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Brasil, 200 anos


Museu Imperial, Petrópolis- Rio de Janeiro


Faz tempo que eu não escrevo sobre política e sociedade por aqui. Primeiro, porque nos últimos meses, minha vida pessoal foi bastante afetada e ainda estou tentando elaborar os acontecimentos e ordenar as mudanças que ocorreram. Segundo, porque nunca deixei de acompanhar as notícias e a cada fato escabroso, a cada má notícia, a cada ato e declarações desprezíveis de nosso mandatário e de seus pares me sinto vivendo num lodaçal, numa desarrumação, no lugar mais abominável do planeta. Não me refiro de maneira nenhuma à Pátria ou ao solo brasileiro que são maiores que tudo isso, mas por este governo que eu não acreditava sequer seria eleito, quanto mais que completaria o mandato. 

Então, tenho me resignado simplesmente a ouvir e ler as atrocidades diárias e não escrever nada sobre, porque também nunca imaginei que o ambiente político e a sociedade brasileira fossem tão vulneráveis a essa barbárie a que estamos agora submetidos. Sinto cansaço e desolação como tenho percebido em muita gente. Realmente, era ingenuidade pensar que estávamos seguros, só porque tínhamos e temos uma bela Constituição progressista que garante direitos individuais e pleno Estado de Direito, além dos pressupostos de sanidade, civilidade, humanidade e impessoalidade que devem estar implícitos para qualificar governantes. Apesar disso, está no poder o presidente mais incompetente, grosseiro, vergonhoso e ególatra que jamais tivemos, só para citar uns poucos adjetivos, todos depreciativos como é justo a um ser desqualificado como ele. Há muito mais. Para exprimir com precisão seria necessário um texto à parte como bem escreveu a jornalista Mariliz Pereira Jorge num artigo para a Folha de São Paulo meses atrás.

A grande lição que estamos a aprender é que a democracia é um sistema que deve ser buscado e conquistado incessantemente, depois que esse governo extremista, hipócrita, corrupto, desumano e caótico vem devastando o país nos últimos anos. E será a única lição que vão deixar. O mundo inteiro está vivendo tempos estranhos também. Muitos ideólogos de extrema-direita que estavam adormecidos saíram de suas sombras em várias partes do planeta e o Brasil sempre esteve vulnerável. Uns lugares mais que outros. Tempos de reacionarismo, ditadura, autoritarismo, violência e falta de informação já foram vividos em outras épocas por aqui. Agora se somam tempos de ódio, intolerância, mais violência, desinformação e a volta de um ideário fascista que já deveria estar há muito enterrado. 

O que me move hoje a escrever sobre o Brasil é que estamos a ponto de completar 200 anos de independência no próximo Sete de Setembro, quando o país deixou de ser uma das colônias de Portugal pela determinação de audazes brasileiros e brasileiros de coração como Pedro I e sua esposa, a austríaca Leopoldina. A história oficial não conta, mas a atuação dela muito influenciou e foi decisiva na concepção do Império do Brasil, quando a Colônia foi desligada da metrópole europeia.  Aliás, recomendo muito a leitura da biografia da imperatriz, Dona Leopoldina, a história não contada de Paulo Rezzutti. Uma mulher notável. 

Hoje, conhecendo Portugal como conheço, não consigo conceber como um país tão pequeno—mesmo sendo um dos precursores das grandes navegações— foi capaz de "conquistar" e manter durante três séculos a posse de um gigante em extensão como o Brasil e este ter mantido até hoje essa dimensão territorial. Claro, o sacrifício de milhares de vidas tanto dos exploradores e colonizadores de várias nacionalidades, quanto dos nativos indígenas contribuíram para isso, além dos 300 anos de economia escravagista utilizando a mão-de-obra de homens, mulheres e crianças, vidas humanas que eles simplesmente capturavam no continente africano. O país foi concebido num ambiente de espoliação, pilhagem, exclusão, racismo e desigualdade e essas características vêm se reproduzindo até os dias de hoje entre boa parte da classe brasileira mais endinheirada— os autênticos vira-latas— inclusive entre as classes médias, que tristemente normalizam a miséria e a pobreza. Eles somente tratam de proteger-se dos pobres. Os menos ricos compram o discurso dos mais ricos de que a pobreza é potencialmente criminosa por definição.

Lembro bem da comemoração dos 150 anos, o Sesquicentenário da Independência em plena ditadura militar. A pequena cidade onde eu morava foi toda para a rua assistir ao desfile que fechava a Semana da Pátria daquele 1972.  Eu era uma adolescente e desfilei orgulhosa com minha turma do colégio vestindo um traje especial que não era o uniforme usual; era uma saia plissada vermelha bem curta, shortinho de malha vermelho, camiseta branca, meias e tênis Conga brancos, num pelotão ou uma ala só de meninas. Talvez chamar de pelotão se adeque mais para definir, dada a época militarizada em que vivíamos. Levávamos arcos forrados com fitas de cor verde-amarelas e fazíamos uma performance ao longo do trajeto. Tudo muito ensaiado nas aulas de Educação Física. Naquele tempo era um orgulho para todos estar ali, afinal os meios de comunicação oficiais e os alinhados com a ditadura eram hábeis em omissões, simplificações e mentiras, enquanto incitavam o povo ao ufanismo e patriotismo como é característico do poder militar. Afinal, quem ousasse pensar ou dizer o contrário era perseguido, morto ou exilado. A diferença de hoje é que, mesmo num governo dito civil, não perderam a habilidade de manipular, perseguir, desaparecer e matar pessoas. Ficou apenas um pouco mais difícil, porém não de todo impraticável.

Não merecíamos que essa comemoração acontecesse no meio desse ambiente caótico e violento e sendo planejada e conduzida por esse simulacro de governo em pleno século XXI. Bem, não sei por que tínhamos a noção de que o mundo se aperfeiçoaria a partir deste século. O tão propalado XXI até agora está feito somente de avanços tecnológicos. As causas sociais e comportamentais ao mesmo tempo que avançam pequenos passos, regridem outros largos. Até quando o espírito humano seguirá imperfeito, conflitante e beligerante? Enfim, passados 200 anos, estaremos aqui, infelizmente sem nada a comemorar e com a certeza de que os inquilinos do Planalto usarão a data para suas maquinações, calúnias, para a difusão de bizarras teorias, evocando seus instintos golpistas e tentando deturpar e desacreditar o processo democrático eleitoral que já se avizinha. A grande esperança é que as urnas sejam demolidoras para eles. Ojalá!




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