que não tivéssemos filhos. Eu
tenho algumas ideias, mas queria saber as tuas...
—Julián, esta é a
segunda vez que nos vimos!!! Como podes falar em casamento?? Mal nos
conhecemos!!! E nunca falei sobre essas questões a não ser com minha avó!!
—Eu te entendo, me desculpa a pergunta intempestiva. Mas não precisa
ser para amanhã, nem para o mês que vem.... Eu poderia esperar...um pouco..., mas não
muito, um ano, pensas que estaria bem para nos conhecermos melhor? —perguntou Julián
encorajado.
—Não sei, me
pegaste de surpresa...na verdade, desde que fostes atrás de mim no farol
naquela noite e durante esses seis meses pensei muito em ti, mas não te
conheço...precisamos nos conhecer melhor...Além do mais não estou atrás de
marido como quer minha avó e a maioria das amigas de minha idade.
—Concordo que mal
nos conhecemos, podemos esperar e te prometo vir aqui te ver uma vez por semana a partir de agora. Falo com teu avô essa noite mesmo, se me permitires. Eu nunca mais te esqueci
esse tempo todo desde que te vi entrar naquela taberna. — E deram-se as mãos
devagar e ensaiaram tímidos um primeiro beijo de amor ali sentados nas pedras
do cais.
—Vamos, tenho que
ajudar minha avó com o jantar. Ela vai ficar contente em saber que já tenho um
noivo antes de completar os dezoito...—disse Evelina sorrindo, um pouco
embaraçada com a situação.
—Aceitas, então?
—Aceito um noivado
primeiro, se me prometes vir sempre...Depois, veremos...
—Te prometo. Se eu
pudesse me mudava a Celeiro hoje mesmo e estaríamos mais perto, mas preciso
conversar com meu pai, organizar algumas coisas.
Saíram andando em
direção à casa e continuaram a conversa.
—Que coisas? — Quis
saber ela.
—Por exemplo, onde
vamos morar, se aqui ou em Ferrol, se consigo um barco para trabalhar, como
vamos viver, enfim...
—Calma, eu ainda
não disse que vou casar contigo, também preciso saber se sendo tua mulher
poderia embarcar como gostaria meu avô...
—Esse é um pedido
um pouco raro partindo de uma noiva...
—Mas terás que
considerar, se queres casar comigo...poderíamos sair para o mar juntos todas as
manhãs...
—E quem se ocuparia
da casa?
—Ora, nós dois...!!
Lembre-se que não haverá crianças...
—Não sei, isso me
soa um pouco estranho...Teremos que falar sobre isso mais detalhadamente.
—Pois se vieres
todas as semanas como estás dizendo, teremos muito tempo para conversar...
—Não me crês, não?
—Ainda não...
—E o beijo de agora
há pouco? Quero dizer.... Gostaste? —quis saber Julián.
Ela relutou um
pouco antes de responder:
—Está bem, gostei
...até mais do que deveria, mas gostei, porém, isso não quer dizer que confio
em ti cem por cem...
—Pois deverias, foi
meu primeiro beijo para valer também...
—Também? Como sabes
que foi meu primeiro? Também não acredito que foi o teu...E o quer dizer “para
valer”?
—Evelina, eu sei
que foi e não minto...Quero dizer que foi um beijo de verdade. Antes eu só
tinha beijado uma menina, e no rosto...E já faz muito tempo...
—Está bem...te
creio. — E estacou na frente da porta de casa, sem palavras para definir o que estava sentindo e impetuosamente deu um beijo rápido em Julián despedindo-se:
—Nos vemos à
noite...tenho que ajudar minha avó para a janta de logo mais...
—Nos vemos...—ele
disse entre surpreso e contente.
Passados doze meses
Evelina e Julián se casaram na Igreja de São Francisco em Viveiro numa
cerimônia simples para uns poucos convidados da vizinhança e os parentes de
Ferrol. O avô, depois de muitos copos de vinho durante a festa no pátio da casa
chorou na despedida da neta, mesmo ela indo morar com o marido a poucas quadras
dali. A avó foi voto vencido no quesito moradia.
Era uma casa
simples recebida de presente pelo pai de Julián junto com o barco que ele
passaria a trabalhar desde ali da Ría de Viveiro. Havia que fazer muitos
reparos, mas eles estavam felizes por começarem uma vida juntos. Durante
aqueles meses, eles puderam se conhecer melhor e Julián cumpriu com a palavra
visitando Evelina todos os domingos.
Ele chegava sempre depois da missa das nove que ela ia junto com a
avó, depois corria até o cais para esperá-lo. Um que outro domingo, se fazia mau
tempo ele não aparecia, mas ela sabia o motivo e ficava rezando para que ele
não tivesse embarcado antes das tempestades e estivesse em casa. Mesmo assim,
na segunda-feira, ele mandava um recado ou uma carta por alguma embarcação
informando como havia sido seu dia e perguntando por ela.
