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Um café solo

                                                        

Imagem: Pixabay



Sento na cafeteria e peço o capuccino. O espaço é pequeno mas há uma mesa vazia contra a vidraça, o melhor lugar. Dali tenho a visão do exterior e do interior. Observo os passantes, quem chega, quem sai e noto que são duplas de mulheres, duplas de homens ou grupos de mulheres. Sou uma pessoa de mente aberta, mas ainda concebo a humanidade dividida entre dois gêneros, masculino e feminino. Não posso evitar, sei que sou a regra, não a exceção.  Acolho as questões identitárias, a diversidade LGBTQIA+ e aprendo o que os estudos sociais e comportamentais vêm explicando. Porém, sou conservadora no aspecto das aparências e é inevitável distinguir as pessoas pelos gêneros biológicos ou na dúvida, com base no vestuário. Também não sou capaz de usar linguagem neutra em meus escritos, muito menos na fala, embora não descarto seu uso daqui há alguns (muitos) anos, porque a língua é viva.

Todas as duplas de pessoas que vejo dão sinais que formam um casal. Duas moças entram, uma delas com um cachorrinho no colo. Talvez também formem um casal, não sei. Esse é outro aspecto do comportamento humano que observo ali. Tempos atrás era inadmissível animais dentro de estabelecimentos. Observo a situação e rio por dentro com um presságio absurdo que me vem à cabeça. Se a humanidade depender daquelas pessoas que repartem espaço comigo, estará fadada a desaparecer. Ou talvez comecem a proliferar mais bancos de esperma e de óvulos, por se acaso alguém se interesse por ter filhos em algum momento. O que duvido muito, pois os cães e os gatos parecem já estar suprindo o instinto de maternidade/paternidade —e agora, que palavra uso para denominar de maneira não binária esse instinto natural entre os seres humanos? Bem, talvez esse instinto já ande meio extinto.

A esta altura da minha narrativa sei que já provoquei incômodos em muitas pessoas. Não quero que me mal interpretem, não estou fazendo críticas às escolhas de ninguém. Em relação aos animais, já tive uma querida vira-lata, mas considero que continuam sendo animais. Concordo com os veganos, porque somos seletivos. Os cães e os gatos nós adotamos, vestimos, damos colo, cama, comida e algumas bizarrices como festas de aniversário. Outros animais são criados para serem abatidos e compramos sua carne e vísceras no supermercado. O capitalismo vence nas duas opções. Insisto, são somente constatações a partir do que observo. E minha observação pode não ser tão absurda. A humanidade poderá crescer em expectativa e qualidade de vida, mas a natalidade poderá entrar em declínio como já em algumas décadas ocorre na Europa e agora também na Ásia. A Coréia do Sul é o país com mais baixo índice de natalidade atualmente.(dados de 2021)

Todos necessitamos de amores, amizades e 
respeito quem se completa emocionalmente na companhia de mascotes. Amores são essenciais em qualquer forma. Porém também noto certa tendência ao individualismo, uma fuga de comprometimentos ou por descomplicar a vida.  Sei que é muito difícil  nos entendermos como seres afetivos, porque somos dotados de expectativas e sentimentos que vão mudando ao longo da vida. Feliz de quem preserva tudo ao redor de si, amor, filhos, bichos em relativa harmonia e por uma vida. Digo relativa, pois  a perfeição não existe.

Para terminar o café concluo que o pior é a solidão de amor. A solidão devora, como diz Alceu Valença. Logicamente o que vi foi só um recorte de tempo e de lugar, mas foi essa a percepção que tive naquele microcosmo ali com a música Solidão rodando na minha cabeça e tentando que aquele café preenchesse o grande deserto que carrego não por escolha, mas por desígnio. Eu não escolhi a solidão como alguns até almejam e não é por isso que vou me tornar uma senhora rodeada de mascotes como as muitas que vejo pelas ruas. Se foi a solidão quem me escolheu, me resigno a ela e me junto aos perdidos.

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