As duas irmãs de Renoir- Global Gallery |
Cresceu sem o pai. Só sabia que ele
vivia na Espanha. A menina percebia que o assunto desagradava a mãe que
refletia no rosto um misto de pesar e pânico sempre que perguntava por ele. Tinha
uma vaga memória de um homem jovem, bonito, de olhos azuis que brincava com ela
e levava para passear. Depois de crescida, ela começou a insistir com a mãe para
saber os detalhes de sua origem, cujo fato mais relevante que sabia era que elas
tinham emigrado daquele país, quando tinha pouco mais de três anos.
A mãe, depois de muita insistência de
Laura, já adolescente, contou uma história:
—Quando tu tinhas uns dois anos teu pai
sofreu um acidente no barco pesqueiro em que trabalhava. Era marinheiro. Ele ficou
em coma vários meses e perdeu a memória. Depois do acidente não reconhecia mais
a nós duas, tampouco a vida que levávamos juntos. A amnésia e as sequelas o
deixaram muito transtornado e ele passou a viajar cada vez para mais longe e
por mais tempo. Quando ele voltou de uma dessas viagens, pediu o divórcio e nos
afastamos. Pouco depois, eu soube que ele estava casado com outra mulher. Vivíamos
na mesma cidade. Um dia eu me distraí passeando contigo e essa mulher te roubou
de mim de dentro de uma loja.
—Me roubou? Como sabes que foi ela? —perguntou a filha desconfiada.
—Ela queria ter filhos com teu pai e não conseguia. Então ela resolveu te tirar de mim. Mas ela já tinha me tirado teu pai, eu não poderia permitir que levasse a ti também. Então, fiz o mesmo. Um dia estavas numa pracinha em companhia de uma tia que te cuidava e eu te levei dali. Em resumo, embarcamos para cá para o Panamá em seguida e nunca mais tive notícias deles.
—O resumo de um resumo. Imagino que deve haver muito mais conteúdo nessa história e não queres me contar. Depois de um divórcio, a justiça determina que os filhos recebam uma pensão, visitas etc. Um vínculo há que ser mantido, não? Em meus documentos nem sequer consta o nome dele!
—Eu não queria nada dele e precisávamos fugir.
—Tudo isso é muito vago e sem sentido. Fugir de que?
—Não podíamos continuar vivendo lá. Tive medo. —disse-lhe a mãe hesitante.
— Deves ter uma foto ao menos. Eu queria lembrar dele.
—Um homem lindo, eu o amei muito. — Buscou entre uns guardados a foto do casamento onde aparecia um casal de noivos jovens e sorridentes em frente a uma igreja e mostrou à filha.
—Eu lembro dele! Sim, este é o meu pai! E havia uma mulher morena, bonita e sorridente que cuidava de mim. Devo ter passado bom tempo com eles, do contrário não lembraria.
—Mas jamais te deixarei ir procurar por eles, nos causaram muito sofrimento.
—Não podes me impedir. E quem me garante que eu seja tua filha e a mulher de meu pai não seja minha verdadeira mãe? — implicou a menina.
—Não diga sandices! Depois de tudo que arrisquei e abandonei ainda me acusas? Pois vá. Não me encontrarás mais aqui quando voltares.
—Tu sempre dramatizando e me chantageando. Fizeste isso a vida inteira sempre que eu falava de meu pai.
—Eu precisava te proteger. —disse a mãe, relutante.
—Proteger a mim ou a ti? Eu já tenho quase 18 anos, quero ir à Espanha e procurar por ele. Ninguém vai me impedir. Poderias ir comigo, nunca mais viste tua família, tua terra. De que tens medo? Se sou tua filha legítima é muito fácil comprovar. Basta um exame de DNA.
—Exame de DNA? Estás louca? Tu duvidas de mim?
—Até que me contes a verdade, continuarei duvidando. Tuas histórias foram mudando conforme a minha idade e não me convencem. Além do mais posso me proteger sozinha. Vamos, conte de uma vez por todas a verdadeira razão de termos fugido para cá. Se fui sequestrada pela mulher de meu pai, porque não acionaste a polícia, simplesmente resolveste me tomar de volta? Eu sempre tive a sensação de que vivíamos em fuga e escondidas.