Num desses domingos quando estavam prestes a casar-se foram
organizar a pequena casa que iam morar. Ficava numa ladeira íngreme do povoado e
tinha apenas quatro cômodos, sala, cozinha e um quarto de banho na parte de
baixo e o quarto de dormir na parte de cima. Havia um pátio interno atrás com
jardim onde eles pretendiam plantar uma horta e flores.
Subiram ao quarto deles para guardar a roupa de cama junto a todo
o enxoval de Evelina e ali entre carícias inadiáveis e toques há muito
cobiçados por ambos, anteciparam entre nervosos e excitados sua lua-de-mel.
Depois, Julián receoso do resultado daquele ato impensado, perguntou:
—Me deixaste seguir...Não há perigo de uma gravidez?
—Eu acho que não, porque estava com as regras até dois dias atrás
e minha avó já me ensinou sobre algumas ervas que posso usar e nós já falamos
sobre alguns métodos para evitar filhos. Não te preocupes. Gostei muito...E tu?
—Gostaste? Eu, claro...Gostei muito. Seremos muito felizes, tenho
certeza...Te amo!
—Eu também te amo e melhor voltarmos à casa... e por favor
disfarce esse seu sorriso quando chegar, minha avó pode perceber...
—E tu também...—repetiu Julián divertindo-se. Mas se ela perceber o
que poderá fazer? Mais duas semanas e estaremos casados.
Assim Evelina e Julián
começaram uma vida em comum naquele setembro de 1939. Julián cumpriu a promessa
de levá-la consigo a navegar em alguns dias da semana e ela pôde aprender muito
mais as artes da pesca e da navegação com seu marido, além de poderem estar
mais tempo juntos. A convivência no trabalho e em casa proporcionou a ambos uma
forma de relacionamento ímpar para aquela época cujo patriarcado, a religiosidade
e a submissão da mulher eram a base daquela sociedade. As pessoas estranhavam a atitude de Julián,
pensavam que ele somente estava acatando um capricho passageiro da esposa e que
ela logo se veria obrigada a abandonar quando viesse o primeiro filho.
Porém a decisão de
não ter filhos era acordo tácito entre eles. Evelina tinha medo de engravidar e
morrer deixando um filho sem mãe como ela. A avó temia o mesmo fim da neta,
pensando que poderia ser alguma falha hereditária da família dela cujas tias
também haviam morrido de parto. Julián em suas viagens fora do continente havia
aprendido alguns truques de como as mulheres evitavam filhos naquela época,
assim como a avó de Evelina tinha seus conhecimentos sobre plantas abortivas ou
anticonceptivas: os brotos de acácia como espermicida natural, esponjas
embebidas em vinagre, salmoura, suco de limão ou cera de abelhas. Tudo isso era
oficialmente reprovado pela Igreja Católica que consentia o sexo—ao menos como
dogma— somente como finalidade reprodutiva. Entretanto, mulheres como a avó de
Evelina, mesmo religiosas, já praticavam seus conhecimentos, visando a evitar
gravidezes simultâneas, mortes maternas decorrentes do parto e os altos índices
de mortalidade infantil daquela época.
Evelina pensava, às
vezes, que tinha tido muita sorte de encontrar um marido como Julián, já que
mesmo não simpatizando à princípio com aquele destino feminino, apaixonou-se e
nutria por ele além do amor romântico, uma amizade, um sentimento além do
encontro físico entre homem e mulher. Era um encontro de almas. Eles tinham um
convívio fácil e alegre, um cuidando do outro, não havia ciúmes, nem as
costumeiras brigas que cresceu assistindo entre os avós.
A vida seguiu
tranquila para o jovem casal, a guerra acabou e um dia o pai de Evelina
apareceu de volta ao povoado com uma família, mulher e um menino de dois anos,
empobrecidos, famintos e exaustos da viagem. Vinham da Catalunha e buscavam
trabalho e acolhimento. Os avós acolheram com emoção e sem reservas o filho,
pois já o consideravam morto. Temiam somente que ele estivesse sendo perseguido
pelo governo, então trataram de não alardear muito a volta dele, o que se fazia
um tanto impossível numa aldeia tão pequena. Porém, houve solidariedade entre
os vizinhos que também trataram de ocultar dos desconhecidos a identidade
daquela nova família que chegara de longe.
