Pular para o conteúdo principal

Um desprezo milenar




Argentina, tierra de amor y venganza é uma telenovela argentina produzida pelo grupo Pol-Ka e emitida pelo canal 13 em 2019. Ambientada em Buenos Aires no começo dos anos 40 conta a história de dois amigos que lutaram juntos na Guerra Civil Espanhola e, que por motivação diversa e conflituosa, emigraram para a América como muitos fizeram naquela época.  


Além do conflito pessoal entre os dois personagens centrais há um núcleo do enredo que passa num bordel. Esse cenário acaba engajando a história da maioria dos personagens centrais e coadjuvantes me chamando atenção para um termo usado no mundo inteiro quando as pessoas querem ofender alguém que é chamar de filho(a) da puta. 


Não sou uma pessoa que use palavrões, exceto ao trompar os dedos do pé com algum canto de mesa, ou algo sair mal, uso pequenos impropérios, mas sem atingir pessoas ou mandar alguém para aquele lugar. Não sou capaz de dizer nem escrever o popular é f. para algo muito ruim ou para algo muito bom—depende do contexto— como hoje faz parte do linguajar da maioria das pessoas. 


E como nunca uso a expressão, agora reforço o quão injusto é chamar alguém de filho da puta. A novela me fez ver que absolutamente nenhuma mulher entra no ofício da prostituição por puro prazer e vocação, embora tenhamos arraigada a ideia de que é a profissão mais antiga do mundo. 


As mulheres da série eram trazidas enganadas da Europa—a maioria judias—por uma rede de tráfico humano. Ao desembarcar dos navios eram leiloadas como mercadorias, arrematadas pelos rufiões e obrigadas a trabalhar e aguentar todo tipo de violência, humilhação e más condições de vida. A misoginia e o machismo imperavam naqueles lugares. As mulheres eram tratadas como pedaços de carne, submetidas a todo tipo de abuso. A fome, a guerra, a orfandade, a falta de políticas de bem-estar social empurravam mulheres pobres para a única capacidade de sobrevivência. A maioria delas morria cedo, pelo consumo de drogas, álcool, depressão e traumatismos causados por clientes mais violentos. Inclusive não podiam ser enterradas nos cemitérios "normais", porque a santa Igreja Católica não permitia, por serem consideradas impuras. Já aos homens nunca lhes foi negado uma cova decente fossem o que fossem. 


Ser prostituta está cravado no nosso imaginário como alguém que não presta, alguém sem valor, quiçá pior, que ser um assassino, um ladrão ou um violador. Ninguém diz: aquele é um filho de ladrão. Inclusive alguns usam a expressão mulheres de vida fácil. Fácil? Atender 10, 20 homens por dia? E que culpa têm os filhos dessas mulheres que sequer sabem quem são os pais?  


Hoje, mesmo que o tráfico de pessoas, a tortura e a privação de liberdade sejam considerados crimes hediondos, a fome e a pobreza continuam levando mulheres à prostituição. Ainda é pura falta de escolha. Então convém ao menos respeitá-las como seres humanos e cidadãs, deixar de lado esse desprezo milenar, arrancando-lhes o estigma de que, se não admitimos dar-lhes valor como gente, que ao menos tenham como mães. 

 

Comentários

  1. Segundo uma pesquisa de uma ONG feminista, 97% das mulheres entrevistadas na época, tinham em seu histórico abuso ou estupro na mais tenra idade....

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Sinta-se à vontade para comentar

Postagens mais visitadas deste blog

O Morro do Caracol

Foto: Rua Cabral, Barão de Ubá ao fundo e o Mato da Vitória à esquerda Arquivo Pessoal O povoamento de uma pequeníssima área do bairro Bela Vista em Porto Alegre, mais especificamente nas ruas Barão de Ubá que vai desde a rua Passo da Pátria até a Carlos Trein Filho e a rua Cabral, que começa na Ramiro Barcelos e termina na Barão de Ubá, está historicamente relacionado com a vinda de algumas famílias oriundas do município de Formigueiro, região central do Estado do Rio Grande do Sul.  O início dessa migração, provavelmente, ocorreu no final da década de 40, início dos anos 50, quando o bairro ainda não havia sido desmembrado de Petrópolis e aquele pequeno território era chamado popularmente Morro do Caracol. Talvez tenha sido alcunhado por esses mesmos migrantes ao depararem-se com aquele tipo de terreno. Quem vai saber! O conceito em Wikipedia de que o bairro Bela Vista é uma zona nobre da cidade, expressão usada para lugares onde vivem pessoas de alto poder aquisitivo, pode ser apli

Puxando memórias I

https://br.pinterest.com/pin/671177150688752068/ O apartamento Uma das mais nítidas lembranças da infância, eu não teria mais que cinco anos  é o quarto onde dormia. Lembro da cama junto à janela, a cama de meus pais e no outro extremo o berço de minha irmã mais nova, enquanto éramos só nós quatro. Durante a noite percebia a iluminação da rua entrando pelas frestas da veneziana fechada, enquanto escutava o ruído de algum carro zunindo no asfalto, passando longe no meio da madrugada. Até hoje quando ouço um barulho assim me ajuda a dormir. A sensação é reconfortante, assim como ouvir grilos ou sapos na noite quando se vive no interior.  Morávamos num apartamento de um pequeno sobrado de dois pavimentos com uma vizinhança muito amigável entre conhecidos e parentes.  O apartamento tinha dois quartos, uma sala pequena, banheiro, cozinha e um corredor. O piso era de parquet  de cor clara— termo francês usado no Brasil para designar peças de madeira acopladas. A cozinha tinha um ladrilho aci

Distopia verde-amarela

Foto: Sérgio Lima/AFP Crônica classificada, destacada e publicada pelo Prêmio Off Flip 2023 Dois de novembro de 2022, dia de sol pleno. Moro perto de um quartel. Saio para a caminhada matinal e noto inúmeros veículos estacionados na minha rua que não costuma ser muito movimentada. Vejo muitas pessoas vestidas de verde e amarelo ou enroladas em bandeiras do Brasil indo em direção ao prédio do Exército. Homens, mulheres e até crianças cheias de acessórios nas cores do país, um cenário meio carnavalesco, porém sem a alegria do samba. Pelo contrário, as expressões eram fechadas, cenhos franzidos.  Quando chego à esquina e me deparo com o inusitado, me pergunto em voz alta:    —Mas o que é isso? — um senhor sentado na entrada de seu prédio me ouve e faz um alerta: "A senhora não passe por ali, é perigoso!” Então entendi que o perigo era pós-eleitoral. Os vencidos tinham fechado a rua em frente ao quartel e pediam intervenção militar . Ou seria federal? Não havia muita coerência no uso