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Diversidade Incômoda


Tempos atrás escrevi um texto com o título Sobre Malandros e Indolentes que falava sobre um comentário racista, desumano e perverso de um político brasileiro sobre negros e indígenas. Lá citei o exemplo de vida de minha trisavó, cuja história, mesmo sabendo quase nada, usei para repudiar veementemente a fala do político. Segundo relatos que eu ouvia da família, ela era uma mestiça filha de um negro com uma índia ou vice-versa. No texto eu dizia que provavelmente ela tinha sido escrava da família onde passou a viver, não se sabe em que circunstâncias, na fazenda de Manuel Veríssimo Simões Pires em São Sepé -RS com quem, depois dele enviuvar, passou a conviver como sua mulher. 

Joanna Apolinário, minha trisavó por parte de mãe nasceu em junho de 1867 em Corrientes na Argentina. Em leituras posteriores descobri que a abolição da escravatura na Argentina foi promulgada em 1813, mas de fato só passou a vigorar em 1853, o que pode ser descartada a hipótese de ela ter nascido escrava, mas fica a dúvida ainda quanto a sua mestiçagem. Pessoas da minha família, frequentemente citavam o termo bugra para referir-se a ela, então, pode ser uma evidência que ela tenha essa herança índia de um dos genitores. Se nos fixarmos em suas feições, realmente pode-se confirmar a informação. 

Quanto ao segundo genitor de Joanna, fica a controvérsia se seria uma pessoa negra ou branca e se fosse branca ela, obviamente não seria escrava e contraria a tese do meu texto anterior. Há quem diga que o pai era um espanhol. Podemos fazer um exercício de probabilidades. Se ela nasceu na Argentina, seu pai poderia ser um descendente de espanhóis, branco e hispano-hablante que saiu de Corrientes com sua mulher, uma índia, à procura de trabalho, viajando 700 km até chegar à região central do Rio Grande do Sul. Sim, é possível. O contrário é menos provável, mas não impossível. Um índio sai de Corrientes, viaja 700 km com sua mulher branca para encontrar trabalho numa fazenda no Rio Grande. Outra hipótese, um negro argentino livre e sua mulher índia fogem da segregação racial provocada pelo governo local de Corrientes  e chegam numa fazenda gaúcha em busca de trabalho. Ainda, um índio argentino com sua mulher negra e livres fazem o mesmo. Há também a possibilidade de toda a família ou parte dela ter sido, vamos dizer, cooptada ou ter tido permissão de agregar-se à fazenda em troca de trabalho. Todos sabemos que isso não era nada incomum. A data do deslocamento e a chegada dessa família ao sul do Brasil são fatos desconhecidos. O primeiro acontecimento na biografia de Joanna já no Rio Grande do Sul é o registro de nascimento de seu primeiro filho em 1884, antes disso tudo é uma incógnita. 

O que me chama atenção é que a tese do pai ou de uma mãe branca parece a mais palatável para alguns membros da família. Alguns sutilmente rechaçam a ideia de que a menina Joanna chegou como filha de escravos na casa de Veríssimo e tentam "branquear" a tez da querida ancestral cujo único retrato publicado, que eu conheço, é uma pintura que está na parede da antiga casa da família, um lugar lindo, de valor histórico incalculável e digno de preservação. Um dia, contemplando o quadro, constatei que o pintor pode ter se excedido nas tonalidades claras na pintura do rosto de Joanna, na época do retrato uma senhora já madura, talvez para obter a aprovação do seu mecenas, concluí. E isso é só uma reflexão. Ao mesmo tempo, me pergunto qual seria a motivação da família de Joanna ter saído da Argentina e em que condições fez uma viagem tão longa até chegar ao centro do Rio Grande do Sul. São respostas difíceis de obter já que nem tudo foi contado às gerações posteriores talvez, justamente, para não desprestigiar a história da família ou pelo simples fato de que histórias de mulheres comuns tanto brancas, negras, pardas ou índias sempre foram irrelevantes, pois já eram seres invisíveis por natureza.

