Foto: Sérgio Lima/AFP |
Crônica classificada, destacada e publicada pelo Prêmio Off Flip 2023
Dois de novembro de 2022, dia de sol pleno. Moro perto de um quartel. Saio para a caminhada matinal e noto inúmeros veículos estacionados na minha rua que não costuma ser muito movimentada. Vejo muitas pessoas vestidas de verde e amarelo ou enroladas em bandeiras do Brasil indo em direção ao prédio do Exército. Homens, mulheres e até crianças cheias de acessórios nas cores do país, um cenário meio carnavalesco, porém sem a alegria do samba. Pelo contrário, as expressões eram fechadas, cenhos franzidos.
Quando chego à esquina e me deparo com o inusitado, me pergunto em voz alta:
—Mas o que é isso? — um senhor sentado na entrada de seu prédio me ouve e faz um alerta: "A senhora não passe por ali, é perigoso!”
Então entendi que o perigo era pós-eleitoral. Os
vencidos tinham fechado a rua em frente ao quartel e pediam intervenção militar.
Ou seria federal? Não havia muita coerência no uso dos termos. Estavam
inconformados com o resultado das urnas proclamadas fazia três dias. Daí o
perigo da violência política. Parei uns minutos observando de longe. O Hino
Nacional tocava incessantemente bem como as pérolas Eu te amo meu Brasil e a Canção do Exército, músicas lembradas só como bregas, não fossem
de tempos obscuros. O mesmo repertório saía a todo volume dos veículos que
chegavam, a maioria modelos caros. Vi pessoas ajoelhadas no chão rezando de
olhos baixos e terços na mão, uns levantavam os braços em gestos de clamor. Outros
mais delirantes se punham num marcha-soldado solitário. Vi idosas de sapatilhas
customizadas perfiladas em frente à guarita em sinal de veneração como que
implorando atenção dos militares. Em alguns momentos comemoravam algo aos
gritos. Soube depois que chegava muita notícia falsa e deturpada de um universo
paralelo e delinquente. Escutei partes de conversas. Eles confiavam na
iminência de algo que reverteria seu desagrado, depois que o outro lado ousou
ganhar as eleições. Exército nos salve! SOS Forças Armadas! —
lia-se nos cartazes. Cenas patéticas, vergonhosas e lamúrias sem eco. O monstro
da desinformação, do parco raciocínio, da manipulação, da fé acrítica e da ignorância
política cooptaram pessoas para um delírio coletivo. Dentro do quartel, silêncio
absoluto. A vida segue o fluxo da institucionalidade e da democracia—ainda que
aos trancos—apesar da vergonha e do flerte com o crime praticado por incautos e
infames. O fato seguirá, sem dúvida, para as páginas tragicômicas e bizarras da
História.
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