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Presentes e castigos


                                                         
Foto: O Grove, Galícia, Arquivo Pessoal

 Sabem quando chega a hora de inventariar o quanto de dádivas ou punições temos acumulado? É quando a expectativa de futuro se reduz diante do passado.  Os ontens já são bem maiores que os amanhãs e o hoje vai seguindo cheio de agoras até o instante final. Talvez seja por isso que os velhos são silenciosos. O balanço exige reflexão e recolhimento. Talvez por isso existiam as cadeiras, de balançar e pensar. Segundo a natureza humana é impossível sermos perfeitos, tampouco erramos sempre.  Para isso está a própria vida, dando lições diárias e ainda assim continuaremos únicos em nosso conjunto de imperfeições, enquanto buscamos conhecimento, lugares, coisas, filhos, bem-estar, amor, sonhos e encantamento. Tanta coisa, não necessariamente nesta ordem. E cada um de nós com sua própria história, entremeada com a de outros, vamos separando alegrias e tristezas, mágoas e deleites. Assim seguimos tendo mil momentos agradáveis para recordar: filhos, universidade, formatura, trabalho, casamento feliz, a casa própria, a chegada dos netos, viagens etc.  mesmo reconhecendo os revezes e alguns perdões que nunca vão chegar.

Ah, se a vida fosse infinita, não houvesse mais passado, nem futuro, só um presente sem limites, sem relógio, sem degeneração física, sem doenças! Poderíamos ter mais tempo para aprender a amar e a fazer as coisas certas. Porém, somos seres mortais e não temos a certeza do céu da imortalidade. Que surpresas o universo nos reserva? Ou não haverá surpresa nenhuma. Viemos simplesmente do encontro de duas células reprodutivas e voltaremos a fazer parte da poeira terrestre como todos os seres animados e inanimados? Se eu tivesse mais fé pediria que o tempo fosse mais generoso. O que na prática é impossível. Para isso teríamos que correr mais que ele. Com sorte poderíamos ganhar a corrida, tentando nos aperfeiçoar com a maturidade. Enquanto isso os segundos vão passando tic tac. Felizmente, tenho telas em branco e um editor de texto. Faço deles minha cadeira de balanço, assim vou remexendo a memória e criando meu próprio julgamento. Ora me defendo, ora me acuso. Assim a memória resiste ao tempo.

 

 

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