A mim, realmente não importa a cor da pele e a condição social de minha trisavó, o que quero me referir é que devemos levar em conta o contexto histórico, absorver nossa ancestralidade e aceitar que todos nós brasileiros somos parte de uma diversidade genética ímpar no mundo. Aqui estavam os índios, depois vieram os colonizadores brancos que tentaram escravizar esses mesmos índios. Não conseguindo, arrancaram à força milhões de africanos de sua terra e povoaram e desenvolveram o país utilizando mão de obra escrava. O Brasil-Colônia tinha uma população em sua maioria composta por negros escravizados que trabalhavam para uma minoria branca e no século 19 e período imperial, época de nossa trisavó, isso ainda era a realidade. Então é importante afirmar e termos orgulho dessa mescla que somos e que é inútil insistir numa branquitude que não existe. Assista um vídeo emocionante no final desse texto: "DNA, quem você realmente é?" que é a síntese da mensagem que gostaria de passar aqui.

Aproveito para contar algumas pequenas curiosidades que encontrei numa breve pesquisa :

1. Manuel Veríssimo Simões Pires  nascido em outubro de 1835 em São Sepé  e falecido aos 72 anos em julho de 1907, teve 3 esposas e 28 filhos:
  • A primeira esposa chamava Célia Galvão da Costa  sem mais informações.
  •  A segunda esposa chamava Maria do Carmo Ferreira de Castronasceu em Rio Pardo em 1839, teve 15 filhos e faleceu aos 42 anos, um dia depois do nascimento de seu último filho em 1882. Seu primeiro filho nasceu em 1860 e chamava Francisco. Ao longo de 22 anos teve seus 15 filhos, inclusive o último nascido em 1882 também chamava Francisco.
  •  A terceira esposa, Joanna Apolinário nasceu em junho de 1867 em Corrientes, Argentina e faleceu 1947 aos 80 anos em Formigueiro-RS. Era 32 anos mais jovem que seu marido.

2. Manuel Veríssimo tinha 7 filhos da primeira família que eram mais  velhos do que Joanna. Francisco, o primogênito era 7 anos mais velho que ela. Antonio Augusto Simões Pires, sétimo filho de Veríssimo nasceu no mesmo ano de Joanna. Esta teve 13 filhos com Veríssimo, entre eles está minha bisavó Catarina nascida em 1888. O primeiro filho de Joanna chamava Lázaro e nasceu em 1884, quando ela estava com apenas 17 anos incompletos.

3. A filiação de Joanna também é controversa. Há um registro de que foram Gabriel Gomes Neto e Perpetua Neto segundo o website myheritage, sem outras informações. Já o Geneanet cita Manuel José e Maria Apolinário. O Ancestors Family Search cita Manoel José Apolinario e Maximiana Apolinario.6  Não há como afirmar a veracidade desses nomes, são dados que estão abertos na rede de computadores e quem trabalha com genealogia pode conseguir informações mais detalhadas mediante pagamento de arquivos. Só deixo aqui as fontes para quem quiser comprovar e seguir com as pesquisas. 

4. Pesquisando sobre afrodescendentes na Argentina encontrei uma reportagem de 2017 do periódico El Pais intitulada "Onde estão os negros na Argentina", cita a festa de San Baltasar, o rei mago negro, única festa criada e conservada por afrodescendentes no país, casualmente na província de Corrientes. Essa fala de um entrevistado resume muito o sentimento de negação  que me refiro acima : 

"Corrientes embranqueceu e se você pergunta por quê, acha que todo mundo se orgulha quando descende de alemães e franceses, mas ninguém quer dizer que vem dos escravos negros, porque isso não dá status. É por isso que a negritude é muito escondida”, diz um entrevistado." 




















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