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O encontro inusitado

 

Foto: Arquivo Pessoal

Elena passou a ter um sonho recorrente meses depois da morte do marido. Sonhava que encontrava Raul na alameda às margens do porto pesqueiro. Porém só ela o via, não se falavam e ele tinha uma aparência muito jovem. Tinham se conhecido na meia idade, tiveram menos de dez anos de convivência e ela só sabia sobre sua juventude de escutá-lo contar. Ainda assim o reconheceu desde o primeiro sonho com a aparência de um rapaz de 20 e poucos anos e sempre era uma aflição a impossibilidade de falar e ser vista por ele. Foram várias semanas sonhando noite sim, noite não com aquele cenário. Ela sempre estava postada junto aos pilares do pergolado forrado de glicínias, quando ele apontava na esquina da casa de sua infância, a casa de pedra mais bonita da rua. Ele ia em direção ao embarcadouro, entrava num dos barcos de pesca que estavam atracados e saía a navegar junto com outros marinheiros.

Elena até tentava ir em direção a ele, barrar-lhe o caminho para forçar um encontro, mas seu corpo paralisava. Seus pés pareciam pregados naquele chão de paralelepípedos cheio de redes e artefatos de pesca largados a céu aberto. Ao final, via ele passar apressado quase ao lado dela, passos curtos, meio sonolento, sem nunca perceber a presença dela.

Relembrava o sonho nas sessões de terapia que fazia para amenizar o luto. Sentia uma falta enorme do marido. Tinha sido um grande amor, mas uma doença grave tinha acabado com a felicidade deles. A psicóloga sugeriu que Elena tentasse encontrar um lenitivo para sua dor através daqueles sonhos, mas que ela não esperasse muitos significados. Eram fruto de tristeza e de saudade que iriam se diluir com o tempo. Era normal.

Uma noite, Elena estava insone, não era capaz de dormir, nem com as pílulas que estava usando. Resolveu tomar outra dose, pois se continuasse revirando na cama, iria amanhecer e não teria dormido nada. Foi nessa noite de sono— provocado pela droga ou por algum fenômeno antinatural— que encontrou Raul, mas de um jeito diferente. Foi acordada por forte chuva e vento batendo no vidro da janela e se levantou para fechar as persianas que tinha esquecido de baixar. Quando ia voltando à cama viu uma luz forte que vinha do corredor. Deixou-se atrair e no instante seguinte havia sido transportada para debaixo da conhecida pérgula da alameda dos pescadores.

Havia uma luz de entardecer e ela viu que seu marido, desta vez, voltava do mar. Tinha uma expressão séria e um pouco cansada. Ele veio caminhando devagar, casaco no ombro em direção à casa. Foi num passo desses que ele levantou os olhos e viu Elena. Ela, assustada, mesmo sem saber o que dizer, foi em direção a ele. Pronto, sentiu que estava materializada. Estacou na frente dele meio hesitante.

—Você mora aqui perto? —ela perguntou, puxando assunto.

—Sim, moro ali naquela primeira casa da esquina. Está procurando alguém?

—Não, estou só de passeio, tirando umas fotos. Posso tirar uma foto da sua casa e da alameda? É um lugar tão bonito e turístico. —Inventou uma conversação.

—Turístico aqui? É só um pequeno povoado pesqueiro, habitado por marinheiros. Mas é muito bonito, concordo.

—Bem, se ainda não é, será muito turístico.

—Por que você diz isso? Está pesquisando para algum empreendimento?

—Não! É só um passeio mesmo. Você não está lembrado de mim, Raul? —tentou a pergunta direta para ver a reação dele.

—Não! Deveria lembrar? Como sabe meu nome?

—Desculpe incomodar, vou indo...—disse sem coragem de continuar a conversa, mas sem saber como fugir.

—Espere, não quer tomar um café ali no bar? Pode me contar mais sobre suas fotografias e tirar as que queira, mas onde está sua câmera?

