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A dor vivente


Imagem: Martyn Cook por Pixabay

Há uma dor insuperável, talvez não impossível, mas difícil de transformá-la em passado. O passado não passa assim irrefletidamente, mesmo que a vida siga sem dar atenção aos dissabores individuais. Há períodos de grande calmaria e florescimento, mas em outros a vida resolve retorcer, arrasar e desmantelar. E aí quando nos damos conta absolutamente tudo é passado. As estações vão e vêm, as pessoas cumprem anos, as crianças crescem, os adultos entram na meia-idade, os de meia-idade na velhice e a rotina toma conta de todos. A busca por sobrevivência despende nosso tempo. Às vezes até dá para esquecer aquela ferida aberta através de encontros divertidos, almoços de domingo, noites de amigas, um show de música, um filme na TV, um livro que absorve, uma pequena viagem, um telefonema de alguém querido, convites generosos de parte de quem se importa ou uma tênue esperança de estarmos perdoados de culpas assumidas. 

Muitos dizem com boa vontade:— Basta de estar no passado, a vida é para frente!— Mas a ferida insiste, porque é no silêncio interno que a dor mora. É um silêncio que ensurdece, impedindo o sono, evitando que novos planos se idealizem, que se criem outras formas de vida. E quando o sono enfim chega, vêm os sonhos que também impedem fechar a ferida, porque a dor que emana dela segue ali, mesmo que os substratos orgânicos se esforcem para fazer seu trabalho. Os remédios aliviam, mas não são capazes de aniquilar um sentimento com tendência à perenidade.

Outros dizem que é o tempo que cura. E que tipo de cura? O esquecimento é impossível. Como curar-se de uma perda inesperada e assustadora? Como aceitar que nunca mais verás alguém querido? Como limpar a memória? Não somos um disco rígido, que basta abrir o computador e deletar fotografias e histórias com apenas um clique. Não dá para reiniciarmos ou fazer o reset de fábrica. Ou melhor, quem faz reset de fábrica é justamente quem se vai e espero fortemente que seja assim, embora creia que ninguém faz por livre vontade, exceto os que cansam de viver. A estes lhes rendo pena, pois quando há saúde, juventude e frescor, a vida merece a vida.

Então restam visitas esporádicas virtuais a um túmulo, num cemitério além do oceano. Incrivelmente isso é possível através do Street View. Paro o mouse ali em frente e tudo ainda me parece inacreditável. Se eu pudesse deixaria uma flor virtual. Passei inúmeras vezes diante daquele muro de pedras amarelas sem dar a mínima atenção. Quem poderia imaginar que tão cedo um de nós teria seu destino ali por detrás, num jazigo de família. Muitos podem achar esse ato sinistro, insano e obsessivo e até pode ser. Sinto muito aos que gostariam de me ver virando a página. Eu também sinto, mas páginas em branco significam tempo e futuro. Eles gostam de brincar de esconder e são palavras que passaram a me atemorizar. Fica a esperança de que um deles resolva um dia compadecer-se e trazer ao menos quietude e paz para essa dor vivente citando uma expressão divina do poema Lembrança de Morrer de Álvares de Azevedo. 


Comentários

  1. É...imensurável sentir a dor do outro...mas compreendo e se ao menos pudesse dividi-la contigo...quero acreditar que um dia essa dor passe....

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