—Eu estava desatinada e furiosa com aquela mulher, ela tinha me tomado teu pai e te queria também. Fiz o que devia ser feito e não tens o direito de me julgar. Se fores para a Espanha, já sabes, me mato.
—Tuas ameaças não me assustam, vou descobrir a verdade, está decidido. ✽✽✽✽
Virginia tinha um
sonho recorrente na infância. Sonhava que uma mulher desconhecida corria com
ela nos braços no meio de uma mata escura. Depois se via ao pé da escada de um
enorme avião e a mulher ainda com ela no colo, aos gritos, impedia que seu pai
a retirasse dos braços dela. Não sabia se seu pai a salvava da mulher do sonho,
pois a última imagem que tinha era sempre da mulher gritando, seu pai lhe
estendendo os braços e ela lhe dando os bracinhos chorando.
Ela cresceu assim com
a imagem de um pai herói, seu salvador das garras de uma bruxa ou de uma ladra
de crianças. Porém, a mulher não parecia uma bruxa, não era má, nem feia, nem
tinha rugas no rosto. Virginia não tinha medo da mulher, somente da visão de
seus olhos arregalados, de seus gritos desesperados e do quão forte se sentia apertada
entre seus braços.
Por vezes, ainda
criança, quando tinha desavenças com a mãe, fantasiava que a mulher do sonho
podia ser sua verdadeira mãe e que aquela com quem vivia podia ser uma ladra. Tinha
um certo ciúme dela com o pai, pois os dois viviam aos beijos e abraços. Ela
amava aquele pai bonito e carinhoso que antes de ser seu pai era o marido da
sua mãe.
Adorava quando saíam
só os dois a passear e isso passou a acontecer mais depois que sua irmã nasceu.
Ele era cuidadoso, gentil, nunca levantava a voz, comprava sorvete, limpava seu
rosto, levava na praia, faziam castelos na areia, corria com ela nas costas, dava
banho e o jantar. Virginia só não gostava quando ele tentava ensinar-lhe a
nadar. A água era sempre muito fria, ela tinha medo de mergulhar, então ele acabou
desistindo. Sua irmã, sim, tornou-se excelente nadadora graças a ele.
Sua mãe era
professora de línguas, uma mulher bonita, inteligente, sorridente e carinhosa
quando estava tranquila e despreocupada. Quando se apresentavam problemas e
temores, frequentemente mais temores que problemas, ela se punha um tanto
colérica e desatinada. Tinha uma certa mania por limpeza e organização, estrita
com horários e regras. Depois que teve duas crianças, nascidas muito perto uma
da outra, mesmo com a ajuda da cunhada e do marido, parece que cultivava uma
ansiedade que se lhe aflorava a pele. Ela tinha temores infiltrados, temores de
perdas, temores de ausências.
Depois dos 10 anos,
mais ou menos, Virginia nunca mais teve o mesmo sonho, acabou esquecendo e
nunca contou a ninguém. Certo dia, depois de completar 18, ela estava com a
irmã e a tia na casa do avô, pai de seu pai, sentadas ao redor da mesa da
cozinha olhando umas fotografias antigas. Elas queriam conhecer a avó que há
muitos anos tinha falecido. Entre os guardados havia a foto de um casamento. A
tia tentou esconder das meninas, porém Virginia percebeu, o que aguçou sua
curiosidade.
—Esta foto é do primeiro casamento do seu pai, mas não deixem sua mãe saber que eu mostrei a vocês. —pediu a tia, rendendo-se.
—Nós sabemos que ele foi casado com outra mulher quando era mais jovem. Qual o problema de ver a foto? —indagou Virginia.
—A ex-mulher dele provocou muito sofrimento aos pais de vocês e o assunto virou um tabu na nossa família. Nem sei como seu avô não destruiu isso e ainda está aqui perdida.
