Luiza saiu cedo naquela manhã
para a feira livre de Barcelos, distrito de Braga. O percurso era de pouco mais
de 100 quilômetros desde sua cidade galega de Vigo até a região norte de
Portugal, limítrofe com a Espanha. Gostava de passear por aquelas pequenas cidades
portuguesas. Conhecia muito bem o trajeto, pois havia feito com o marido
inúmeras vezes e agora solitária, dirigindo o mesmo Hyundai azul, o passeio ajudava
a abrandar a falta que sentia dele.
Uma vez na feira, foi repassando
cada tenda, misturando-se à pequena multidão que sempre se acercava àquele lugar
tão antigo, quanto encantador. Era início de primavera e já havia muitos
turistas, as falas se misturavam em diversos idiomas e sotaques, porém a
comunicação era perfeita. Podia-se encontrar de tudo naquele enorme bazar que cobria
uma grande alameda central chamada Campo da República. Havia roupas, sapatos,
utilidades domésticas, artigos de cama, mesa e banho, artesanato— os icônicos
galos portugueses de cerâmica de todos os tamanhos— produtos coloniais, mudas
de plantas, hortaliças, frutas e uma parte muito atrativa com objetos e livros
antigos. Tinha bons produtos, outros nem tanto como toda feira popular. Pelas
inúmeras vezes que tinha estado ali ela até já conhecia de vista algum feirante
com quem conversava. Uma senhora da barraca de frutas certa vez comentou,
depois de perceber que Luiza falava o português do Brasil:
—Os brasileiros são
nossos irmãos. — Disse a senhora. Foi quando Luiza comprovou a amabilidade do
povo português, lamentando o desconhecimento e a falta de reciprocidade dos brasileiros.
Muitos estudaram pouquíssimo a vasta e rica história em comum entre os dois
países, o que os limitava ao trivial costume de difundir as piadas sem graça de
português, que estava habituada a ouvir quando ainda morava no Brasil.
Naquele dia, a mesma
vendedora reconheceu a freguesa, apesar da máscara, mais pelo sotaque e indagou:
—Me desculpe perguntar,
mas que aconteceu com seu marido? Tenho visto a senhora sozinha por aqui nos
últimos tempos.
—Faleceu já faz quase um
ano.
—Ah, sinto muito! Covid?
—Não, câncer. Obrigada.
Vou levar essas peras e um cacho de bananas das Canárias, por favor. — Luiza deu
um jeito de pagar para ir-se logo dali, evitando mais perguntas sobre um
assunto que ainda doía muito, apesar da amabilidade da senhora. Alcançou-lhe
uma nota de 10 euros e ela devolveu-lhe o troco em moedas.
Depois ela esteve algum
tempo entretida com as antiguidades. Naquele dia havia um espaço maior dedicado
àqueles produtos e muitas peças interessantes estavam dispostas em estantes de
madeira tipo caixotes ou mesmo em cima de lonas no chão. Depois de dar voltas, encantou-se
por um par de xícaras de chá de uma fina porcelana de cor rosa antigo com
detalhes de bordas douradas. O vendedor disse que era porcelana chinesa, mas
ela duvidou. O preço pedido não era para tanto. Pensou em ficar com o par,
estava íntegro e bem conservado, mas acabou desistindo. Já tinha acumulado um
tanto de objetos antigos naquelas suas andanças por Portugal e o objetivo
daquele dia era mais pelas frutas e verduras— mais baratas que na Espanha—
necessitava de mais um abrigo impermeável e obviamente para desfrutar do dia de
passeio.
Naturalmente ela sempre
acabava levando mais coisas do que previa e esquecendo de outras. Ao estar de
volta em casa, desembrulhou as compras e percebeu que não tinha trazido nada
para jantar, nem tinha previsto nada para o café da manhã do dia seguinte. Tinha
tido um almoço farto quase às duas da tarde no mesmo restaurante que ia com o
marido, no A Muralha na cidade vizinha de Ponte de Lima, onde se
comia um bacalhau à brasa de morrer. Também no trajeto de volta tomou o tradicional
café com pastel de nata na cafeteria de Valença do Minho—outra parada
obrigatória.
