Foto: Arquivo Pessoal |
Somos feitos de saudades,
algumas são indolores, outras cravam feridas. Tenho doces saudades do meu
bairro, da casa e das brincadeiras da infância. Tenho saudade de uma boneca, de
um coelho de pelúcia, de comer cocada ainda quente—uma vizinha fazia para
vender— da escola primária, dos cadernos adornados com florezinhas de decalque,
de ver desenho animado numa televisão de tubo, de meus pais jovens e ativos e das
minhas avós. Estas saudades aquecem e confortam a alma.
Porém, há saudades
dolorosas. Elas diferem umas das outras devido à relação entre espaço e tempo.
A infância dura pouco, menos de doze anos, e está tão distante da idade madura
que, exceto quando há grandes traumas ou rupturas, tudo fica lá atrás naquela
atmosfera quase que de sonho e fantasia.
As saudades mais intensas estão relacionadas a
dores de perdas. E estas doem muito mais na idade madura, porque mesmo que
muitas derivam de circunstâncias ou acontecimentos alheios às nossas ações,
outras são provocadas por nós mesmos. Irrefletidamente nos afastamos de pessoas
especiais, sem perceber seu valor. Irrefletidamente agimos por impulso,
desviando de caminhos ou abandonando situações que pareciam permanentes. Irrefletidamente.
De novo a relação espaço e tempo interfere, é por isso que a saudade vem com uma
força abismal na maturidade. A saudade do pai que já se foi e de um amor que já
morreu no sentido literal da palavra, de corpos que já não estão mais, são sentimentos
que podem arrefecer com o passar do tempo. O luto vai amenizando, mas a saudade
da presença física sobreviverá à nossa própria morte.
A saudade de um amor
perdido também é muito forte e nos faz revisar a vida inteira. Os
arrependimentos e as decisões obstinadas se misturam no coração, mas na parte
onde mora a razão elas são como água e óleo, incapazes de conviver, não são
autoexplicativas e uma nunca justifica a outra.
Saudade é um sentimento
cheio de energia, valor e vigor, porque nos define como seres humanos e nos
invoca o tempo. Por isso, deveríamos ser mais cuidadosos no presente, pois
algumas saudades doloridas podem ser evitadas. Sejamos atentos aos que nos
rodeiam, pois um dia já não estarão mais por perto. Sejamos pacientes ou ao
menos complacentes com as singularidades dos outros, cada um é o que é, desde
que isso não machuque nosso corpo ou nosso coração.
Mesmo assim, é impossível evitar qualquer tipo de saudade, ao menos que se evite voltar a lugares onde um dia fomos felizes, como disse um poeta. Ali estarão mescladas saudade e nostalgia. Nestes lugares é onde residem as maiores e mais dolorosas recordações, paradoxalmente, no mesmo lugar onde um dia morou a felicidade. Ali ainda sobrevivem as lembranças de dias despreocupados perdidos no tempo, de entardeceres lendo no quintal com os pés descalços na grama, de almoços familiares de domingo misturando comida com risadas. Ali está vívida a lembrança de uma querida vira-latas esperando por um biscoito no café da manhã ao lado da mesa da cozinha. Ainda soa o tom de chamada de carinhosos telefonemas recebidos num aparelho analógico no meio do expediente. Ali sobrevivem os abraços das noites de inverno, os beijos de chegada e a certeza de que alguém nos esperava em casa. Indizíveis saudades de amores sem retorno.
Texto enviado para Oniros Editora para fazer parte da coletânea
"Lembranças de uma saudade"
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