—Ah, que cabeça a minha, acho que deixei dentro do carro no estacionamento— era a melhor resposta para dar naquela época, pois em finais da década de 70 ninguém portava um telefone celular na bolsa, tampouco ela carregava uma ali no momento. —Você tem certeza de que não quer ir direto para casa? Está apenas chegando do trabalho.

—O dia foi muito aborrecido, preciso me distrair e relaxar, mas como você sabe que estou chegando do trabalho?

—Eu vi quando você saiu daquela embarcação... 

Naquele fim de tarde o bar estava cheio. Raul cumprimentou os conhecidos, sentaram-se numa mesa e pediram dois cafés.

—Então, de onde você é? Tem um sotaque diferente. Por que está aqui?

—Bem, é uma história estranha. Talvez um tanto inverossímil, mas quero lhe contar a verdade. Me chamo Elena e, acredite ou não, tenho estado muito por aqui, observando você, mas só hoje você me viu.

—Esteve me observando? Nunca vi você por aqui.

—Pode ser, mas no futuro andaremos muito aqui, digo, nós dois...

—No futuro?? —perguntou, incrédulo.

—Sim, nos conheceremos no futuro e seremos muito felizes...

—Não diga!!—Raul achou melhor rir e brincar com a afirmação.

—É sério. —Elena tentou passar o máximo de credibilidade que conseguia, mesmo sabendo que podia passar por uma maluca.

—E não podemos começar a ser felizes desde já? Agora já nos conhecemos. —Exclamou ele, gostando da brincadeira e da ousadia da interlocutora.

—Não, nossa história só vai começar daqui há uns 30 anos.

—Tudo isso?? Já serei um senhor de mais de 50. E antes disso que vou fazer da minha vida?

—Vai se casar, formar uma família, trabalhar, estudar...

—Bem, trabalhar e estudar não precisa ser vidente para saber, mas posso saber com quem vou me casar? Assim já me poupa trabalho de procurar uma noiva—disse Raul cada vez mais se divertindo com a conversa.

—Você vai se casar com uma moça que vive aqui perto. A família dela veio emigrada do Chile. —Ousou contar esse detalhe, ignorando que ele não estava acreditando em nada daquela conversa.

—Espera! Como você sabe que conheço uma moça chilena? —Raul agora já se punha sério.

—Ah! Já conheceu? —perguntou, um pouco perturbada por ciúmes. — Já disse, eu conheço o nosso futuro, mesmo que você não acredite.

—Então estou diante de uma cigana, uma futuróloga, uma extraterrestre?

—Nada disso! Eu simplesmente vim do futuro. Nesse momento, talvez estejamos vivendo num universo paralelo e estou aqui sentada na sua frente.

—Universo paralelo? E de que parte do futuro estamos falando? De que década ou ano você veio?

—Bem, nos conheceremos em 2012 e vim de 2022.

—Por Deus, mal chegamos à década de 80 e estás me contando sobre acontecimentos nos anos 2000!! Elena...é esse o seu nome, não? Chega de brincadeiras, me diga afinal de onde me conhece e por que está aqui...

—Já disse. Vamos nos conhecer, viveremos um tempo juntos, vamos cumprir muitos sonhos em comum e seremos muito felizes, mas a razão de estar aqui eu não saberia explicar.

—Mas isso só pode ser uma brincadeira!! Viagens no tempo só existem em filmes e livros!!

—Pode ser um pouco chocante, mas falo sério, não estou brincando. Isso tudo soa muito irreal, mas é a verdade. E estou tão boquiaberta quanto você por estar aqui na sua frente, no seu povoado, nessa época e ao mesmo tempo inebriada com tudo isso. Eu sempre me ressenti de não ter conhecido você na nossa juventude. E hoje sinto muito a sua falta!

—Ok, então vamos lá!  Como é o nome do meu pai e da minha mãe?

—Seu pai se chamava Vicente e faleceu, quando você ainda era um adolescente, sua mãe é D. Áurea, mas foi sua irmã mais velha quem realmente te criou. Isabel. Além dela, tens ainda outro irmão mais velho que você. Também se chama Vicente, como teu pai. E não me pergunte mais, não posso dizer mais nada. Seria cruel contigo.