Pegou seu porta-níqueis e
desceu rapidamente à padaria da esquina antes que fechasse. Pediu duas baguetes
de pão artesanal, algumas gramas de presunto serrano e alcançou três moedas
para a atendente que, depois de conferir o pagamento, voltou-se para Luiza:
—Senhora, uma dessas não
tem valor. É uma moeda portuguesa antiga. Veja! —disse, entregando a moeda de
volta.
—Como? Nem reparei, pensei
que era de um euro. Na verdade, estive hoje mesmo na feira de Barcelos, acho
que foi ali que me deram. Ah, seus portugueses, tão queridos e pela primeira
vez me passando a perna no troco! —Pensou ela. A moeda não tinha valor nem em
Portugal, porque já fazia duas décadas que tinha sido adotado o euro em toda a
União Europeia. Foi repassando mentalmente as compras pelas quais tinha pagado
em dinheiro e recebido o troco em moedas: as frutas, os legumes, a muda de
alfazema, os estacionamentos e o café de Valença. Seria difícil descobrir a
procedência do objeto.
Enquanto fazia a última
refeição do dia, ela ficou observando a moeda lusa. Era de 100 escudos
portugueses cunhada em 1990, cujo valor—verificou depois—seria de mais ou menos
uns 50 centavos de euro. Largou no aparador da entrada dentro de um pequeno prato
de vidro colorido que tinha trazido de Murano, numa visita à Veneza. Serviria para
lembrá-la de estar mais atenta na próxima ida à feira.
Estava cansada do dia
cheio, tinha saído cedo. Depois de jantar, tomou uma ducha, falou uns minutos com
a filha pelo aplicativo de mensagens, deitou-se, leu um pouco e logo adormeceu.
Depois de um tempo impreciso, ela foi despertada por um som débil de uma música
tocando. Pensou ter deixado a televisão da sala programada para transmitir algo
e se levantou meio trôpega para desligar. Passando pelo aparador, sem
acender as luzes, reparou que a moeda de escudo irradiava um brilho estranho,
reluzia como ouro, iluminando o ambiente. Impressionada, pegou a moeda com a
mão espalmada, sentindo que o brilho lhe provocava uma certa tontura e um
pequeno desconforto no fundo do olho, pensou que seria por estar dormindo e ter
levantado muito rápido.
Logo depois ouviu como
uns toques de teclado de computador e a música suave continuava na sala. Um
tanto amedrontada, mesmo assim dirigiu-se para ali devagar, ainda com certa
vertigem. Para seu espanto e perplexidade viu seu marido no lugar que ocupava
sempre, sentado no sofá diante do laptop que mantinha numa mesinha baixa. Estava
concentrado na tela do computador, mas em seguida virou-se e sorriu-lhe,
enquanto ela se aproximava atônita. Por segundos teve dificuldade para falar, a
voz ficou trancada na garganta. Depois, disse lentamente, como que medindo as
palavras:
—Pablo??... Estás...
bem?? Como... chegaste até aqui? —perguntou Luiza entre espantada e incrédula
indo devagar em direção a ele.
—Como cheguei? Eu moro
aqui, lembra? Perdi o sono tendo umas ideias para aperfeiçoar o conteúdo do
curso. Estou aqui finalizando o projeto. Desculpa se te acordei. Já estava indo
para a cama. — disse ele, extremamente concentrado, quase nem reparou no
estado em que sua mulher se dirigia a ele.
Luiza se sentou devagar
ao lado do marido, abraçou-lhe e depois passou a mão por seu cabelo, pelo rosto
saudável e aparentemente mais jovem. Sentiu o calor do corpo dele, a textura
muscular firme dos ombros e braços sob o suéter azul e o mesmo perfume da loção
após barba. A última lembrança que tinha dele era com o aspecto extremamente frágil,
cansado, esquálido, afônico, com poucos fios de cabelo e um curativo na mandíbula.
E triste, muito triste.
—Ei, que te passa?