Antônio, Maria e o
pequeno Victor foram instalados no antigo quarto de Evelina e o avô passou a
dividir o trabalho e o barco com o filho, enquanto a nora passou a ajudar a
sogra com os afazeres e o marisqueo. Antonio com o incentivo de Maria e
dos pais tratou de reconciliar-se com a filha, provando que gostaria que o
passado ausente ficasse para trás. Estava definitivamente vivendo outra vida e
os acontecimentos de quase vinte anos estavam superados. Era mais feliz e a
amargura de perder a primeira esposa havia sido substituída por uma singela
saudade que estava personificada em Evelina, fisicamente igual à mãe.
O inverno de 42 foi
particularmente frio, mais chuvoso, com mais borrascas no mar e os ventos
atingiram fortemente aquela região litorânea galega. Os marinheiros já estavam
dias sem sair ao mar, esperando que o tempo amainasse, porém, as semanas se alongavam
e as borrascas não davam trégua. Foi numa madrugada de janeiro, Julián resolveu
que deveria sair a trabalhar e reuniu outros companheiros em um mesmo barco
para dividirem a pesca. Evelina ficou apreensiva com a decisão dele, mas já
eram muitos dias parados e o mercado precisava ser abastecido, assim como eles
precisavam de dinheiro. Em outros barcos sairiam também seu avô, seu pai e
outros vizinhos todos para alto mar e fora da ría.
Antes de sair, Evelina pediu a Julián:
—Me leva contigo, assim não estarei aqui aflita te esperando...Eu
conheço a situação.
—Nem pensar, fica em casa tranquila...sairemos somente até o final
da ría. Não te preocupa, logo estaremos de volta. Sabes que tanto eu quanto teu
avô já enfrentamos tempo ruim. — Beijou a mulher e foi descendo as escadas.
—Julián!! —chamou Evelina correndo atrás dele. —Te cuida, por
favor! E beijou-lhe mais longamente.
—Fica tranquila, meu amor...Eu volto...
Julián e seus
companheiros eram experientes e sabiam manejar os barcos nas tempestades, porém
naquela madrugada, subitamente ventos muito fortes entraram pela ría formando
altas ondas e muito movimento dos barcos. As embarcações foram surpreendidas
por um temporal ainda mais violento que os dos últimos dias e dos sete barcos
que estavam na zona, três foram atingidos brutalmente e afundaram com seus
tripulantes. Entre eles estava o barco de Julián e seus companheiros. Naquele
momento, cada embarcação fazia o que podia para safar-se, no entanto, Antonio
viu quando o barco de Julián foi atingido e ele sumiu no mar. Os barcos estavam
perto um do outro e ele pensou em saltar e retirar Julián das águas, mas seu
pai o impediu, deu a entender que deveriam tratar de sair do meio daquele
redemoinho que sugava tudo para o fundo do mar.
Assim, o barco de Julián
e todos seus tripulantes desapareceram no meio das águas. O corpo dele foi
encontrado somente uma semana depois entre as rochas de uma praia da ría de
Viveiro. Evelina manteve esperanças de que o mar o devolveria vivo em alguma
praia, ele era ótimo nadador e poderia ter sobrevivido ao naufrágio. Não podia
crer que havia perdido o marido, o amor que tinha, um amor que nem sabia que
existia até tê-lo vivido intensamente com Julián. Desesperou-se quando o corpo
foi entregue à família e juntou-se aos sogros e cunhados naquele sofrimento
indefinível.
Dois meses depois,
Evelina estava morando com a família de Julián em Ferrol. Tinha a saúde
debilitada pela perda e pela dor que sentia, quando percebeu que estava grávida
e teve uma confusão de sentimentos. Se por um lado ficava feliz sabendo que
carregava um filho de Julián, por outro tinha medo de deixar a criança sem mãe
no momento do parto e outra pessoa passaria a criá-la, provavelmente a sogra. Passou
a gravidez entre temerosa e o alento de que se morresse e houvesse vida eterna
espiritual como propagava a religião da avó, sua morte serviria para
encontrar-se novamente com Julián.
Por fim, sete meses
depois nascia o pequeno Jose, que embora com todos os cuidados despendidos pela
família no momento do parto, com a assistência de um médico e de uma parteira
experiente, Evelina teve o mesmo fim das mulheres de sua família. Faleceu dois
dias depois de febre puerperal, nem bem tinha completado vinte anos de idade.
Quando ela recuperou
a lucidez depois das febres e seu espírito se energizava, viu seu filho no
berço aos cuidados de sua sogra e avó chorosas, mas sentiu-se feliz e em paz, seu
menino estaria bem cuidado como ela foi. Logo a seguir pressentiu o chamado de
Julián vindo da Lanterna dos Afogados e foi para lá que ela correu.
1. O Morro dos Ventos Uivantes de Emily Brontë, clássico da literatura inglesa.
Adorei...muito interessante!!! A linguagem fluidica desperta a curiosidade...somente o final, achei muito triste....
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