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Agora moras em mim


                                                                  
Foto: Arquivo Pessoal


2020 foi o primeiro ano da pandemia, o ano do confinamento, quando a vida paralisou e o mundo foi impactado por uma enfermidade desconhecida, quando pensávamos estar definitivamente a salvo das doenças infecciosas em pleno século XXI. No entanto, minha vida já havia sido afetada desde o final de 2018 por outra enfermidade que existe desde que o mundo é mundo e que a ciência ainda não conseguiu descobrir a cura completa, tal é a complexidade desse mal chamado câncer.

Alguns familiares meus foram contaminados, mas não perdi ninguém para a Covid-19 —e espero não perder, pois a pandemia ainda não acabou. No entanto, perdi meu marido para o câncer depois de um longo tratamento que em diversas ocasiões era pura tortura. O sofrimento pelo qual ele passou é indefinível com palavras. A equipe médica desde o princípio emitia falsas esperanças, talvez para cumprir protocolos, até que um dia falaram a verdade. Não havia cura, o caso dele era complexo e grave, segundo uma das oncologistas, a que ousou ser realista, provocando o luto familiar antecipado. Em meados de junho ela deu-lhe poucos dias de vida, no entanto ele veio a falecer em outubro já no setor de Cuidados Paliativos.

Lembro aqui que a pandemia não nos afetou, mesmo estando morando num dos primeiros países da Europa a ser extremamente contaminado pelo vírus depois da Itália. Até tenho uma saudade especial de quando via os noticiários da televisão espanhola com as imagens de pessoas aplaudindo profissionais de saúde desde suas sacadas e dos milhares de vídeos que foram gravados por músicos mundo afora para manter a população animada, mesmo com as notícias de tantas mortes, tanta contaminação e tanta dor. Isso foi quando a esperança ainda estava viva.

Muitas famílias, casais, amigos se viram da noite para o dia separados pelos decretos de confinamento, pela proibição de viagens e de livre mobilidade. Isso também não nos afetou e tenho estas boas lembranças do confinamento, porque estávamos juntos. Posso dizer, sem sombra de dúvida, 2020 foi o último ano feliz de nossas vidas, pois passamos lado a lado e o câncer ainda não tinha mostrado sua cara mais terrível. E o mais importante, digo de novo, a esperança estava viva, apesar da pandemia.

Em setembro vai fazer 10 anos que tive a felicidade de conhecer J. Minha vida mudou completamente naquele 2012. Desde ali nunca passamos um dia sequer sem nos falar, de longe ou de perto, pois até 2014 ficamos pulando de país por diversas vezes—ora ele vinha, ora eu ia para breves encontros até que pudéssemos estar juntos em definitivo. Porém nunca imaginei outra mudança tão drástica e violenta em tão poucos anos, depois de tê-lo perdido nesse final de 2021.

Com J. aprendi o significado de muitas coisas, principalmente do amor romântico, incondicional, verdadeiro e da igualdade entre os sexos. Percebi o quanto vivi e cresci imersa no machismo encoberto do meu país. Reconsiderei algumas opiniões e conceitos sobre a vida, o mundo e a justiça. Compartilhamos experiências de vida, nos valorizamos mutuamente, cicatrizamos nossas feridas antigas, enquanto mesclávamos nossas culturas absorvendo as coisas boas e nos divertindo com coisas bizarras de cada lado. Enfim, vivemos plenamente, sonhamos, sorrimos e fomos felizes. Merecíamos uma convívio maior, tínhamos planos, tínhamos muita vontade de viver, de correr o mundo e não sei até quando vou carregar as sequelas dessa perda. 

É por isso que escrevo, para amortecer a dor. Às vezes mando mensagens ao perfil dele no Instagram— única rede que não consegui transformar em memorial— pedindo que me mande um sinal. Quando ele estava saudável, nunca me deixava sem resposta. Era meu mais fiel seguidor. Uma presença constante. Agora é só silêncio. Um dia a esperança foi morrendo aos poucos, até que ela morreu primeiro e vivi o luto antecipatório como é comum nas enfermidades graves —só que algumas sociedades não reconhecem. Depois ele seguiu. Agora ele mora em mim. E a esperança, não sei para onde ela foi.








Comentários

  1. Bela e triste história, minha amiga...me faz lembrar de tantas outras...

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