Pular para o conteúdo principal

Venturas em Nova Iorque


Meu marido J. tinha 17 anos em 1974, quando começou a navegar em barcos pesqueiros espanhóis como ajudante de cozinha. Pela sua juventude, iniciou no mais baixo grau da hierarquia de um barco, el marmitón. Sua função era lavar e secar pratos, talheres, panelas, recolher a louça das refeições, descascar e cortar alimentos para o cozimento e limpar toda a cozinha e o refeitório. Fazia turnos das sete da manhã às quarto da tarde e depois das seis às dez da noite ajudando o cozinheiro-chefe na atividade de fornecer as três refeições diárias para uma tripulação de uns 30 homens. Havia uma máquina lava-louças e uma descascadora de batatas, mas de tão antigas danificavam a todo momento e o jovem marinheiro calculava que lavava mais ou menos umas 250 peças de louça a cada dia.

Assim começou sua aventura num grande pesqueiro industrial chamado Arosa Noveno, onde um amigo de seu irmão era o capitão. Seu primeiro destino foi para os pesqueiros da costa africana na pesca de merluza, depois a empresa obteve licença para a pesca de lulas—calamares— na costa americana na altura de Nova Iorque para a mesma viagem que duraria alguns meses.

À medida que seu corpo, mesmo jovem, sentia a dureza daquele trabalho, ele viu-se aos poucos fascinado pela atividade desenvolvida pelos marinheiros e pela paisagem de alto-mar do Oceano Atlântico, coisa que desfrutava muito nas horas vagas. Estava acostumado a embarcar com seu pai somente para os labores de pesca artesanal na costa espanhola em pequenos barcos desde os 13 anos. Quando soube que chegariam próximo da grande metrópole americana, sentiu um enlevo, um valor pessoal em poder desfrutar ao menos da vista da cidade desde o barco. 

Porém, durante o trajeto, já perto da zona de pesca americana, a embarcação foi tocada por uma forte tempestade de vento e as ondas atingiram até cinco metros de altura, rompendo os vidros da ponte de comando e, mais gravemente, lançando dois marinheiros ao mar que nunca foram encontrados malgrado os esforços de toda a tripulação. Com o acidente, o capitão ordenou que o barco rumasse para o porto de Nova Iorque para reparar as avarias, onde atracaria por tempo indeterminado. Enquanto não atracavam, a pesca de calamares continuava abundante. Inclusive lagostas gigantes também eram capturadas nos aparelhos, espécimes que J. nunca havia visto tão grandes—suas patas dianteiras tinham a medida de sua mão. No entanto tinham que devolver ao mar, pois só os barcos americanos tinham licença para a captura e os espanhóis, na verdade, ainda não davam muito valor a este grande crustáceo.

Com a notícia da atracagem no porto nova-iorquino, o jovem J. alegrou-se pois poderia desembarcar e visitar seus tios e primos que viviam nos Estados Unidos—no bairro do Bronx— havia já uns quatro anos. Tinha o endereço e telefone anotados numa cadernetinha que levava na sua mochila de viagem. Nem bem chegados ao ancoradouro já se vislumbrava a impressionante ponte Verrazano-Narrows, uma das maiores do país e a Estátua da Liberdade, o grande símbolo americano. O barco atracou em frente à Ilha de Manhattan, no bairro do Brooklin, na época um bairro muito pobre e sujo, como se vê nos filmes, com fogueiras, colchões e lixo espalhados pelas ruas. Desde o cais do porto também se avistava as Torres Gêmeas. Depois que a embarcação foi inspecionada pelos agentes de imigração, a tripulação estava livre para desembarcar. 

A busca pela família gerou um fato insólito e divertido para J. Era pelas 11 da manhã do dia seguinte à chegada, quando ele baixou à terra em busca de um telefone público ao longo do cais do porto. Logo encontrou um e discou os números que tinha apontado na caderneta. O telefone não dava aquele sinal padrão de chamada e provocava somente um ruído estranho. Comprovou se discava os números certos e nada aconteceu. Desistiu naquele momento, pois não podia afastar-se por muito tempo dos afazeres daquela hora.

Pelas cinco da tarde desceu aos cais novamente e deparou-se com um carro conversível azul com a capota abaixada bem perto da cabine telefônica. Um casal dentro do carro observava os barcos no porto. A mulher ocupava o volante, usava uma echarpe colorida, os cabelos castanhos voavam no vento, usava óculos escuros e fumava. Parecia uma imagem dos anos 20, pensou J. Ao aproximar-se do elegante veículo reconheceu uma conversação em espanhol com sotaque latino entre o casal, o que o encorajou a dirigir-se ao homem para pedir alguma informação já que não entendia nada de inglês. Um pouco envergonhado explicou que queria comunicar-se com seus tios e travou-se o seguinte diálogo:

