Monção, Portugal - arquivo pessoal |
Evelina vislumbrou seu próprio corpo sem vida na cama daquele precário hospital espanhol do começo da década de 40. Havia acabado de dar à luz. O bebê tinha sobrevivido e dava pequenos murmúrios alheio à morte da mãe no colo da bisavó que chorava num misto de alegria e tristeza. Apesar de ver seu corpo inerte e o rosto pálido daquela perspectiva extracorpórea, ela sentia que tinha outro corpo, mais leve, mais volátil, menos denso. Uma luz forte, um tanto irritante, tinha lhe atraído para aquela posição. Não sentia mais as dores do parto difícil que tivera e intuiu que estava noutro patamar, além da vida, um estágio pós-morte.
Percebera a gravidez um
mês depois da morte do marido. Julián tinha sofrido um acidente no mar. A
embarcação em que ele trabalhava fora atingida por uma forte tempestade e
naufragou. Seu corpo foi encontrado dias depois em meio às rochas, alguns
quilômetros do povoado costeiro onde viviam. Por este infortúnio, Evelina
passou toda a gestação imersa em depressão profunda. Pensou até em dar um fim
àquele estado que sabia só lhe traria recordações de uma vida que não teria
mais. Amava Julián, estavam casados há pouco mais de dois anos, eram muito
felizes. Julián era um marido maravilhoso e distinto dos homens daquela época,
quando concebiam as mulheres apenas como servidoras de casa, mães de uma prole,
objetos sexuais e moeda de troca para negócios familiares. Sua avó tinha por
certo que a vinda da criança lhe serviria como grande consolo. Ela duvidava,
porém entregou-se apática àquela situação que o destino lhe colocava pela
frente.
Sabia que seu filho seria
bem cuidado, então estava em paz naquele momento que entendeu que partia. Quem
sabe poderia reencontrar Julián. O padre em seus sermões na missa não falava em
vida eterna? Pois haveria de comprovar. Com isso em mente encheu-se de
esperança, deixando-se levar por aquela sensação indefinível. Depois de uns
minutos naquele interposto, o mesmo sinal de luz arrancou-lhe subitamente dali.
Sentiu que viajava numa velocidade extrema, atravessando algo como um túnel gigante.
Flutuou por ali sem medo, não havia atrito com nada material. Não sabia que direção
percorria, pois o movimento era ultrarrápido o que prejudicou seu raciocínio, e
foi perdendo o tênue fio que ainda mantinha de consciência e discernimento.
Evelina acordou depois de
um tempo impreciso. Estava numa alameda com muitas árvores em frente a um enorme
edifício cinza e envidraçado. Havia muitas pessoas por ali usando roupas
estranhas e multicoloridas. As mulheres vestiam calças masculinas ou saias e
vestidos exageradamente curtos. Os homens usavam o mesmo modelo de calça de um
tecido azul meio desbotado, camisetas um tanto apertadas no tórax e muitos usavam
os cabelos compridos, confundindo-se com as mulheres. Todos levavam livros nos
braços ou carregavam mochilas nas costas. O ambiente era animado. Passou os
olhos, impressionada, por aquela gente estranha e pelos inúmeros carros
estacionados no meio fio, modelos muito diferentes dos poucos que conhecia. Até
que avistou Julián. Ele conversava animadamente com um grupo de pessoas.
Dirigiu-se para perto deles lentamente para ouvir o que diziam. Falavam de
assuntos ininteligíveis para ela, ainda que em sua própria língua. Chegou mais
perto e tocou-lhe o braço. Afora a roupa que usava e o cabelo mais farto, tinha
a mesma aparência daquela noite que tinha saído ao mar para não mais voltar.
Ele virou-se para ela, o que a deixou perplexa e feliz, reconhecendo o mesmo
sorriso e os mesmos olhos azuis do marido.
—Pois não, moça. — O
rapaz reagiu, com um olhar entre amistoso e curioso.
—Julián, não me reconhece?
—Ela perguntou devagar e amedrontada.
—Desculpa, não estou
lembrado. Precisa de ajuda?
—Que lugar é esse? Ainda
é 1941? —Ela perguntou e os ouvintes começaram a rir da pergunta e da maneira
que Evelina estava vestida, uma roupa que só viam em fotos antigas de família.
—Aqui em frente é o
prédio da Faculdade de Direito de Santiago de Compostela e estamos em 1985. Você
está bem? —O rapaz respondeu intrigado e paciente, pedindo mais respeito da
parte dos colegas, enquanto notava familiaridade na voz e nos olhos da moça. Logo
uma jovem do grupo abraçou-se a ele tentando desviar a atenção da desconhecida,
dizendo:
—Vamos, Julián, ela deve
ser aluna do curso de Teatro ensaiando alguma fala e pelo jeito fumou ou bebeu
de tudo hoje.
Evelina ficou
desconcertada e decepcionada notando a intimidade entre eles:
—1985?? Meu nome é
Evelina, se você lembrar de mim, manda um sinal. Hoje só queria te ver mais uma
vez. —E desapareceu da vista de todos pelo mesmo portal de luz do qual tinha
saído.
—Ei, que tipo de sinal? — o rapaz tentou alcançá-la, surpreendido. Lembrou de um retrato em preto e branco do casamento de seus avós na sala de casa, onde estava escrito à mão com uma letra de criança no verso: Mis papás, Evelina e Julián, 1938, hasta siempre!
Texto maravilhoso! Boquiaberto aqui! Desejo a você, toda luz possível e impossível!
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