—perguntou ele, agora sim, estranhando o gesto da esposa.
— Nada...Só que...Está
passando uma reprise de Cuéntame como pasó a essa hora? — ela perguntou,
notando que passava na televisão a famosa série espanhola da TVE1.
—Não, acho que é um
capítulo inédito! Me disseste que estavas cansada e que o verias amanhã pela
tarde no aplicativo. Estavas aí pintando tuas mandalas, não lembras? Só deixei
a TV ligada, nem estava prestando atenção.
A atmosfera da sala estava iluminada só com as
luzes da televisão, da tela do computador e pelo luar que entrava pelo vidro da
sacada, o que fazia reluzir ainda mais a moeda de escudo que ela mantinha forte
na mão direita.
—Inédito?? Mas que dia é
hoje?
—Quinta-feira, amor! Estás
bem? Te noto estranha!
—Quinta-feira...—Ela
pensou que fazia sentido, tanto a feira de Barcelos quanto a série de TV
aconteciam nesse dia da semana. — Mas, por favor me diga em que mês e que ano estamos...
—Por Deus, Luiza, que
pergunta é essa? Quase meia-noite, então ainda é dia nove de abril de 2015. E?
Estás sonhando? Tenho uma mulher sonâmbula e não sabia? —disse ele olhando o
relógio de pulso, rindo e imperturbado.
—2015!! — Ela exclamou, enquanto
olhava para o calendário na barra inferior do laptop e viu um de seus cadernos
de mandalas jogado na mesinha de centro junto com a caixa de canetas. Folheou
rapidamente o caderno, pois costumava colocar a data quando finalizava o
trabalho. A última mandala confirmava, era dia 9 de abril de 2015.
—Queres me dizer o que te
passa? Estás me assustando...— Pablo, então percebeu o nervosismo dela.
—E de que curso estás
falando? —ela retomou as perguntas.
—O curso que tenho que
ministrar em Madrid na semana que vem, não lembras? Já está tudo acertado. Vais
comigo e poderemos aproveitar a cidade juntos depois do trabalho, terei as
tardes livres.
—O curso em Madrid?
Aquele do hotel da estação do metrô Campo de Las Naciones, perto do parque Juan
Carlos I?
—A secretária já me
mandou o comprovante da reserva, mas ainda nem tive tempo de me deter no nome
do hotel, tampouco do endereço. Só sei que tomando o metrô são somente duas ou
três trocas de linha até o centro. Já tenho as passagens de trem também. Te
encaminhei por e-mail a cópia da reserva? Não lembro. —Indagou, intrigado.
—Não, não me enviaste
nada por e-mail... estou um pouco confusa, só sei que já estivemos lá.
—Arriscou explicar-se. — Tens certeza de que estás bem? Não sentes nenhuma dor?
Noto que ganhaste peso e pareces mais jovem e mais bonito.
—Luiza, vem aqui...— E Pablo abraçou a mulher. — De que dor estás falando? Não vou à médico há anos e estou
perfeitamente! Ok, depois dos cinquenta não faria mal um check-up, posso estar
mais gordinho também e obrigada pelo bonito. Mas por que tantas
perguntas? Estavas aqui até umas horas atrás e não me falaste nada disso.
Tiveste um pesadelo?
—Acho que estou sonhando
sim, mas é um sonho maravilhoso...Vem, vamos para a cama. Está tarde e precisas
relaxar. Teu curso será um sucesso, não duvides de tuas capacidades—disse ela
com a moeda agora firme em uma das mãos e puxando o marido com a outra.
—Obrigada pela confiança,
mas sabes que sempre me ponho um pouco ansioso e preocupado nessas situações.
Já na cama, Luiza deitada
sobre o peito do marido, menos atordoada e ainda sem largar a moeda disse:
—Eu não estava só te
animando quanto ao curso. Eu sei que sairá tudo bem e teremos ótimos
momentos por lá. Inclusive teu case de sucesso será compartilhado e
divulgado para vários setores da administração pública. —Ela arriscou mais
uma vez a dar pistas do que sabia na tentativa de descobrir o real estado
psicológico do marido.