—Boa tarde, notei que vocês falam a minha língua, poderiam ajudar-me? 
—Sim, claro.—disse o homem.
Tenho este número de telefone de minha família aqui de Nova Iorque, mas não consigo completar a chamada, não sei se falta algum número ou algum código local. Eles moram no Bronx. — O homem olhou para a anotação dizendo que parecia estar tudo correto e completou:
— Acompanho você até a cabine telefônica e lhe ajudo. Vi quando desceu daquele barco. De onde você é?—perguntou saltando do carro e foram andando.
—Sou espanhol.
—Espanhol de onde?
—Sou galego, de Galícia.
O homem insistiu: 
—E de que parte de Galícia?
—Sou de Pontevedra. —respondeu, já meio enfadado do homem querer saber tantos pormenores.
—E de que lugar de Pontevedra?
—Eu sou de um pueblo pequeno. Não é muito conhecido.
—Mas qual é o nome?—perguntou, ainda insistindo no mesmo tema.
—Sou de Combarro. —respondeu J.  já bastante desconfiado e contra a vontade.
Afinal, o homem virou-se para seu interlocutor com um grande sorriso e completou:
—Eu logo vi que seu sotaque era muito familiar. Pois eu sou de Bueu.

J. nunca poderia imaginar que dentre os 15 milhões de habitantes daquela cidade naquela época, a primeira pessoa que encontraria naquele enorme porto fosse alguém de seu país e ainda mais de um povoado tão perto do seu. Pura sorte. Assim ele pode contatar com sua família e seu primo veio de imediato encontrá-lo. Por fim, J. desfrutou muito daquela breve estada na cidade com agradáveis passeios e conversações familiares graças ao conterrâneo e aos centavos de dólar que faltavam para completar a ligação.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Morro do Caracol

Foto: Rua Cabral, Barão de Ubá ao fundo e o Mato da Vitória à esquerda Arquivo Pessoal O povoamento de uma pequeníssima área do bairro Bela Vista em Porto Alegre, mais especificamente nas ruas Barão de Ubá que vai desde a rua Passo da Pátria até a Carlos Trein Filho e a rua Cabral, que começa na Ramiro Barcelos e termina na Barão de Ubá, está historicamente relacionado com a vinda de algumas famílias oriundas do município de Formigueiro, região central do Estado do Rio Grande do Sul.  O início dessa migração, provavelmente, ocorreu no final da década de 40, início dos anos 50, quando o bairro ainda não havia sido desmembrado de Petrópolis e aquele pequeno território era chamado popularmente Morro do Caracol. Talvez tenha sido alcunhado por esses mesmos migrantes ao depararem-se com aquele tipo de terreno. Quem vai saber! O conceito em Wikipedia de que o bairro Bela Vista é uma zona nobre da cidade, expressão usada para lugares onde vivem pessoas de alto poder aquisitivo, pode ser apli

Puxando memórias I

https://br.pinterest.com/pin/671177150688752068/ O apartamento Uma das mais nítidas lembranças da infância, eu não teria mais que cinco anos  é o quarto onde dormia. Lembro da cama junto à janela, a cama de meus pais e no outro extremo o berço de minha irmã mais nova, enquanto éramos só nós quatro. Durante a noite percebia a iluminação da rua entrando pelas frestas da veneziana fechada, enquanto escutava o ruído de algum carro zunindo no asfalto, passando longe no meio da madrugada. Até hoje quando ouço um barulho assim me ajuda a dormir. A sensação é reconfortante, assim como ouvir grilos ou sapos na noite quando se vive no interior.  Morávamos num apartamento de um pequeno sobrado de dois pavimentos com uma vizinhança muito amigável entre conhecidos e parentes.  O apartamento tinha dois quartos, uma sala pequena, banheiro, cozinha e um corredor. O piso era de parquet  de cor clara— termo francês usado no Brasil para designar peças de madeira acopladas. A cozinha tinha um ladrilho aci

Distopia verde-amarela

Foto: Sérgio Lima/AFP Crônica classificada, destacada e publicada pelo Prêmio Off Flip 2023 Dois de novembro de 2022, dia de sol pleno. Moro perto de um quartel. Saio para a caminhada matinal e noto inúmeros veículos estacionados na minha rua que não costuma ser muito movimentada. Vejo muitas pessoas vestidas de verde e amarelo ou enroladas em bandeiras do Brasil indo em direção ao prédio do Exército. Homens, mulheres e até crianças cheias de acessórios nas cores do país, um cenário meio carnavalesco, porém sem a alegria do samba. Pelo contrário, as expressões eram fechadas, cenhos franzidos.  Quando chego à esquina e me deparo com o inusitado, me pergunto em voz alta:    —Mas o que é isso? — um senhor sentado na entrada de seu prédio me ouve e faz um alerta: "A senhora não passe por ali, é perigoso!” Então entendi que o perigo era pós-eleitoral. Os vencidos tinham fechado a rua em frente ao quartel e pediam intervenção militar . Ou seria federal? Não havia muita coerência no uso