A tia alcançou afinal a foto às meninas e ali elas puderam ver seu pai, bem mais jovem, lindo, num terno escuro e gravata prateada, uma noiva igualmente linda, com vestido longo branco, suas duas tias e seu avô, vestidos elegantemente. Todos posavam sorridentes em frente à Catedral de Santa Maria de Vigo. Virginia ficou vários minutos observando a foto, intrigada, tentando entender os sentimentos que lhe provocaram a imagem daqueles rostos em sua maioria tão familiares. Porém, ela se deteve no rosto da noiva e isso fez com que num dado instante ela relembrasse o sonho da infância e contou de imediato à tia e à irmã.
—Mas essa é a mulher do meu sonho. Eu sonhava com essa mulher quando era criança! —disse Virginia alarmada.
—Que sonho, Gina? —perguntou a tia.
—Seguidamente eu tinha um sonho sempre igual, nunca contei para ninguém, ou talvez para alguma colega de escola. Depois de adolescente nunca mais aconteceu e eu já tinha até esquecido.
E Virginia contou o teor de seu sonho infantil e ficou ainda mais convencida que aquela noiva da foto era a mesma mulher. A tia foi ficando cada vez mais atordoada à medida que a sobrinha ia falando. Era impressionante como alguns aspectos do sonho e da vida real se encaixavam.
—De onde ela é? Onde vive agora? —quis saber Virginia.
—E para que queres saber? —perguntou a tia, preocupada por ter trazido aquele assunto à baila.
—Só por curiosidade, tia!
—Ela era daqui mesmo de Vigo, mas essa mulher já morreu.
— E contou o sucedido de muitos anos antes.
Virginia havia sido
sequestrada pela ex-mulher de seu pai, quando tinha quase quatro anos, numa
pracinha da vizinhança durante um momento de distração da tia que era sua babá.
A mulher planejou friamente uma vingança contra o ex-marido e a esposa. Ela nunca
aceitou o fim de seu casamento, que havia acontecido em circunstâncias totalmente
manipuladas por ela. Foi um caso clássico de um triângulo amoroso cheio de
mentiras, correspondência interceptada e desencontros. O fato de ter sido descoberta
em suas manipulações, ter sido abandonada e não ter conseguido construir a
família que tanto sonhava com o homem que amava, transformou-a numa pessoa totalmente
ardilosa e transtornada.
A polícia investigou
e descobriu em poucas horas que o plano da mulher era embarcar com a menina Virginia num voo da Espanha para o Panamá com um passaporte falso em nome de Laura,
filiação e sobrenome somente em nome da sequestradora. O pai de Virginia auxiliou nas buscas, enquanto a mãe se desesperava em casa abraçada o tempo
todo na filha menor, ainda um bebê. O relato do sonho era o mesmo da vida real
que a tia acabou contando às meninas. E Virginia foi resgatada pelos braços do pai, enquanto a mulher gritava:
— Olha, é a nossa
filha! Aquela mulher me roubou. Vem, vamos juntos embora daqui. —Ela gritava em
desatino.
As meninas ficaram
boquiabertas com a revelação da tia e as três com a similaridade que o fato
tinha com o sonho relatado.
—Então, se ela não
tivesse sido presa, teria me levado para o Panamá e mudaria todo o curso de
minha história! —concluiu Virginia.
—Sim, mas ela estava
muito transtornada, deixou muitos vestígios do crime que estava cometendo e
felizmente tudo se resolveu em pouco mais de 24 horas, porém o choque
pós-traumático foi intenso, principalmente para tua mãe.
A mulher foi julgada
e condenada, cumpriu alguns anos da pena, mas por conta do diagnóstico de um
transtorno psiquiátrico obteve liberdade condicional. Contudo, suicidou-se logo
depois de sair da prisão. Era um ser que não aceitava a felicidade alheia, cultivava
uma obsessão irracional por possuir pessoas e um espírito vingativo. Uma dor que
não suportou carregar. A sua maneira, ela também amava o pai de Virginia. A mãe
de Virginia, depois que soube da morte da mulher, serenou e nunca mais temeu perder
ninguém.
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