—Que exagerada! Vou só
relatar uma boa experiência com bons métodos.
—Não estou exagerando e
não te preocupa, vai sair tudo bem, confia em mim.
—Obrigada, mas te noto
estranha mesmo assim. Quer me contar?
—Eu estou bem. Só quero
aproveitar tua companhia, teu calor, tua proximidade, ouvir tua voz, te beijar,
te abraçar, fazer amor e tudo que temos direito.
—Pois aqui me tens, mas
me deixas preocupado com essa conversa. Ah!...Me disseste que estava tudo bem
com os exames de rotina que fizeste semana passada! És mais cuidadosa com isso
do que eu. Era verdade, está mesmo tudo bem? Perguntou, lembrando do
fato.
—Sim, não tem nada que
ver comigo. Estou bem de saúde.
—Pois eu também...
—E se eu te pedisse que
fosses a um dentista ou um médico de garganta. Irias? —indagou Luiza, pensando
que talvez pudesse mudar o rumo dos acontecimentos ou ao menos retardar o
inevitável.
—Não faz nem seis meses
que visitei o dentista, e ver a garganta para quê? Não sinto nada... Não coloca
caraminholas na cabeça.
—Tudo bem... por agora, me
abraça e me deixa dormir bem perto de ti. Quero que saibas que te amo para
sempre e que aconteça o que acontecer estarei contigo.
—Eu sei disso! E te digo
o mesmo! —disse Pablo, ainda desconfiado.
—Agora me beija, antes
que amanheça...—pediu ela.
Então naquela noite, Luiza deixou-se levar pelo inusitado, pela fantasia, pelo sonho, pela alucinação,
pelo que quer que fosse que estava acontecendo. Desistiu de questionar a razão,
a materialidade, a tangibilidade das coisas, dando valor somente aos seus
significados. Deixou-se levar pela magia que atribuía à moeda lusa, que
continuou brilhando mesmo depois de largada na mesa de cabeceira perto do
celular. Não quis mais usar palavras, nem dar, nem pedir explicações. Negou-se
a entender e a tentar mudar os fatos. O momento era para celebrar aquele
encontro com o passado, reviver sentimentos e reforçar o amor que sentia pelo marido,
apartado da vida tão cedo. Ele não precisava saber de mais nada, além do quanto
era amado.
Na manhã seguinte, acordou
sozinha. Virou-se para procurar a moeda e ela não estava mais. Buscou por todos
os lados, pelo chão do quarto, no meio dos lençóis e nada. Correu até o
aparador, vasculhou a sala e nem rastro da moeda. Com a claridade do dia tudo
ficava mais real, escondendo a noite anterior numa bolha de ilusão, ao mesmo tempo
que tinha tudo nítido na memória. Ela era uma pessoa sensata, não bebia, não
usava drogas e sabia que não estava perdendo a razão. Tentou raciocinar, mas o
que tinha vivido não se enquadrava na racionalidade. O marido estava morto
havia meses. Se contasse para alguém o sucedido, diriam que tudo não passara de
um sonho. Ela cogitou a possibilidade, pois pensava nele dia após dia. Era justamente
a ausência dele que acompanhava toda a sua rotina, porém o que tinha acontecido
na noite anterior, mesmo inverossímil, tinha sido real. Jamais poderia contar a
alguém.
Sem sombra de dúvidas, ela tinha reencontrado com
seu marido Pablo numa noite de sete anos atrás, num momento extremamente feliz
de suas vidas— ali teve a mais pura percepção de felicidade— sem doença, sem
hospitais, sem tratamentos desumanos, sem médicos emitindo falsas esperanças,
sem a mais remota ideia de uma separação.
Como não encontrou
a moeda, agarrou-se à esperança de que Pablo tivesse entendido o sinal e que voltasse
outra noite através do escudo português, que lhes servisse de chave para uma nova
porta do passado e os dois pudessem entrar e continuar viajando como sempre
fizeram. Assim poderiam ser felizes além da vida e sempre antes de amanhecer.
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