—Como não vou perguntar? Uma estranha me aborda na rua, sabe coisas de mim e faz previsões sobre minha vida e não posso querer saber mais?

—Eu não vim aqui para isso.

—E você veio para quê, então?

—Para ver você, sinto a sua falta, já disse.

—Onde você mora? Posso levar você para casa, ou me diz quem eu posso chamar para vir buscar você. —Raul já imaginava que Elena seria uma pessoa com problemas psiquiátricos, mas o tanto que sabia sobre ele o deixou intrigado.

—Não precisa, eu vou sozinha. Não entenderias mesmo de onde eu vim.

—Claro, se uma pessoa dissesse a você que vinha do futuro, você acreditaria?

—Pois, agora, talvez...

—Ok, então me conte mais, por favor!

—Você vive nesse povoado desde que nasceu e nesse tempo ainda não tem muitas perspectivas. Por ora só consegue ajudar sua mãe nas despesas da casa e guardar um pouco de dinheiro, pois quer estudar e buscar uma carreira diferente. Nos finais de semana se diverte um pouco com os amigos e é tudo. A vida de um pescador é muito difícil. Mas você é inteligente, lutador e vai conseguir alcançar muitos objetivos. Vai estudar, ter uma carreira, enfim...tudo.

—E que carreira vou seguir?

—Engenharia Naval e não me pergunte mais nada, tenho que ir. —Elena pensou que aquela conversa seria muito comprometedora e perigosa para a vida dele. Preferiu levantar da mesa e se despedir, ainda que quisesse ficar ali para sempre e mudar o rumo de suas histórias, porém sabia que não tinha esse direito.

—Espera, fica um pouco mais...Eu acredito em você, me fala mais...

—Não posso, são muitas vidas envolvidas...

—Mas se você disse que fará parte da minha vida, penso que tenho o direito de saber...

—Sim, mas temos coisas para viver antes, pessoas para conhecer, pessoas para nascer, enfim...Agora me dou conta disso.

—Ao menos me conte como vamos nos conhecer em 2012. Isso é algo somente entre nós dois, não?

—Bem, não sei se entenderias, mas foi através de uma rede mundial de computadores chamada internet. Nos conectamos desde o princípio e passávamos horas conversando, você na sua casa e eu na minha.

—Internet? Nunca ouvi falar nisso. Bem futurista mesmo esse encontro! E como se deu isso?

—Nós dois estávamos numa sala virtual de ensino de inglês e depois passamos a conversar numa sala privada.

—Sala virtual? Inglês? Vou saber falar inglês??—Raul estava cada vez mais curioso e espantado com as informações estranhas que recebia.

—Sim, você vai aprender inglês e eu a tua língua.

—E você não falava a minha língua?

—Não, somos de nacionalidades diferentes.

—E quando foi que nos encontramos pessoalmente? Pelo que entendi era só uma conversa similar a uma chamada telefônica.

—Mais ou menos, não sei te explicar. Se eu fosse você, também não entenderia. Após um ano só falando por videochamadas, nos encontraremos. Você vai viajar até o meu país. Vai ser maravilhoso, esteja certo.

—Ok, mas o que farei com minha suposta família, meu suposto casamento?

— Não cabe a mim falar nada sobre isso, são teus problemas. Agora tenho que ir, me desculpe e obrigada pelo café. Ah, só me diz uma coisa. Que idade eu aparento para você agora? —deu-se de conta que não sabia que aparência ela própria tinha naquele momento.

—Não sei, talvez a mesma idade que eu, 23, mas espera, eu posso saber ao menos por que não estou contigo em 2022 e veio me procurar aqui?

—Não, não pode...Só te peço que se cuide e esqueça o que falamos hoje, Só não esquece uma coisa: eu vou te amar para sempre! 

Elena não era capaz de enfrentar aquela pergunta fatídica e foi saindo. Correu até a pérgula e parou ali esperando voltar para casa, enquanto via ele de longe assustado em pé na porta da cafeteria. Até que se acenaram, depois ela desapareceu.

 

 

 

 

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